Thursday, November 25, 2010

Felinni e o rapaz do meu bairro

Hoje conheci uma personagem de Felinni, um daqueles peculiares integrantes da anónima massa popular que o realizador italiano não hesitaria em escolher para um dos seus filmes, como qualquer outro transeunte que o tivesse hipnotizado no bulício de uma rua de Roma.

O que proporcionou o encontro foi estar em mudanças, processo no qual ele era um dos braços contratados, e ter calhado ter a sua companhia no meu carro, desafogando a cabina da camioneta que transportava o mobiliário. Num garatujar ininteligível que só o contexto diria tratar-se da bela língua portuguesa, foi desfiando a sua ladainha, a princípio parecendo indiferente às minhas respostas, depois parecendo indiferente à sua ausência.

Mesmo assim, contou-me o que sinteticamente se poderia designar pela sua história de vida, de menino que frequentou a escola camarária em Campo de Ourique, onde nasceu e viveu até aos nove anos, ao orgulhoso trintão que desfia as casas que a Câmara de Lisboa ofereceu à família, em bairros menos recomendáveis depois de terminada a luz solar, com o mesmo orgulho com que o jovem quadro se refere à última propriedade adquirida pelo progenitor em prime location.

Mas o que o definia, mais do que tudo isso, era a sua curiosidade quase infantil, um misto de homem que tenta compreender a função das várias coisas que vai recolhendo e de pequeno malandro que nos pergunta subliminarmente se não lhe queremos oferecer o objecto em causa. O momento em que comecei a tomar consciência de que não habitávamos o mesmo planeta foi quando confundiu uma box de televisão por cabo com um leitor de DVD, e mesmo depois de esclarecido insistiu em questionar se o comando não seria mesmo de um DVD, sempre sem perder um delicioso sorriso a dois dedos de distância de palerma.

Poderia perorar sobre o que perdem os pobres de espírito, mas isso não só seria pretensiosismo como estaria a passar ao lado da questão, e a questão é como nós humanos conseguimos o prodígio de ser simultaneamente únicos, e portanto diferentes uns dos outros, e manter algo que nos identifica e torna parte do mesmo todo.

Com o seu ar cândido, o seu português macarrónico, a enorme curiosidade apenas comparável à incorrigível ignorância, a vida sofrida que relatava com aparente tranquilidade, nada no personagem que encontrei poderia ser mais diferente de mim próprio, e facilmente se diria que vivíamos em mundos diferentes.

Afinal, e por mais que haja alguma verdade na nossa diferença, o que a viagem na sua improvável companhia me recordou foi que no fundo, por mais que o nosso quotidiano se viva a um universo de distância, e o nosso caminho se tenha feito em mundos diferentes, continuaremos sempre a ser também dois rapazes que fizeram a escola no mesmo bairro.

Tuesday, November 2, 2010

Um Táxi de Leste

Há pouco deparei com algo que me deu que pensar. Com o carro na oficina há já algum tempo tenho voltado a usar no quotidiano formas de transporte que já tinham abandonado os meus hábitos, como o táxi, o metro ou até o velho eléctrico lisboeta, e foi isso que levou à estranha coincidência de me terem calhado condutores originários do Leste europeu nos últimos três ou quatro táxis que apanhei.

Se ao apanhar o primeiro estranhei, porque era pouco comum ainda há meia dúzia de anos, quando a minha utilização do táxi era muito mais frequente, com este último fiquei seguro que não se tratava de uma coincidência.

Se isto me parece relevante é porque acho que poucas coisas dizem mais sobre uma sociedade do que os seus táxis, esse misto de consultório de psicanálise e amostra da vox populi. A estrita divisão entre táxis pretos e small taxis de Londres, estratificando diferentes níveis de exigência e qualificação para veículos e condutores — os condutores dos londrinos táxis tradicionais passam por um longo processo de formação, com testes que os obrigam a estabelecer de memória, rua a rua, o percurso entre quaisquer dos milhares de ruas e pontos de interesse da capital inglesa, ao ponto de existirem estudos científicos que comprovam que há zonas do seu cérebro, responsáveis pela memória espacial, que se desenvolvem de uma forma acima do normal — como seria de esperar num país onde a separação de classes e a correspondente diferença de rituais é tão clara, o predomínio de determinadas nacionalidades ou etnias entre os condutores de táxi de cidades do centro da Europa, com diferenças de país para país, o táxi da aldeia que divide o espaço entre os interessados em cada percurso, porque não faria sentido deixar alguém em terra para garantir a privacidade de um só cliente, a diferença entre o uso generoso do palavrão pelo taxista lisboeta e a forma delicada como o de Cascais nunca deixa de parar numa passadeira, todas estas coisas são em maior ou menor medida reflexo das características do meio onde, literalmente, se movimentam.

Foi por isso que registei como russos, ucranianos ou moldavos se juntaram à inigualável galeria de cromos que já ocuparam o nosso imaginário ao volante de um táxi lisboeta. Os condutores da Lisboa pacata e por vezes quase rural do Estado Novo, que ainda hoje nos fazem associar à profissão o fogareiro com que aqueciam a sua marmita durante a hora de almoço, os condutores de fartos bigodes, orgulhosos apêndices capilares que resistiram incólumes à travessia entre os anos 7o e 90, os orgulhosos detentores de pendões futebolísticos que invariavelmente ocupavam o retrovisor, esse espelho de truques e ângulos espertos para vislumbrar as pernas das meninas do banco traseiro, e até os homens de fé, os verdadeiros e os que tinham mantido a santinha no tablier para não ofender as convicções do patrão, tudo isto foram coisas que sempre se integraram imperceptivelmente na nossa vida, às vezes como um espelho fiel do mundo que nos esperava no exterior quando abríamos a porta do táxi.

Ao ver um condutor originário do Leste da Europa não é também difícil chegar a algumas conclusões. Ao contrário de um trabalho na construção civil, por exemplo, a condução de um táxi exige o mínimo domínio tanto da língua como da geografia da cidade, pelo que é um tipo de trabalho que pressupõe um nível de integração que não se pode esperar de um imigrante temporário, mas apenas de alguém que já fez de Portugal, ou mesmo de Lisboa, sua casa.

Por outro lado, e se há características nos taxistas que são comuns e têm a ver com a cultura e hábitos da cidade, mais até do que do País (e Lisboa e Cascais são um bom exemplo), há outras que têm a ver com a origem e história de cada um. Os homens acima dos cinquenta anos, normalmente de bairros tradicionais de Lisboa, taxistas toda a vida, foram sendo progressivamente substituídos por quem vinha de todo o País e encontrava no táxi uma forma dura mas relativamente estável de ganhar algum dinheiro, a que se juntaram mais tarde brasileiros de vários tipos e proveniências, e essas mudanças acompanharam a forma como Portugal e a sua capital mudaram nos últimos trinta anos.

No caso dos homens de Leste, ao volante de definem-se pela escassez do verbo, normalmente apenas se dirigindo ao cliente quando não entendem o caminho e, e ao contrário dos seus congéneres autóctones sugerem imediatamente que o cliente indique a rota da sua preferência, não parecendo, no entanto, atrapalhar-se quando não lhes é indicada a forma de chegar ao destino, seguindo o caminho mais lógico assim que iniciam a marcha. São eficientes e silenciosos, uma boa inovação no universo variado de possibilidades que nos espera no lugar do condutor, literalmente da testemunha de jeová até ao esquizofrénico que adora o diabo e conduz sob a influência de substâncias proibidas, embora já tenha tido pelo menos um exemplo de como puxar conversa com um moldavo pode redundar numa crítica social cujo tom que não seria estranho um cinquentão da Madragoa ou da Mouraria.

De uma forma ou de outra, se este novo grupo de taxistas é um sintoma da forma como a minha cidade está a mudar, não é de todo um sintoma que me incomode. Como em todas as profissões é praticada por gente boa e por gente má, e não acredito que mudar a côr ou origem, dos condutores de táxi ou de qualquer outra profissão, altere a proporção de anjos e demónios entre cada um deles.

Disse que a ideia de fazer este post me surgiu a partir da minha última viagem de táxi, o que é verdade, mas há outra razão: há pouco uma amiga minha, que me tem dado o prazer de acompanhar atentamente o que escrevo aqui, e celebra hoje o seu aniversário, pedia-me que escrevesse alguma coisa para assinalar o dia. Se à primeira vista não parece haver relação entre as duas coisas, o facto é que ela regressou hoje mesmo do Cairo, seguramente um dos sítios do mundo onde eu já gostava de ter apanhado um táxi.

Thursday, October 28, 2010

Um eléctrico chamado Lisboa

Acabei agora de fazer algo que há uns bons anos não fazia, neste caso o percurso do escritório até casa de eléctrico. Tenho o meu carro na oficina, e um dos eléctricos da Carris passava providencialmente ao lado de um multibanco onde levantava dinheiro, pelo que entrei sem hesitar mas inteiramente por acaso nesta viagem que, mais do que trazer-me de Santos até Campo de Ourique, me levou a passear durante dez minutos pela minha infância e juventude.

Nasci no início da década de 70, portanto quando os carros eléctricos da Carris eram, mais do que uma curiosidade ou um meio de transporte utilizado por quem tem tempo disponível ou o privilégio de ter o eixo da sua vida a corresponder com uma das poucas linhas ainda existentes, uma das formas de locomoção preferidas dos lisboetas, indispensável antes do advento do crédito e da consequente democratização do automóvel, porque se hoje ter um carro é quase tão comum como ter electrodomésticos em casa, nos anos 70 a situação estava muito longe de ser essa.

No início dos anos 80 recordo-me da minha euforia infantil quando, juntamente com as minhas duas irmãs mais novas, aproveitámos todas as ocasiões que uma breve vinda de férias de Macau, onde então vivíamos, nos proporcionou para apreciar as colinas lisboetas dentro de um eléctrico, percorrendo a linha do início até ao seu final, dois pontos que normalmente coincidiam, esgotando a paciência da nossa Mãe quando reivindicávamos uma volta adicional depois de utilizado o primeiro bilhete.

Quando regressei, com os meus onze anos, apanhava todos os dias a carreira 28 para vencer a distância entre a casa dos meus pais e o colégio, cujo portão ficava em frente a uma curva apertada dos carris, circunstância que normalmente aproveitávamos para saltar do eléctrico em andamento.

Saltar de um eléctrico em andamento era aliás algo que qualquer pequeno lisboeta experimentava, com a cumplicidade dos amigos e sem os pais alguma vez sonharem, quando chegava aos dez ou onze anos, antes da paranóia da segurança e da real evolução do mundo ter levado a que as crianças deixassem de andar sozinhas pela cidade, pelo que me lembro como se fosse ontem da forma como aprendi a saltar após a tremenda queda que dei da primeira, e última, vez que o fiz sem perceber que tinha que travar no momento de contacto com o solo, inclinando o tronco para trás para contrariar o natural efeito da gravidade.

Quando cheguei à adolescência o eléctrico foi perdendo importância no meu quotidiano, substituído pelo táxi nas saídas nocturnas e pelo autocarro ou metro quando ia aos meus treinos de rugby, a única actividade diurna regular que me obrigava a percorrer distâncias maiores. Ainda aproveitei, nesta fase, o lado romântico da marcha lenta dos carros sobre os carris, e lembro-me perfeitamente, com dezassete anos, de ter decidido ir de Santos às Amoreiras pelo caminho mais longo, aproveitando a quase hora e meia que faltava para o início da sessão de cinema a que ia com a minha namorada da altura para dar um passeio pela cidade.

Hoje, num eléctrico que foi ficando progressivamente vazio até estar apenas eu e o condutor, o que não terá deixado de contribuir para a nostalgia que me foi assaltando, tive a clara noção de uma coisa: que Lisboa irá sempre continuar, a dominar as margens do Tejo como nos últimos quatro milénios, mas no dia em que os eléctricos deixarem de funcionar uma parte da cidade onde nasci e cresci terá, também ela, desaparecido.

Monday, October 25, 2010

Palavras presas

Às vezes há coisas que parece que sempre soubemos mas que, por uma ou outra razão, nunca expressámos em voz alta. Para mim, que gosto particularmente de palavras e do que se pode fazer com elas, os momentos em que constato isso mesmo, que acabei de descobrir uma nova expressão para algo que sempre soube mas nunca disse, são sempre especiais.

Foi por isso que há pouco, a conversar com uma amiga minha numa conversa aparentemente tão comum quanto pode ser uma conversa entre amigos a uma segunda-feira, quando o meu cérebro em particular não está disponível para seriedade ou profundidade, senti um desses momentos de revelação.

O momento surgiu a propósito de uma frase que ela tinha terminado com reticências, que eu interpretei, correctamente, como sendo o equivalente a um suspiro, dos que emitimos quando há algo que sabemos mas não queremos ou conseguimos dizer: ao referir como às vezes falam mais do que qualquer coisa que disséssemos ela pronunciou, certeira, que os suspiros "são as palavras que estão presas, e vão saindo aos poucos".

Saturday, October 23, 2010

Patriotas de esquerda

Nasci dois anos antes do 25 de Abril, por isso no período em que aprendi a falar e a explorar a língua portuguesa tive o privilégio de conviver com um vocabulário político mais alargado do que a maioria das crianças de hoje. Não era apenas a diversidade que fazia a diferença, mas também a forma como o uso de determinadas palavras nos conotava com a nossa posição no espectro político-partidário, havendo palavras que eram claramente de direita, e outras de esquerda.

O melhor exemplo disso é a palavra 'Pátria', usada até à exaustão pelo Estado Novo no seu discurso e propaganda, explorando o nacionalismo como factor de coesão e identificação, como aliás era próprio dos cânones da altura, dito de outra forma como se esperaria de uma ditadura conservadora em meados do Século XX.

Sempre me considerei um patriota, mas cresci numa altura em que a palavra não era de uso comum, e mais do que isso era usada por uns e nunca por outros, porque tinha uma conotação definida. As poucas ocasiões em que se dizia 'Pátria' em público, com entusiasmo e sem pudor, eram ironicamente essas grandes manifestações populares, frequentadas de igual forma por direita e esquerda, que são os jogos de futebol da Selecção, enquanto se cantava o hino nacional.

O mundo muda e evolui, e se no século passado o nacionalismo era o traço que definia as ditaduras de direita hoje esta associação parece ultrapassada, e é curioso ver como a China, esse bastião da construção do socialismo e modelo para tantos intelectuais de esquerda nos anos 6o, ou no nosso caso 70, usa o nacionalismo para preencher o espaço vazio deixado por um Estado com uma ideologia cada vez menos definida, que de comunismo apenas tem o nome.

No entanto, se se há coisas que não se alteram, e se mantêm constantes independentemente da força da mudança que as rodeie, uma dessas coisas é o Partido Comunista Português, que ainda há uns dias foi capaz de atacar o comité Nobel, por servir os interesses do capitalismo americano, ao dar o prémio da Paz a um dissidente chinês, julgado e preso pelo regime do país.

Do PCP espera-se que seja hoje, como em 1974, o último partido a recorrer a um léxico que não lhe seja familiar, e todos sabemos como com os comunistas a escolha de palavras nunca é acidental. Foi por isso que hoje, quando percorria as ruas do meu bairro, ao passar por uma sede do PCP aqui existente, apanhei uma das maiores surpresas da minha vida, ao ver o painel sobre a varanda, que dizia, claro e objectivo como é timbre dos comunistas, no seu inconfundível fundo vermelho e letras amarelas, foice e martelo na posição da ordem: "Com o PCP, uma política patriótica e de esquerda".

Wednesday, October 20, 2010

Ou vai ou taxa

Entre as múltiplos pequenos e grandes aumentos de impostos com que o Governo nos brindou, num dos mais pesados Orçamentos de Estado de que há memória, há um que parece recolher o repúdio unânime, neste caso da taxa que, incluída na factura de electricidade, temos que pagar para sustentar a RTP.

Todas as críticas apontam para a falta de sentido de custear uma empresa cronicamente deficitária, e quase toda a gente que ouvi pronunciar-se diz que se recusaria terminantemente a pagar a taxa se tivesse a possibilidade de o fazer, para além do argumento imbatível de que, claro, não faz sentido uma pessoa pagar se raramente vê a RTP. Sucede que este raciocínio é errado, e é errado porque está incompleto.

Para completar o quadro não vou falar da forma como o buraco financeiro da RTP surgiu, e mesmo descontando alguma má gestão que possa ter havido como o peso maior recai na sucessão vergonhosa de medidas governamentais desastradas, que primeiro, numa daquelas ideias populares e mal pensadas em que o cavaquismo foi fértil, extinguiram a taxa sem estudar alternativas (estudos posteriores revelaram que a RTP daria lucro com a exploração da publicidadde, já depois das privadas existirem, se a taxa se tivesse mantido), como se o problema de financiamento da televisão pública se resolvesse por si mesmo, depois levaram a RTP a vender a sua rede emissora à PT por um valor inferior ao que passou a pagar por dois anos de utilização, e finalmente persistiram no incumprimento constante, no tempo e nos montantes, do pagamento das indemnizações definidas pelo próprio Estado, o que obrigou a empresa a recorrer sistematicamente à banca para se manter em funcionamento (são situações destas que nos ajudam a perceber porque os lucros dos bancos portugueses parecem ser à prova de crise) que naturalmente não fizeram mais do que agravar o problema.

O raciocíno está incompleto porque aquilo que pagamos não é só a RTP-1, e se olharmos para o resto vemos que existe espaço para programação relevante que não tem audiência de massas, como é o caso da RTP-2, e existem canais internacionais que prestam um serviço valioso na defesa da língua e cultura portuguesas no mundo, porque não é preciso ser diplomata ou empresário para perceber que poder discutir a jornada anterior da Superliga antes do início de uma conversa séria num país africano tem o seu valor, ou o importante que é os filhos dos nossos quatro milhões de emigrantes saberem mais do País onde têm as raízes do que histórias antigas que ouvem da boca dos pais.

Está incompleto porque não devíamos simplesmente discutir se queremos ou não pagar tudo o que a actual televisão pública implica ou acabar com ela, porque a verdadeira opção a tomar nunca será essa, mas antes o que pode ser importante manter, e por isso merece ser pago, e o que não, e por isso deve desaparecer.

Se estudarmos o assunto podemos concluir que nem fará sentido manter um primeiro canal como o actual, concorrendo directamente com os privados numa situação dúbia em que a única diferença é a duração dos intervalos, resultando numa estação que deveria prestar serviço público mas está efectivamente tão refém dos seus resultados de audiência quanto os seus concorrentes privados, porque depende o valor dos blocos publicitários, e estes dependem directamente dos resultados, para atenuar o crónico défice financeiro.

Podemos também concluir que mais vale acabar com alguns canais, que não temos dinheiro para pagar mais que os que prestem efectivamente serviço público, e que o Estado apenas deve gastar dinheiro se a televisão servir para elevar o nível cultural da audiência ou para promover a língua e cultura portuguesas.

Podemos concluir que o contribuinte não tem que pagar nada, ou que tem que pagar tudo o que agora paga, mas essa não é a verdadeira questão.

A verdadeira questão é que temos que analisar o assunto como um todo complexo e que merece uma análise aprofundada, e não como um sound bite em que a conversa predominante é que ninguém devia pagar taxa porque de facto ninguém vê muito a RTP. Temos acima de tudo que evitar o mais fácil, que é parar o debate na frase consensual que alguém diz e toda a gente subscreve e repete sem pensar demasiado no assunto nem admitir discussão, seja o assunto televisão ou as despesas de saúde do País.

A verdadeira questão é que nestes tempos em que tudo é discutível, particularmente os investimentos, gastos e decisões que envolvem os nossos impostos e o nosso futuro, e mais do que isso em que tudo é contestável, é de todo desaconselhável vermos as questões a preto e branco, como escolhas entre positivo e negativo, porque há muitas coisas que precisamos de pôr a funcionar de uma forma diferente, e não que simplesmente desapareçam por não merecerem a nossa simpatia, e se passarmos a vida a decidir só entre certo e o errado, com base apenas no que sabemos ou achamos, sem considerar que haja coisas que nos escapam, muita coisa ficará pelo caminho.

Tuesday, October 19, 2010

Porque não aumentá-los?

Há um fio condutor comum de todos os ataques que se lêem e ouvem ao estado de coisas, e à forma nebulosa como muitas de pessoas na esfera pública parecem ter rendimentos muitíssimo acima dos outros portugueses e, este sim o verdadeiro problema, muito acima das suas aparentes capacidades ou qualificações. Em bom português, no aparelho de Estado, já para não falar desse mundo nebuloso das empresas públicas ou na esfera de influência governamental, há gente a mais, a ganhar dinheiro a mais.

A outra parte do problema, de que se fala menos mas que é patente tanto nos pequenos detalhes como nos grandes momentos — de que o melhor exemplo é o Orçamento de Estado que o próprio responsável político definiu como "o mais importante dos últimos 25 anos", entregue incompleto a minutos do prazo legal, depois de no ano passado, em mais um dos arreliadores problema informáticos que parecem perseguir este regime, ter sido entregue numa pen vazia — que é o da mais pura e simples incompetência grassar pelo escalão mais alto do Estado, começando no aparelho dos ministérios, que deveria representar a elite das pessoas que servem a causa pública, e acabando no próprio Governo. No fundo, o problema do regime é o da qualidade, do nível de qualificação de quem ocupa postos de responsabilidade.

Falarmos de falta de qualidade de alguns dirigentes e dos salários exagerados de outros leva-nos muitas vezes a confundir as coisas, e a aceitar a ideia que os políticos são demasiado bem pagos. Isso está errado, e é parte do problema. O presidente da República tem um salário bruto ligeiramente abaixo dos 7.500 euros, e o de um ministro representa 65% desse valor, ou perto de 4.900 euros antes de impostos, o que antes de ajudas de custo ou outros factores (já lá vamos) representará à volta de três mil euros limpos por mês.

Assumindo que o ministro deva ser a referência salarial daqueles que com ele trabalham directamente é razoável assumir também que, começando pelo chefe de gabinete, ninguém leve para casa ao final do mês mais de três mil euros de salário base. Quem tenha a mais pequena ideia de como funciona o governo sabe que em alguns gabinetes ministeriais trabalha-se muito, por vezes doze, catorze ou mesmo dezasseis horas por dia, portanto independentemente de outras considerações temos que assumir que se trata em muitos casos de um trabalho difícil e desgastante.

A questão, de que todos temos consciência, mas que evitamos sempre discutir é simples: não podemos pedir que os políticos sejam pessoas de qualidade pagando-lhes menos do que muitos administradores de médias empresas recebem por mês. É muito fácil comparar a remuneração do Presidente da República à do empregado de escritório, que recebe pouco mais que o salário mínimo, mas é perigoso e irrealista fazê-lo, porque o presidente ou chefe do Governo estão longe de ser dos salários mais desproporcionados relativamente à média dos portugueses, e há no País quem ganhe mais que o mais alto representante do Estado e mereça cada euro que recebe.

Pagar pouco aos políticos é triplamente perverso:

É perverso porque afasta pessoas capazes que não sejam economicamente independentes antes de ocuparem um cargo político, porque mesmo aceitando uma redução de rendimento por uma questão de serviço público os dois mil e muitos euros de salário de um secretário de Estado não pagam uma vida de classe média-alta num centro urbano, nomeadamente para quem tenha filhos, ou seja os compromissos que as pessoas potencialmente capazes de dar um contributo têm antes de ir para o Governo.

É perverso porque convida à artimanha para complementar um rendimento que é de senso comum ser inferior ao razoável, e aí entram as ajudas de custo, os cartões de crédito e outros mecanismos que apenas dependem da seriedade do utilizador para não serem usados abusivamente, convida à criatividade para remunerar irregularmente (recorrendo a institutos ou empresas externas em vez do próprio ministério) alguns assessores cujo salário foi nivelado pela anterior remuneração privada e leva ao efectivo desperdício de dinheiros públicos quando os ministérios têm que recorrer a assessorias externas, realizadas por empresas, para terem acessos às competências que não têm forma de contratar individualmente pelo seu custo real, para além de aumentar a permeabilidade do Governo face a influências do exterior, porque os mesmos consultores que apoiam o Estado não deixam naturalmente de aproveitar as oportunidades que surgem para conseguir tratamento privilegiado para os seus clientes privados.

E é, acima de tudo, perverso porque torna aceitável a ideia de que a verdadeira compensação financeira, que numa sociedade desenvolvida acompanha o sucesso em todas as áreas da vida profissional, é recebida após a política pelos contactos e experiência que se obteve, o que por um lado é um convite a que esta agenda e contactos se vão estabelecendo ainda enquanto o cargo é exercido, e por outro lado mina as fundações do que deve ser a independência do poder político face aos interesses económicos predominantes, agravando uma promiscuidade que nunca é totalmente evitável entre o dinheiro e a condução dos negócios do Estado.

É assim claro que se queremos qualidade na política temos, como sucede em qualquer outro domínio da vida moderna, de a remunerar de forma correspondente.

No entanto, e como vivendo em democracia limitarmo-nos a aumentar os políticos sem repensarmos a forma como a sua organização gasta o dinheiro é impraticável, e mais do que isso acarretaria o risco de não resolver o problema da qualidade, temos que pensar no que teria que mudar para que esta alteração produzisse uma mudança efectiva.

Há por isso cinco coisas que têm que ser salvaguardadas para que esta ideia possa ser viável:

Em primeiro lugar que as remunerações sejam fixadas de forma independente, porque qualquer salário fixado pelo próprio beneficiário tem sempre a sua credibilidade ferida na origem, e que haja uma entidade ou forma de fixação que não permita que os responsáveis políticos sejam, como são agora obrigados a ser, juízes em causa própria.

Em segundo lugar, que sejam adequadas à responsabilidade da função, ou seja comparáveis a remunerações equivalentes no sector privado, idealmente calculadas com base nestas, sem deixar de ter em conta que a possibilidade de prestar um serviço à comunidade e, porque não dizê-lo, e a oportunidade de influenciar o rumo político do País e alargar conhecimentos e contactos, levem sempre a que a remuneração pública não exceda o seu equivalente privado.

Em terceiro lugar, a estrutura que apoia o trabalho dos políticos, dos gabinetes ministeriais ao apoio aos deputados e grupos parlamentares, tem que ser reavaliada do ponto de vista organizacional, como se faria em qualquer empresa privada, definindo uma orgânica que resolva as efectivas necessidades de cada ministério e da Assembleia da República, evitado a contratação selvagem de assessores remunerados directa e indirectamente, diminuindo ao mínimo indispensável o recurso a prestadores de serviços externos para assegurar necessidades que a própria máquina estatal deveria suprir por si, e limitando a capacidade dos políticos reorganizarem à sua medida, a cada mudança de Governo ou até de cargo, o funcionamento do que são efectivamente estruturas públicas, diminuindo as perdas de eficiência que estes processos de mudança sempre acarretam, diminuindo o período de adaptação da máquina do Estado a cada novo responsável político e reduzindo a margem de desorganização que possa ser induzida pelas reestruturações feitas por políticos menos competentes.

Em quarto lugar, é necessária total e absoluta transparência, e todos os gastos dos gabinetes devem ser publicados online, no caso dos salários anualmente, e no caso dos gastos extraordinários mensalmente, evitando não apenas a suspeição e falta de crédito que sempre advém da opacidade como alguns excessos conhecidos à posteriori, como a conta de flores do gabinete do Primeiro Ministro, ou pelo menos que estes sejam feitos sem uma justificação clara.

Finalmente, porque o sistema precisa, mais do que nunca, de sangue e ideias novas, devia ser mudada a forma de contratação dos cargos de dependência directa de políticos, como sejam os gabinetes ministeriais e principais institutos públicos, aproveitando terem por norma uma duração finita, equivalente ao do mandato do político ou administração em causa, para criar a possibilidade de uma comissão temporária de serviço público, capaz de atrair pessoas de qualidade que não desejem fazer carreira permanente no Estado mas estejam disponíveis para prestar um serviço útil ao País durante um período definido, aproveitando a remuneração mais elevada para melhorar, como sucede com qualquer empresa, o nível qualitativo dos recursos humanos, recrutando pessoas no mercado de trabalho em geral e nas melhores universidades, como faz qualquer empresa de primeira linha, e não fechando a porta ao recrutamento interno, ou seja aos melhores funcionários públicos de carreira, deixando-os concorrer em igualdade de circunstâncias aos mesmos lugares, aproveitando as pessoas com genuína qualidade e empenho que (também) existem no Estado, e sua inestimável experiência do funcionamento da coisa pública.

É verdade que pela natureza sensível da actividade política, nas posições mais próximas dos decisores a confiança pessoal é essencial, pelo que teria que ser preservada a capacidade de escolha directa de parte dos colaboradores, mas a abertura do recrutamento atrairia muita gente capaz para os vários níveis do aparelho de suporte do Governo e Parlamento, e o próprio nível das pessoas que os responsáveis políticos, incluindo o Primeiro Ministro, poderiam convidar com sucesso subiria garantidamente.

O organigrama do Parlamento, Governo e Presidência e as formas de remuneração deveriam ser fixadas por um comité de sábios, um grupo de pessoas reconhecidamente capazes e independentes, de diferentes áreas políticas, com credibilidade técnica e experiência tanto na área pública ou governamental como na privada, comissão esta que seria nomeada com o acordo de pelo menos dois terços de apoio dos partidos com assento de parlamentar, sob compromisso dos dois maiores partidos de implementarem as respectivas recomendações.

Definir um quadro técnico claro para permitir uma decisão política transparente e aceite por todos não é um processo novo no nosso País, apesar de poucas vezes nos lembrarmos disso, e já produziu resultados no passado com outros temas, e em momentos menos graves que o actual, pelo que não há razões para não acreditar que uma iniciativa deste tipo não pudesse ser bem sucedida.

Tenho a certeza que se devida e aprofundadamente estudado este tema é resolúvel, no sentido em que é simultaneamente possível aumentar a qualidade dos políticos e reduzir desperdícios e ineficácias, ao mesmo tempo remunerando melhor quem preste serviço público e reduzindo o custo da estrutura necessária para legislar e governar o País. Enquanto a organização que é necessária para dirigir os assuntos do Estado mantiver as suas limitações actuais, e a salarial é claramente uma delas, a tendência para criar estruturas paralelas que possam realizar o trabalho que os ministérios não conseguem com a rapidez ou eficácia necessárias, continuará, e com esta o descontrolo na despesa e a proliferação de zonas cinzentas, com camadas de organismos que duplicam competências de ministérios a acumularem-se ao sabor das sucessivas conveniências políticas.

Tenho também a certeza de que uma medida destas contribuiria para moralizar a remuneração dos gestores e responsáveis de institutos públicos, porque os mecanismos de indexação que existiam para moderar os salários destes dirigentes associando-os ao salário do Presidente da República ou responsável do governo (existem 1.100 funcionários que ganham mais que o primeiro ministro) poderiam voltar a ser aplicados, uma vez que a respectiva remuneração fosse mais realista e condizente com a importância real dos principais cargos do Estado, em vez da actual situação, em que é admissível que o presidente do Conselho de Administração de um hospital público ganhe duas vezes mais que o Presidente da República, não porque o princípio em si faça sentido mas porque se assume que este último tem um salário irrealisticamente baixo.

Para resolver este problema é apenas preciso coragem para enfrentá-lo e explicá-lo à população, que é tudo o que tem faltado aos nossos políticos — veja-se a opacidade do acordo a que PS e PSD chegaram em Maio para as medidas do primeiro PEC, para ter um exemplo recente — nos caso de alguns políticos a coragem para deixar de lado a retórica que compara ordenados fabris a salários de governantes, e confiança na inteligência das pessoas para perceber o que está em causa. E é acima de tudo preciso noção de uma coisa: que ou aumentamos a qualidade dos nossos políticos ou a qualidade do sistema em si não melhorará, e muito dificilmente saíremos da actual situação com gente da qualidade da que actualmente ocupa os escalões mais altos do aparelho de Estado.

Monday, October 18, 2010

Quero o meu País de volta

Nasci em 1972, quando o regime era outro e o território do meu País ia de Vila Real às Portas do Cerco, que marcavam a fronteira entre o último bastião do império português e a China vermelho-vivo de Mao Tse Tung.

Em 1974, antes de ter idade para me lembrar de algo de forma substantiva tudo mudou, e as minhas primeiras memórias a sério são de um quotidiano agitado em que os Governos pareciam mudar todos os dias, palavras de ordem eram gritadas na rua e expressões como "povo", "camarada", "luta de classes" e "construção do socialismo" saíram de súbito dos livros de história, onde estavam em qualquer outro país europeu, e passaram a figurar no nosso vocabulário quotidiano.

Ao dia em que os tanques saíram à rua e o regime caiu sem sangue seguiram-se dois anos de catarse colectiva e de libertação da energia acumulada durante quatro décadas, o fim da guerra colonial que o povo e o exército já não queriam e a descolonização feita sem planeamento e sem pensar nos interesses dos portugueses que estavam em África, os excessos socialistas que ainda hoje pagamos no domínio económico e, acima de tudo, a descoberta da liberdade política para muitos portugueses, que como todas as descobertas não foi isenta de erros, abusos e problemas.

Fui com os meus pais para o Oriente, e vivi em Macau desde os primeiros dias de 1980, e para além do impacto que teve sobre mim o privilégio que então foi viver durante três anos num lugar que estava, comparativamente com Lisboa, muito mais próximo do primeiro mundo, ganhei um sentido, que nunca perdi, de que a nossa história, nacionalidade e língua são muito maiores do que o nosso quotidiano e infortúnios parecem indicar.

Lembro-me, ao regressar, da época do 'apertar o cinto', da intervenção do FMI sem a qual o Estado português teria entrado em insolvência, do Governo do Bloco Central que representou uma hoje impensável união para defender o bem maior. Lembro-me da euforia da direita à volta da candidatura de Freitas do Amaral, que mais do que tudo dizia como numa década o País tinha conseguido chegar a relativa paz consigo mesmo, e era possível não se ser de esquerda sem nos chamarem fascistas ou porem em causa as nossas credenciais democráticas.

Lembro-me de como a rodagem do Citroen de Cavaco Silva acabou no providencial líder da nova fase da nossa vida, e como o desconhecido ministro das finanças de Sá Carneiro cavalgou a vaga de centro-direita gerada pelas presidenciais para conseguir a primeira maioria absoluta da nossa jovem democracia. Reparei, nesse momento, que o PSD se alheou do pagamento das dívidas de campanha de Freitas do Amaral, que como homem honrado que era, como eram a maioria dos políticos de então, as pagou do seu bolso, com anos a fio de trabalho, não convocando conferências de imprensa nem fazendo da sua vida um queixume sobre a palavra a que lhe faltaram.

Foi aí, no final do primeiro Governo de Cavaco Silva, provavelmente o último governo com verdadeiro nível que este país conheceu, que começou a situação que agora vivemos. Foi a partir daí que a ocupação do aparelho de Estado pelo partido do Governo passou a fazer parte das regalias do vencedor, foi aí que germinou, nas privatizações e nos privilégios distribuídos a alguns, o regime cinzento em que o poder económico condiciona o poder político a seu favor e a nosso desfavor, foi aí que começou a espiral de perda de qualidade humana, intelectual e política dos homens e mulheres que nos governam.

Hoje sentimos ter batido no fundo. A política, uma das mais nobres actividades de uma sociedade civilizada, não é hoje em Portugal uma ocupação séria ou bem frequentada, e ninguém com qualidade profissional e intelectual que esteja no seu perfeito juízo arrisca o seu nome associando-se à corja que habita os aparelhos partidários e ocupa, em sucessivas camadas que as novas eleições nunca purgam e apenas reforçam, os vários níveis da administração local e central.

O problema central é de qualidade, e é demasiado gritante para admitir explicações bondosas. O Orçamento de Estado mais importante dos últimos 25 anos foi feito em cima do joelho, entregue fora de horas e incompleto, e o mais escandaloso é a forma como ninguém parece reparar ou exigir explicações sérias ao Primeiro Ministro por uma das mais escandalosas e terceiro mundistas demonstrações de incompetência de que me lembro.

A OCDE vem apregoar a necessidade de medidas draconianas no corte do défice, com o ministro das Finanças a assistir às declarações sem ter sequer o decoro de disfarçar a satisfação, e o que é mais escandaloso é a forma como ninguém parece reparar como se utilizou uma organização internacional para assumir a responsabilidade das medidas tomadas por quem elegemos, e como de caminho Portugal foi, neste processo, menorizado e humilhado pelas mesmíssimas pessoas que têm que defender o seu prestígio e posição no mundo.

Não vivo do passado e não quero o Portugal orgulhoso e poderoso que só existia nos livros de história e na propaganda do Estado Novo. Não quero que regressem os anos dourados dos descobrimentos ou do ouro do Brasil, porque D. João II só há um e o Brasil, esse sim, é a única garantia que a nossa língua manterá alguma importância no mundo do Século XXI, mas dar-nos-á apenas e só a importância que soubermos merecer. Não quero que estes senhores que agora mandam mudem de forma de ser, porque deixei de acreditar na sua capacidade para defender o nome de Portugal e o bem estar dos portugueses, e porque não tenho ilusões que alguma vez estejam intelectualmente preparados, para não falar de outro tipo de qualidades, para conduzir o País neste mundo complicado em que vivemos.

O que eu quero é outra coisa, ao mesmo tempo simples e dificílima de conseguir sem mudar tudo, e não vou deixar de a querer independentemente de como a situação evolua: quero o meu País de volta.

Sunday, October 17, 2010

A história que nunca acabará bem

Li hoje no Público que a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, assumiu o fracasso de criar uma verdadeira sociedade multicultural no país, afirmando que não foi possível conseguir uma sociedade que permitisse a convivência harmoniosa entre pessoas de diferentes origens, culturas e religiões, e apelando aos emigrantes para que "façam mais" para se integrar, dominar o idioma, conhecer a cultura e costumes, em suma transformarem-se em alemães em vez de transformarem, pela sua presença, a sociedade alemã em algo de diferente e mais diverso.

O discurso de Merkel, que seria sempre de assinalar pela negativa em qualquer país europeu, chama particularmente a atenção tratando-se da Alemanha, um país cujos últimos cem anos de história, e papel em duas guerras mundiais, não permitem nem ao mais optimista alimentar dúvidas sobre a seriedade da questão.

E se tratar-se da Alemanha leva o problema a ser ainda mais sério do que normalmente seria, esta preocupação agrava-se quando se percebemos que não se tratou de um deslize ou declaração solta, mas antes de uma posição de compromisso num debate nacional em curso no país, e que a aparente fraca defesa do direito à diferença, cultural ou religiosa, que define um país politicamente evoluído, tem que ter com a corrente dominante da opinião pública - trinta por cento dos alemães defendem o repatriamento de emigrantes, quase sessenta por cento que se limitem as práticas religiosas dos muçulmanos - que mostra clara predisposição para mesmo as posições mais intolerantes poderem ser aceites, ou pelo menos ouvidas, na sociedade alemã.

O problema maior é que não é apenas na Alemanha que isto sucede. A proibição dos minaretes na Suiça, a enorme polémica à volta do novo centro islâmico em Nova Iorque - que demonstrou não apenas o pior da sociedade americana mas também o melhor, pela forma intransigente como as autoridades da cidade colocaram a defesa da liberdade, neste caso de culto, acima da sensibilidade de uma nação que ainda não esqueceu o dia mais traumático da sua história - a violência espontânea ou organizada contra os muçulmanos e os seus locais de culto nos EUA e Europa contam uma história mais ampla e assustadora, de como a religião é cada vez mais uma força de divisão e não de tolerância, capaz até de separar ou descriminar comunidades há muito perfeitamente integradas, que são agora vistas com outros olhos e nova desconfiança pelos seus vizinhos de sempre.

A verdade é que esta não é uma questão que seja passível de ser vista a preto ou branco, e se as nossas liberdades e garantias são a matriz que nos distingue e dá legitimidade como civilização, temos também que conviver com o que é efectivamente uma enorme área cinzenta, de como lidar com um pequeno conjunto de radicais que as utilizam para nos atacar, subvertendo uma religião tolerante como o Islão para justificar a mais injustificável (porque cobarde, perpetrada contra civis inocentes) violência, e subvertendo os direitos que existem para nos defender de condutas incorrectas do Estado ou do Governo, ou seja para proteger a nossa liberdade, para atacar esse mesmo regime e ideias de liberdade.

A resposta não é simples e não será exactamente igual para alemães, americanos, franceses ou portugueses. Para além disso, neste contexto de recessão económica e aumento do desemprego, que sempre aumentam o ressentimento contra a mão de obra proveniente de outro país ou cultura, qualquer político ocidental enfrenta uma escolha difícil, entre defender a tolerância e correr o risco de perder votos e ser retirado do poder ou não censurar a opinião dominante e até juntar-se a ela, questionando a bondade ou até a viabilidade do multiculturalismo, como fez hoje Merkel.

A história diz-nos que são estes momentos que distinguem os grandes estadistas dos políticos medíocres. Ao ver a ameaça Nazi que se formava sobre a Europa Winston Churchill dedicou todas as suas forças a promover a ideia de que o Reino Unido tinha que se preparar para a guerra que aí vinha, e não podia em circunstância alguma confiar no governo alemão e em qualquer compromisso que este aparentemente estabelecesse. Foi ostracizado pelo próprio partido, uma mão provavelmente chegaria para contar os primeiros colegas de bancada que o apoiaram no parlamento, e realizou uma longa travessia do deserto, cujo desfecho, como todos sabemos, o tornaria no homem providencial a quem devemos, provavelmente mais que a qualquer outro, a vitória aliada na II Guerra Mundial.

Ao ver a senhora Merkel ou o senhor Sarkozy, já para não falar nessa colorida personagem de novela mexicana que é Berlusconi, cederem sistematicamente à tentação de agradar às suas opiniões públicas, expulsando emigrantes ou assumindo posições que põem em causa o seu papel na sociedade, entendemos um pouco o que deve ter sentido Churchill em 1938, quando as tropas nazis estavam já em território da actual República Checa, ao ver Neville Chamberlain, que o antecedeu como primeiro-ministro, regressar de uma conferência com Hitler em Munique e apresentar, com o ar de satisfação que ostenta quem cumpriu a sua missão, à chegada a solo inglês, o papel assinado por este, garantindo que as duas nações não voltariam a entrar em Guerra, perante o alívio e alegria gerais da população do País.

A verdade é que se a via escolhida para enfrentar o desafio do radicalismo islâmico for a da repressão, do profiling por critérios religiosos, da expulsão ou ostracização dos muçulmanos que vivem nos países ocidentais, os fundamentalistas estarão a ganhar a guerra, porque cada mesquita incendiada na Europa representará muitos novos recrutas para a causa, e este desfecho será tanto mais amargo quando tivémos, neste caminho, que abdicar de liberdades que tanto custaram a conquistar, derrotando-nos a nós mesmos, sem que no processo tenhamos de facto eliminado a ameaça que o terrorismo põe à nossa segurança.

Benjamin Franklin, um dos pais da nação americana, dizia que uma sociedade que está disposta a perder liberdade para ter segurança não merece nenhuma das duas. O problema, nestas coisas, é que é preciso homens de verdadeira visão para ultrapassar o medo que as sociedades, como as pessoas, têm do que não lhes é familiar. É preciso homens que vejam para além do seu próprio interesse imediato, e sejam capazes de arriscar o seu futuro político ou até a sua vida para defender o bem maior, e neste caso sejam capazes de perceber que a única forma de ganhar a guerra contra o terrorismo é com mais tolerância e integração, e não menos, mesmo que isto implique que alguns maus elementos vão abusar dessa tolerância para nos atacar.

Existem dezasseis milhões de muçulmanos em países da União Europeia, muitos dos quais não conheceram outro país ou cultura do que aquela em que actualmente vivem. Na próxima geração os líderes europeus terão que tomar decisões cruciais para o futuro destas pessoas, e com elas para o futuro de todos nós, e da Europa tolerante e aberta em que a maior parte de nós cresceu. A questão é complexa e não oferece respostas óbvias, mas uma coisa é certa: o sucesso vai depender dos líderes que escolhemos, porque a única coisa certa em tudo isto é que se continuarmos a ser conduzidos por gente de vistas curtas, como são a maioria dos actuais responsáveis políticos, quaisquer que sejam os desenvolvimentos seguintes esta história nunca acabará bem.

Thursday, October 14, 2010

A culpa é nossa

Nos últimos tempos o tom predominante do discurso público tem sido a revolta, pelo estado a que o País chegou e pela forma como a política nacional mais parece uma peça de teatro de mau gosto, em que final feliz algum salvará o desempenho dos protagonistas de uma avaliação vergonhosa.

Queixamo-nos do estado em que o Governo, este e os anteriores, deixaram o nosso querido jardim à beira-mar plantado. Queixamo-nos da forma sistemática como os militantes proeminentes do partido do Governo, deste e dos anteriores, ocuparam sem modéstia ou decoro todos os bem remunerados lugares da esfera do Estado, tanto a que sabemos existir como o nebuloso e incontrolável mundo-sombra dos institutos que duplicam competências do Governo sem o incómodo do controlo público e das empresas que dependem, por voto ou favor, dos vários ministérios, ocupando e alternando entre si as sinecuras mais cobiçadas, conquistando estatuto social e desafogo financeiro com base num mérito que apenas eles próprios e os seus próximos vêem.

Nesta voragem de culpabilização culpamos todos os que estão bem, sem distinguir se o sucesso chegou por mérito ou favor, se a via do conforto e até da riqueza vieram do que se sabe e se criou ou de quem se conhece e favoreceu. A raiva contra quem vence é própria dos invejosos, e sendo um dos traços negros do carácter nacional é também uma armadilha, uma das piores em que podemos caír, porque nos prende nas malhas da nossa própria impotência, alimentando o ressentimento de quem vê o sucesso sentado no lugar dos resignados, dos que decidiram morrer com a sua própria incapacidade de lá chegar, vivendo numa prisão que para alguns apenas existe no espírito, e para outros que é consequência lógica da nossa atávica pobreza, da inexistência de recursos e de capacidade ou tradição de educar convenientemente as massas, no fundo do nosso destino inevitavelmente medíocre.

Deixámos que a noção de que a porcaria é a regra minasse, de forma aparentemente irreversível, a nossa moral, destruindo a confiança mínima que uma sociedade civilizada tem que ter nas instituições que a separam da barbárie. Por todo o lado se ouvem gritos e palavras de ordem, agora amplificados com o novo megafone de babel da internet, da blogosfera às redes sociais, contra a corja que nos domina e parece ocupar todos os bons empregos, receber todas as benesses, e continuar a habitar um mundo imune a crises ou variações da inflação, numa existência desprovida da incerteza financeira quanto ao dia seguinte que acompanha o quotidiano a grande maioria dos portugueses.

Tudo isto parece certo e, no entanto, tudo isto está errado.

Está errado porque esta corja que suga, a diferente ritmo e intensidade, mas com igual tenacidade, do administrador indicado pelo Governo ao funcionário sem rosto, função ou utilidade prática, o sangue vital da nossa economia, o capital gerado pela proporção exagerada que o Estado captura dos nossos já magros proventos e pelo crónico endividamento público, esta corja de que nos queixamos e que diariamente atacamos sem quartel, esta corja que consegue reunir o ódio unânime dos portugueses como poucas coisas, esta corja de que se fala, somos todos nós.

Está errado porque sempre somos moralistas em causa alheia e raramente em causa própria. Os mesmos portugueses que são capazes de apanhar dois autocarros para participar numa manifestação não recusariam, no dia seguinte ou uns anos depois, um lugar bem remunerado na farta teta do erário público que um primo ou amigo bem colocado lhes fizesse aterrar no colo.

Está errado porque adiamos as decisões difíceis esperando adiar as consequências, começamos por pedir crédito para ter dinheiro para as férias ou comprar outro carro, acabamos a pedir outro crédito para pagar os excessos do anterior, encomendamos um trabalho que não sabemos como vamos pagar, e depois de tudo isto esperamos que quem elegemos para nos governar actue de forma diferente, e surpreendemo-nos quando não o faz, e quando o País sofre as consequências de se ter endividado consistente e irremediavalmente durante quase quatro décadas.

Está errado porque culpamos os políticos por não terem coragem ou tomarem medidas difíceis, por não fazerem as reformas que têm que fazer, mas seríamos incapazes de dar o leme a alguém que dissesse que cem mil pessoas terão que passar de um emprego pago pelo Estado para um futuro incerto para que o País funcione eficazmente, e não desperdice o dinheiro de todos.

Está errado porque somos capazes de protestar relativamente aos exagero de impostos que pagamos mas não de questionar a saúde e educação praticamente gratuitas, as auto-estradas às quais não queremos que regressem portagens ou qualquer coisa que não sejam os privilégios e mordomias da classe dominante, ou dito de outra forma todos os privilégios a que nós próprios não temos acesso.

Podemos continuar a viver como até aqui, e qualquer pessoa inteligente dirá mesmo que esse é o desfecho mais provável, senão mesmo o único possível, e aí, com maior ou menor intensidade consoante a altura da vaga que fustigue o País a cada momento, a culpa será sempre dos outros, "deles", da corja.

Ou podemos mudar, e assumir que a corja somos nós, que ao apontar um dedo a quem nos governa temos três dedos apontados para nós mesmos, que o sucesso não existe sem passar por sacrifícios, que o emprego ideal é aquele em que trabalhamos mais e somos compensados por isso, e não o que atrapalha o menos possível a nossa vida e apesar disso nos remunera bem, que aqueles que elegermos serão sempre o nosso reflexo, pelo que é a cada um de nós que cabe praticar o exemplo que gostava de ver dado pelos que nos deveriam liderar.

Um céptico, ou alguém que simplesmente conheça a nossa história, dirá que nunca perceberemos isto, e que as coisas nunca mudarão, porque não existe vontade ou expectativa de que efectivamente mudem, porque não existem recursos ou capital intelectual para produzir a riqueza necessária para progredirmos, porque preferimos uma existência pobre e previsível ao risco implícito na ambição.

Normalmente sou céptico, mas neste tema também me lembro sempre de uma frase, a de na vida termos que optar entre tentar mudar, por pouco que seja, o nosso País, ou mudarmo-nos para outro. Por isso, resistindo ao cepticismo só me apetece dizer: se isto é assim, e se os culpados somos todos, se temos que nos questionar se recusaríamos um salário de duzentos mil euros para um lugar para o qual não somos qualificados antes de poder criticar quem o faz, se percebermos que a corja somos nós é o primeiro passo para acabarmos com ela, então, nesse caso, quanto mais cedo nos apercebermos disso melhor.

Monday, September 27, 2010

A ratoeira de Sócrates

Os últimos dias têm-nos recordado do distante que está a silly season, e como à ausência de notícias relevantes se sucedem agora acontecimentos nos quais é difícil não reparar. O último tema a ocupar a arena tem sido a discussão do Orçamento de Estado, ou mais propriamente a forma como o Governo ameaça demitir-se caso não chegue a acordo, com o principal partido da oposição, para garantir a respectiva aprovação na Assembleia da República.

Já estamos habituados a alguma dramatização na discussão de um Orçamento sem um governo maioritário, mas desta vez algo parece diferente. As posições duras dos principais responsáveis políticos do Governo, Primeiro Ministro incluído, a aparente quebra de confiança pessoal entre Sócrates e Passos Coelho a propósito do que escapou para a imprensa sobre a respectiva negociação a dois (a ponto de PPC afirmar que não se encontrará novamente a sós com o líder do PS) e a forma como o PSD se parece demarcar das tentativas de conciliação de Cavaco Silva indiciam que desta vez, ao contrário do habitual, existe a possibilidade real do Governo se demitir num momento de enorme fragilidade da nossa Economia e finanças públicas.

Não sei, e neste caso apenas duas pessoas no País sabem, e uma delas disse que não voltava a encontrar-se sem testemunhas perante a outra, qual a real vontade do PS e PSD de chegar a acordo sobre o Orçamento, mas tenho uma explicação possível, uma tese que resulta, em termos simples, nos dirigentes socialistas estarem a brincar connosco, com o nosso trabalho, com os nossos impostos, e em suma com o nosso País.

Como todos sabemos esta crise orçamental foi desencadeada porque o PSD não quer aprovar o orçamento sem obter garantias de redução da despesa necessária para cumprir o PEC, nomeadamente porque é claro que o Governo se prepara para resolver parte do problema pelo lado da receita agravando a carga fiscal, como o próprio PS acabou por confirmar. Aqui não há novidade, a própria Comissão Europeia manifestou dúvidas sobre a eficácia das medidas que Portugal anunciou para reduzir a despesa, ao que o Governo já disse que iria anunciar futuramente as medidas adicionais exigidas pelas metas de redução da despesa.

Passos Coelho defende os interesses do País mas, como qualquer político, defende-os intransigentemente porque coincidem com os seus próprios interesses, já que se a besta sorvedoura de recursos que é o Estado português, e a sua despesa corrente incontrolável, não for devidamente açaimada neste momento, o líder do PSD dificilmente terá, quando se sentar na cadeira do poder nas próximas eleições, condições mínimas para fazer algo de substantivo, porque para além de cortar a direito na despesa terá que aumentar ainda mais, ou pelo menos não reduzir, os impostos. Este caderno de encargos obriga-lo-á a adiar a concretização das suas interessantes (embora dificilmente aplicáveis num País em que o Estado paga 700.000 salários) ideias liberais, que assentam na redução do peso do Estado e da carga fiscal que asfixia o País, como obrigou Durão Barroso a adiar o seu choque fiscal, porque só reduzindo o desperdício do Estado é viável diminuir a forma como a coisa pública suga o sangue da economia, libertando meios e recursos que serão melhor empregues pelas pessoas e empresas.

Sócrates, por seu lado, é reconhecidamente um sobrevivente, e bastou ver há umas semanas Francisco Assis, com aquele seu ar de burguês alimentado a croissants, a perorar sobre o "ataque ao estado social" perpetrado pelo PSD, o que para corresponde a acusar de homicídio de um cadáver alguém que ainda não chegou ao local do crime, para perceber que o Primeiro Ministro escolheu a luz que o poderá guiar até ao fim do túnel.

O que suspeito é que Sócrates está a procurar esta crise porque sabe que este é o momento ideal para assar Passos Coelho em lume brando, porque o seu tema de campanha, de colocar a opção entre os dois partidos como uma de escolher entre a defesa e a destruição do "Estado Social", está já bem definido, com a infeliz contribuição do próprio líder do PSD, com um processo de revisão constitucional que é tão feliz nas ideias válidas e na necessidade de discussão de temas importantes, como a capacidade do Estado de pagar serviços gratuitos para todos, como infeliz no timing e forma como foi lançado.

Sabendo que Passos Coelho não pode arriscar-se a aprovar qualquer Orçamento do Governo, sob pena de não poder dissociar-se dos respectivos resultados em futuras eleições, o líder do PS reserva para "mais tarde" as medidas que irá tomar para reduzir a despesa, precisamente o ponto onde os sociais democratas exigem clarificação. O cálculo é que, pressionado por Cavaco, pela conjuntura internacional e pelo cada vez maior prémio de risco que o Estado paga para se financiar, Passos Coelho acabará por aceitar, e assim parecerá alguém que tomou uma posição de força e no fim acabou por ceder, e pactuar com o Governo e com a situação, certamente deplorável, em que o País se encontrará dentro de um ano, quando passadas as presidenciais se devem realizar novas legislativas.

Se, por outro lado, não aceitar, e o Governo acabar por se demitir, fazendo adensar o fantasma da intervenção do FMI e aumentando ainda mais o já de si estratosférico custo do dinheiro para Portugal, que num país de proprietários hipotecados se prolonga rapidamente do financiamento do Estado para as prestações bancárias dos cidadãos, Sócrates pode colocar-se na posição onde qualquer político gosta de estar, a vítima injustiçada a quem não deixaram fazer o seu trabalho, e conseguirá o feito de etiquetar simultaneamente Passos Coelho como irresponsável e defensor da extinção da função social do Estado, uma ideia que, num país de funcionários e reformados como o nosso, tornará a eleição do líder do PSD impossível se uma fatia razoável do eleitorado a achar credível.

Encurralado entre duas más escolhas sem proveito, empurrado para uma solução por um Cavaco Silva que soma o seu reconhecido horror a qualquer tipo de trapalhada com a necessidade de salvaguardar uma vitória eleitoral que está neste momento assegurada, Passos Coelho arrisca-se a saír desta história com uma imagem de fraqueza, por ter cedido depois de uma posição de princípio, ou de irresponsabilidade, por ter sido o maior culpado da queda do Governo, e de tudo o que se lhe seguir.

Sócrates sabe que a sua melhor hipótese de sobrevivência política é agora, e quase se pode dizer que será agora ou nunca, pelo que é o principal interessado em provocar esta crise. Dentro de um ano, face à manutenção do problema que agora vivemos, passada a histeria do "ataque ao Estado Social" e quando a expressão "tendencialmente gratuito" tiver regressado ao seu lugar obscuro no dicionário, o Primeiro Ministro sabe que não apenas o País como o seu próprio partido já estarão a pensar na sua inevitável substituição.

Num País a sério o primeiro ministro e o líder da oposição discutiriam a reforma da função social do Estado, e explicariam aos portugueses que quem em três décadas passou de duas ou três centenas de milhar para dois milhões de pensionistas não pode manter um sistema de reformas viável se não o repensar. Num país a sério, e perante o risco real do Estado deixar de se conseguir financiar, os cortes difíceis mas indispensáveis, que exigem consenso alargado, seriam decididos antes, ou no mínimo em simultâneo, com o Orçamento de Estado, e seriam anunciados de forma clara e transparente perante agentes económicos e eleitores.

Sucede que este nem sempre é um País a sério, pelo que aquilo que acabamos por discutir não é a via de resolução da crise, ou que forma deverá tomar a indispensável reforma do Estado, mas antes de forma como Sócrates montou, com a inteligência política e instinto de sobrevivência que lhe é característico, uma brilhante ratoeira para apanhar Passos Coelho e explorar a única via possivel para se manter no poder. O problema, nesta história, é que os ratos não são os dirigentes do PSD, mas todos nós, que continuamos a pagar esta loucura com o nosso trabalho e impostos.

Wednesday, September 15, 2010

Presumível inocente

Não costumo gostar de me envolver numa discussão quando esta é o tópico mais importante do momento, nem de dar atenção ao que toda a gente parece dar em determinada altura, e naturalmente essa forma de ser acaba por se reflectir na escolha das ideias que me ocorre passar para a escrita, nomeadamente a que ponho aqui.

Uma boa discussão acalorada, como só as discussões entre amigos podem ser, e um debate no Facebook com um outro amigo acabaram por me levar a abrir a excepção, no caso sobre a mãe de todos os processos mediáticos, o processo Casa Pia, ou mais concretamente sobre o facto dos arguidos aguardarem o recurso em liberdade.

O que me levou a abrir a excepção foi no calor do debate os meus amigos (cuja argumentação não vou expôr aqui, por razões óbvias) terem questionado, entre outras coisa, se a presunção da inocência dever ser levada à letra em casos tão graves quanto este, e se faz sentido existir esta quantidade de salvaguardas e recursos, que os acusados podem dispôr até terem efectivamente que pagar o seu preço à sociedade, isto assumindo que o processo não chega a prescrever.

Começando pelo princípio, os arguidos que foram dados como culpados em primeira instância não estão a aguardar o recurso em liberdade porque o sistema não tenha um mecanismo para os prender, mas porque esse mecanismo, a prisão preventiva (que se pode prolongar até aos dois anos), foi já esgotado pela demora inadmissível de um processo que demorou sete anos até gerar uma conclusão. Quando o primeiro grande processo de pedofilia dos tempos modernos veio a público na Bélgica, nos anos 90, o julgamento foi concluído em quatro meses.

Em segundo lugar, e esgotado o limite legal - que, recorde-se, para além de deter criminosos permite deter um inocente como presumível culpado durante dois anos - de prisão preventiva, o estatuto de presumível inocente deve prevalecer, e o princípio geral sobrepor-se ao caso particular, independentemente da respectiva gravidade.

Quanto à possibilidade de recurso a instâncias superiores, que em última análise só protelam a condenação dos culpados, acho que qualquer pessoa razoável sabe que a justiça, por ser administrada por homens, é inerentemente falível, e parece-me também evidente que a possibilidade de erro diminui quantas mais instâncias existirem para verificar que a Lei foi correctamente aplicada, como ajuda a provar cada caso em que o Supremo Tribunal decide de forma contrária ao julgamento inicial.

Prefiro viver com um sistema cujas salvaguardas, mesmo permitindo excessiva liberdade aos culpados em alguns momentos, garantam a liberdade dos inocentes, porque por mais horrendo que seja o crime que alguém cometa, as regras pelas quais ele será julgado aplicam-se, de uma forma ou de outra, a mim ou a qualquer outra pessoa de bem.

Nada disto significa, no entanto, que eu não concorde com os meus amigos quanto ao inadmissível que é um pedófilo aguardar em liberdade após ser dado com culpado num julgamento, ou partilhe da sua indignação pelo estado a que a justiça chegou, e entendo a sua frustração por sentir que no fundo os culpados saem impunes por mais algum tempo. Só acho que a culpa não está nas liberdades que o sistema garante, e muito menos nas suas salvaguardas, o problema está na ineficiência que leva a que um processo destes se prolongue por tempo suficiente para arrastar consigo a vida de todos, inocentes, culpados e vítimas.

O problema está nas leis que regem o funcionamento do sistema, está nos processos, nos meios, nas pessoas que não escondem sequer transportar muitos dos vícios que marcam o resto da nossa sociedade, onde a luta entre grandes egos e pequenos poderes impera sobre o esforço em prol do bem comum, está na necessidade de fazer uma mudança profunda em algo que se vê claramente que não funciona.

Não tenho opinião formada sobre quem é ou não culpado, e embora o tema da pedofilia me horrorize e preocupe há muito deixei de lhe dar atenção quotidiana a este caso, não perdendo muito tempo a acompanhar os factos relatados na imprensa. O mundo está cheio de coisas interessantes para acompanhar, e esta não é definitivamente uma delas.

Se não dou atenção ao caso o mesmo não se pode dizer da forma como o processo decorre. Voltar-me-ei a debruçar sobre o assunto com atenção quando chegar a decisão do Supremo, porque aí serei, como seremos todos, obrigado a fazer contas sobre a confiança que a nossa justiça nos merece, o que em última análise determina boa parte do nosso respeito pela legitimidade do Estado nos punir pelas faltas que cometemos, de forma equilibrada e tratando todos os cidadãos de igual modo.

A moral de toda esta história, não do caso Casa Pia em si mas da forma como a opinião pública e publicada reagiu, tem a ver com algo de mais profundo, que foi apesar de tudo o que me provocou a reacção na discussão que deu, por sua vez, origem a este post.

A causa mais funda é que, a exemplo do que acontecia na Idade Média ou no velho Oeste, é que quando vê criminosos a caminho da forca a maioria de nós coloca-se num de dois papéis, o espectador silencioso que aguarda pela execução com curiosidade mórbida ou o activista que grita por sangue e está pronto a linchar o malfeitor. Nunca nos colocamos na pele do suspeito, do culpado que é sempre presumível inocente, e ao evitar este simples exercício de nos imaginar no lugar dos acusados tornamos fácil e natural qualquer atropelo à liberdade dos inocentes que sejam apanhados nas malhas do sistema.

Em suma, quando defendo a liberdade de um suspeito de um crime, por mais horrendo que este seja, e por mais provável que pareça a sua culpa, não o faço porque seja um liberal, e até o sou, mas antes porque estou a defender a liberdade de todos, a começar pela minha própria.

Tuesday, September 14, 2010

Zapping iraniano

Comecei há uns dias a ler um livro intitulado 'The Age of Speed', que analisa o progresso humano pelo original, e a julgar pelas primeiras páginas interessante, ponto de vista da velocidade, ou mais concretamente da necessidade que sempre tivémos de acelerar todas as actividades em que nos envolvemos, seja uma viagem transatlântica ou a espera pelo check in no aeroporto.

Todos sentimos já alguma ansiedade pela forma como por vezes parecemos atropelados pelo excesso de velocidade e informação do mundo de hoje, que parece transformar-nos em máquinas de zapping, com dificuldade crescente em concentrar tempo e atenção num só pensamento ou actividade, eternamente a saltar de um estímulo para o outro sem conseguir deter a marcha num único local.

Há no entanto momentos que nos recordam que nem tudo é mau nesta mudança. Há pouco, ao ler uma (para não variar) excelente reportagem do Economist sobre as movimentações na cúpula do poder no Irão, dei por mim a googlar o personagem de destaque, no caso braço-direito do presidente Ahmedinejad, e a viagem que se seguiu pelos links da Wikipedia levou-me a ver as biografias e intervenções recentes de vários responsáveis-chave da estrutura de poder, na tentativa de entender pelo menos superficialmente o percurso e ideias de cada um.

Não o fiz por acaso, mas porque a vida dos persas me interessa desde que, ainda adolescente, e muito por culpa de um romance de Gore Vidal (Criação) que é um dos livros da minha vida, ganhei um fascínio particular pela sua história e império, que os acontecimentos de Junho do ano passado apenas tornaram mais intenso e profundo, pelo que teria sido sempre possível que noutras circunstâncias tivesse querido, como agora quis, aprofundar o tema. Foi ao aperceber-me disso que reparei que há apenas vinte anos teria gasto incontáveis horas e algumas deslocações a bibliotecas, livrarias e arquivos de jornal para conseguir a informação que obtive num passeio de meia hora pela internet. E aí lembrei-me que viver nesta era do zapping tem as suas vantagens, porque para além de saltar entre novelas, séries e filmes agora podemos, sem sair do sofá e da mesmíssima inactividade, usá-lo para perceber quem são os homens que determinarão o futuro dos iranianos, ou em última análise o de todos nós.

Turismo da estupidez

Vi ontem na SIC uma reportagem que me incomodou, e não apenas por ser mais uma demonstração de como eram acertadas as palavras de Einstein sobre o carácter infinito da estupidez humana, mas também pelo que diz sobre quem consome as noticias, ou pelo menos sobre a forma como a redacção de um canal de sinal aberto nos é capaz de ver.

Sob o ilustrativo título "Turismo de Guera", a reportagem do correspondente da estação em Israel abordava a forma como europeus, americanos e japoneses com tempo e rendimento disponíveis visitam a linha da frente do conflito israelo-palestiniano, usando os seus euros, dólares e ienes para o que poderíamos supor ser um aparente misto de turismo aventura e preocupação legítima quanto à situação que se vive naquela parte do mundo.

Basta uma imagem, o plano claramente assassino de um grupo de turistas ocidentais sorrindo confortavelmente refastelados, em amena cavaqueira, à sombra de uma árvore, assistindo ao encontro dos manifestantes, aqui promovidos a atracção turística, com o gás lacrimogéneo do exército israelita, para desfazer qualquer ilusão sobre o espírito da reportagem e entender que esta asssenta em reduzir com toda a naturalidade o conflito mais determinante dos nossos dias a uma atracção de circo, com a adrenalina adicional de não haver grades entre o público e os leões, mesmo que o briefing antes da manifestação deixe claro aos nossos amantes de turismo-aventura que se não estiverem junto a um palestiniano que se dedique ao arremesso de pedras aos israelitas não correm o risco de serem baleados.

Mais do que a enorme leviandade como se faz desaparecer a fronteira entre o sério e o divertido, entre a raíz da relação tensa do Islão com o mundo cristão e mais uma excentricidade permitida pelo tempo e dinheiro que temos a mais, o que me impressionou foi a forma como a redacção da SIC promove e deixa passar este tipo de abordagem, o que se diz algo sobre os jornalistas envolvidos no processo, e falamos de uma classe cujos melhores elementos merecem o maior respeito da sociedade, diz muito mais sobre a forma como eles nos vêem, capazes de consumir sem pestanejar este enlatado surrealista a que quiseram chamar reportagem, sem questionar sequer a sua lógica.

Quero ver se algum dia o conflito latente entre religiões e civilizações que marca o dia-a-dia do mundo em que vivemos, e lança sombras que ninguém nega sobre o nosso futuro e dos nossos filhos, se traduzir em guerra efectiva e nos filhos e filhas dos europeus a morrerem em combate, haverá alguma luminária a pensar levar intelectuais e burgueses com rendimento disponível à frente, e um idiota com uma câmara e um microfone a fazer, com o beneplácito de um chefe de redacção que vê o seu público como uma massa pouco educada e atenta, uma reportagem sobre "turismo de morte".

(A malfadada reportagem aqui, um pouco antes do minuto 10)

Saturday, September 4, 2010

Depressão pós-férias

Estamos nos últimos dias de Agosto, e eu nos últimos dias das minhas curtas férias de praia, quando o zapping estival me leva a aterrar numa notícia do telejornal TVI que proclamava, certeira, "fim das férias pode dar lugar a depressão".

Para muitos dos que assistiam à televisão a "depressão pós-férias", um neologismo de duvidoso valor científico que me pareceu mais provável ter sido forjado na reunião editorial da estação televisiva do que nas páginas de uma qualquer publicação especializada em psicologia ou psiquiatria, representava mais um episódio da técnica, que os media usam recorrentemente e com doses cada vez mais reduzidas de pudor, de criar notícias que se associem de forma directa e linear ao que pensa e sente a audiência, no caso uma audiência que no dia anterior se deitou no último Domingo de Agosto, para milhares de pessoas o dia mais representativo do fim do periodo de descanso anual de que a maioria de nós aprecia.

Não vou discutir a falta de critério e exigência que leva quem devia produzir informação a relatar acontecimentos que só um olhar excessivamente bondoso poderia remotamente classificar como notícias, mas inquieta-me ver travestida de informação, e assumida assim como natural, a facilidade como o que é um quadro clínico cientificamente válido, legitimamente aplicado a explicar casos em que o nosso cérebro diminuiu ou mesmo retirou as condições mínimas para sermos funcionais, é aplicado levianamente para elevar a problema real qualquer ligeiro desconforto da nossa existência.

Preocupa-me viver numa sociedade que promove constantemente a desculpabilização como forma de vida, onde uma criança que não está atenta às aulas e tem maus resultados sofre sempre de défice de atenção e não de simples falta de disciplina e empenho, onde o foco do sistema de ensino é evitar o trauma da reprovação e não premiar os que se esforçam e adquirem conhecimentos (com a inevitável punição dos que não o fazem), onde as dificuldades de reajustamento entre o ritmo pausado das férias e o regresso à rotina de trabalho são associadas a um quadro clínico sério, associação que mais não faz do que reforçar a mensagem subliminar de que a nossa existência deveria ser tendencialmente fácil e livre de inconvenientes.

Preocupa-me acima de tudo porque qualquer pessoa com a mínima noção do que a rodeia já terá percebido que o nosso mundo, o do hemisfério ocidental, terminou um ciclo de mais de meio século de crescimento, riqueza e previsibilidade em que o nosso padrão de conforto e bem estar não parou de progredir, e que os nossos filhos e netos terão que trabalhar mais, sofrer mais, e dar cada vez menos por garantida a prosperidade dos dias que os aguardam.

Ao ouvir a notícia da TVI ocorreu-me que há pouco mais de um século conceitos hoje tão enraízados e inquestionáveis como os subsidios de desemprego, as pensões na velhice ou as próprias férias eram pura e simplesmente inexistentes, e quão rídicula que seria ainda há poucas décadas a premissa de que houvesse um quadro clínico legitimamente associado ao regresso ao trabalho quotidiano.

Ocorreu-me ainda outra coisa: uma sociedade que enfrenta o trabalho como um mal necessário e não como uma via para o progresso, que continua a ter como objectivo colectivo o mínimo esforço para a máxima recompensa, ignorando que do lado oposto do mundo centenas de milhões de pessoas se esforçam com um empenho que só a memória recente da fome confere, estará condenada a prazo a deixar de sofrer de depressão pós-férias, porque mesmo acreditando na existência do mundo ideal dos telejornais da TVI todos acabaremos por perceber que só teremos uma vida minimamente satisfatória se soubermos aproveitar os momentos em que trabalhamos, em vez de estar em permanente contagem decrescente para o período seguinte de inactividade.

Tuesday, July 27, 2010

Beira Mar

Todo o tempo tem o vento
que passeia e sobre a areia
sobre as almas ao relento
sobre as ondas que rodeia

Todo o tempo tem o mar
com o som que nos afaga
sob um banho de luar
enquanto se esbate na fraga

Todo tempo tem o Sol
que aquece e alumia
que nos embala e revolve
como numa fantasia

Pouco tempo tem o corpo
que o teu calor aquece
mas é este o seu porto
a praia que não se esquece

Monday, July 26, 2010

Not so free after all

Li há pouco um artigo, da mais recente edição do Economist, que me deu que pensar. O artigo de abertura, que enquadra o desenvolvimento do tema da capa ('Why America jails too many people') relata um episódio perfeitamente kafkiano, passado em 2000, de quatro americanos que foram levados a tribunal por terem importado lombos de lagosta embalados em sacos de plástico, em vez das caixas de cartão estabelecidas na regulamentação do respectivo país de origem. Três deles foram condenados a oito anos de prisão, dois ainda cumprem pena.

No artigo o Economist coloca, com a sua habitual e impiedosa precisão, o dedo na ferida, referindo a forma como os EUA tanto conseguem ser um País a admirar genuinamente nalguns domínios como merecem a mais justificada das críticas, pelas distorções que não apenas criam como agravam e por vezes eternizam. O caso específico relatado pelo jornal deriva da Lacey Act, uma lei que penaliza os americanos que vão contra regulamentos estrangeiros nas áreas da caça ou pesca. No fundo, uma lei criada para evitar que um cidadão americano pudesse, por exemplo, contribuir para o comércio não-autorizado de espécies em perigo não cobertas pela legislação do seu País, é hoje usada com um zelo que provavelmente não estaria nas cogitações mais longínquas do seu autor original.

Na terra que inventou o sound bite, em que as mensagens politicas são pensadas para ser eficazes, logo primando pela simplicidade e universalidade, de preferência associadas a necessidades básicas ou receios primários dos eleitores, situações como esta são fáceis de explicar por quem tenha uma visão minimamente panorâmica, e o Economist tem-na de sobra: neste caso a raíz do problema assenta no ciclo vicioso que se cria quando se estabelece que um político tem que ser "duro com o crime", tendo como único efeito que cada fornada de decisores tenta tomar posições mais duras que a anterior, quanto mais não seja porque se convencionou que o inverso é um suicídio político, mesmo que mudar uma lei injusta ou ilógica seja uma questão de pura e simples racionalidade.

O Supremo Tribunal americano acaba assim por funcionar como o último guardião da racionalidade, e se nalguns casos acaba mesmo por desfazer as leis sem sentido — porque com nomeação vitalícia e o estatuto e independência que desta advém os juízes, se preocupam mais na influência que têm sobre a lógica do Estado de Direito que garantem do que com o sabor do dia da opinião pública — não é obviamente o suficiente para evitar a quantidade e variedade de excessos em que incorrem legisladores ávidos de sangue e galões pró-segurança.

Comecei por reparar neste assunto porque, liberal como sou, reparo sempre na reacção, ou melhor na ausência dela, que se regista em Portugal quando estão em cima da mesa de discussão política temas que de uma forma ou de outra afectem a nossa liberdade individual. Mas vendo mais além este é também um exemplo de como, para bem ou para o mal, as nossas percepções afectam as nossas atitudes, e se no nosso caso em particular não temos a percepção de qualquer ameaça potencial às nossas liberdades, e se acreditamos que somos de facto uma democracia civilizada e respeitadora do espaço de cada um, a nossa atitude será sempre influenciada por essa ideia, criando o terreno fértil para que qualquer político consiga roubar-nos liberdade, desde que seja suficientemente inteligente para cuidar que não nos apercebemos disso.

O problema da percepção é que é a maior das armadilhas, e o problema da política moderna é que sabendo que quase tudo se joga na percepção, dedica a esta (e não à realidade dos problemas) a maioria do seu tempo e esforço. É por isso que desconfio quando oiço falar em agravamento de penas para baixar o crime, particularmente nos momentos em que algum crime em particular preenche os escaparates noticiosos, como aliás desconfio de todas as medidas repressivas que o Estado apresente como panaceia mágica para os problemas que na maior parte dos casos ele próprio criou.

Por deformação profissional, porque afinal toda a minha vida de trabalho foi dedicada a influenciar de uma forma ou de outra as percepções dos outros, faço um esforço consciente para detectar as diferenças entre a forma como vemos o mundo e a forma que ele efectivamente assume, até porque isso influencia os estereótipos a que o nosso cérebro recorre para lhe dar ordem e racionalidade. Sucede que neste caso, se pedíssemos a qualquer pessoa para escolher entre os EUA, que o seu próprio hino nacional cantam como the land of the free, e a China ou o Irão, para dar dois exemplos de países com sistemas políticos e legais percepcionados como pouco livres e justos, o País onde seria mais provável alguém ser preso oito anos por uma violação administrativa, ninguém acertaria na opção certa. Porque afinal podemos julgar-nos livres de tudo, mas nunca o somos da prisão das nossas próprias percepções e ideias preconcebidas.

Monday, July 19, 2010

Regresso a casa

Ao voltar a casa lembrei-me do meu amor.

Aqueceu-me a sua luz na ponte
o olhar correndo o horizonte,
olhos na bruma sobre a serra ao fundo
a memória de como ela é o meu mundo
o sonho profundo que me leva na asa
o lugar de regresso, a minha casa


O meu leito, o meu espaço
O destino do último passo
O lugar do riso, do choro e do prazer
O serpentear das colinas que me viram nascer
O meu refúgio, o meu encanto, a minha recordação sempre boa
A minha cidade, a minha raíz, o meu amor, Lisboa.