Para muitos dos que assistiam à televisão a "depressão pós-férias", um neologismo de duvidoso valor científico que me pareceu mais provável ter sido forjado na reunião editorial da estação televisiva do que nas páginas de uma qualquer publicação especializada em psicologia ou psiquiatria, representava mais um episódio da técnica, que os media usam recorrentemente e com doses cada vez mais reduzidas de pudor, de criar notícias que se associem de forma directa e linear ao que pensa e sente a audiência, no caso uma audiência que no dia anterior se deitou no último Domingo de Agosto, para milhares de pessoas o dia mais representativo do fim do periodo de descanso anual de que a maioria de nós aprecia.
Não vou discutir a falta de critério e exigência que leva quem devia produzir informação a relatar acontecimentos que só um olhar excessivamente bondoso poderia remotamente classificar como notícias, mas inquieta-me ver travestida de informação, e assumida assim como natural, a facilidade como o que é um quadro clínico cientificamente válido, legitimamente aplicado a explicar casos em que o nosso cérebro diminuiu ou mesmo retirou as condições mínimas para sermos funcionais, é aplicado levianamente para elevar a problema real qualquer ligeiro desconforto da nossa existência.
Preocupa-me viver numa sociedade que promove constantemente a desculpabilização como forma de vida, onde uma criança que não está atenta às aulas e tem maus resultados sofre sempre de défice de atenção e não de simples falta de disciplina e empenho, onde o foco do sistema de ensino é evitar o trauma da reprovação e não premiar os que se esforçam e adquirem conhecimentos (com a inevitável punição dos que não o fazem), onde as dificuldades de reajustamento entre o ritmo pausado das férias e o regresso à rotina de trabalho são associadas a um quadro clínico sério, associação que mais não faz do que reforçar a mensagem subliminar de que a nossa existência deveria ser tendencialmente fácil e livre de inconvenientes.
Preocupa-me acima de tudo porque qualquer pessoa com a mínima noção do que a rodeia já terá percebido que o nosso mundo, o do hemisfério ocidental, terminou um ciclo de mais de meio século de crescimento, riqueza e previsibilidade em que o nosso padrão de conforto e bem estar não parou de progredir, e que os nossos filhos e netos terão que trabalhar mais, sofrer mais, e dar cada vez menos por garantida a prosperidade dos dias que os aguardam.
Ao ouvir a notícia da TVI ocorreu-me que há pouco mais de um século conceitos hoje tão enraízados e inquestionáveis como os subsidios de desemprego, as pensões na velhice ou as próprias férias eram pura e simplesmente inexistentes, e quão rídicula que seria ainda há poucas décadas a premissa de que houvesse um quadro clínico legitimamente associado ao regresso ao trabalho quotidiano.
Ocorreu-me ainda outra coisa: uma sociedade que enfrenta o trabalho como um mal necessário e não como uma via para o progresso, que continua a ter como objectivo colectivo o mínimo esforço para a máxima recompensa, ignorando que do lado oposto do mundo centenas de milhões de pessoas se esforçam com um empenho que só a memória recente da fome confere, estará condenada a prazo a deixar de sofrer de depressão pós-férias, porque mesmo acreditando na existência do mundo ideal dos telejornais da TVI todos acabaremos por perceber que só teremos uma vida minimamente satisfatória se soubermos aproveitar os momentos em que trabalhamos, em vez de estar em permanente contagem decrescente para o período seguinte de inactividade.
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