Wednesday, June 30, 2010

O oito e o oitenta

O dia de hoje, em que a equipa de futebol de Portugal jogou (e perdeu) com a Espanha, lembrou-me da forma como todos homens se organizam de forma natural em tribos, aliás de forma tão natural que não questionamos a lógica subjacente aos nossos comportamentos colectivos, nem muito menos a forma como parecemos assumi-los em conjunto e uníssono.

Bastaram poucos minutos para o desfecho do jogo trazer à superfície a forma como neste País vivemos, numa aparente particularidade nacional, na eterna alternância entre a total euforia e o rotundo desastre, entre sermos os melhores do Mundo, que todos temem e ninguém quer enfrentar, e o mais fraco adversário que se pode escolher, o que nos leva olhar para homens normais como se do lado oposto estivessem gigantes.

É a eterna dúvida entre o oito e o oitenta, um provérbio que suspeito ser exclusivo lusitano, pelo menos nesta exacta expressão, que nos leva a omitir as críticas nos momentos favoráveis e a exacerbá-las nas horas negativas. Se olharmos para a nossa história não é incompreensível que a alma nacional assim funcione, porque efectivamente alternámos entre um breve período de brilhantismo, que nos colocou por umas quantas gerações no topo do mundo, e longos períodos entre a relativa discrição e a pura e simples mediocridade.

Os povos, como as pessoas, são moldados tanto pelas condições que encontram à partida como pelos acontecimentos que marcaram as suas vidas. Sou, como a maioria dos portugueses, um patriota, quanto mais não seja por reservar a mim mesmo e aos meus compatriotas a nobre tarefa de maldizer o meu País, não admitindo que um estrangeiro, qual visita mal educada, se aproxime sequer da forma feroz como somos capazes de lamentar o triste fado de ter nascido neste jardim á beira-mar plantado.

Hoje, quando decorreu a maior de todas as manifestações tribais que a nossa sociedade conhece, um jogo de futebol do Campeonato do Mundo, ainda por cima contra a tribo vizinha com quem acumulámos rivalidades em toda a história, qualquer observador atento repararia no melhor e no pior dos portugueses, da passagem da euforia à desgraça num par de horas até à incapacidade de simplesmente admitir que, nem que fosse apenas hoje, perdemos porque o nosso adversário foi melhor e mais forte.

Nestas alturas, não sou menos português do que qualquer outro, mas o céptico que há em mim, e o espírito curioso que questiona até a mais óbvia das verdades absolutas que a sociedade não chega sequer e impôr-nos, porque a aceitamos sem questionar, acaba por falar mais alto. Aí lembro-me que o comportamento bipolar que assumimos como País e sociedade não é a única forma de ver o Mundo, e que basta viajar um pouco para ver a paz interior que é possível ganhar ao aceitar que não temos que reagir a esta derrota como reagimos a todas as anteriores, e como reagem todos aqueles que nos rodeiam, pelo menos de forma que pareça não existir outra resposta possível.

Nestes momentos, lembro-me sempre que nada nos diz que a escolha tenha forçosamente que ser entre o oito e o oitenta, até porque como (também) diz o povo, algures no meio há-de estar a virtude, e a nossa vida seria muitíssimo mais fácil se pudéssemos ser portugueses sem ter fazer constantemente esta cansativa escolha, entre o topo da montanha e o mais profundo leito dos oceanos.

Wednesday, June 23, 2010

Choose Life

Uma amiga mostrou-me há pouco, com a alegria com que normalmente só mostramos as coisas que nos deixam genuinamente bem dispostos, fotografias suas de várias fases da infância. Era uma sequência de imagens em diferentes momentos no tempo, ligadas por um elemento comum, no caso um sorrriso fotogénico, que me lembrou que rever a nossa própria imagem em pequenos nos provoca normalmente duas reacções possiveis.

Pode recordar-nos suavemente da nossa própria mortalidade, dos dias da infância e juventude que não regressarão face à marcha inexorável do tempo porque, parafraseando a apresentação de um filme que vi recentemente, podemos afirmar com razoável certeza que dentro de cem anos toda a actual população do mundo estará morta. Mas também pode fazer-nos lembrar que todos fomos um dia pequenos e inocentemente felizes, e que a beleza da vida reside precisamente na forma como a única coisa totalmente previsível é a direcção em que se move o tempo, que só nos deixa espaço para trazer do passado as boas recordações e os ensinamentos das más. Quanto a mim, quando me revejo em pequeno, lembro-me sempre da expressão que conclui o inesquecível discurso de Ewan McGregor em Trainspotting: "choose life".

Tuesday, June 22, 2010

Entre um Rio e outro, prefiro nenhum

Um Rui Rio, o presidente da Junta Metropolitana do Porto, disse ontem em declarações à rádio, ou seja sem poder ter sido mal citado como já antes se queixou, que sente que a população "se pode revoltar", não pagando portagens e até partindo as respectivas cancelas, porque o Governo "não explicou" porque vai abolir as SCUT que tão bondosamente ofereceu à populaça no momento em que a orientação reinante era gastar sem nos preocuparmos com quem pagaria a conta (sempre adiada).

Outro Rui Rio, o presidente da Câmara do Porto, fez a sua carreira à volta de uma imagem de rigor, de quem prefere não investir em fogo de artifício no Ano Novo porque há outras prioridades, de quem insiste em não gastar o que não tem e dizê-lo claramente, vivendo de forma modesta e honrada como contraste do regabofe de gastos eleitoralistas a que praticamente qualquer grande Câmara do País se entrega.

Rui Rio, ou pelo menos um deles, sabe que o País está falido, e que depois de trinta anos de festa todos nós já percebemos que a conta vai ter que ser paga. Rui Rio, o outro, sabe que o Governo do PS está frágil, e nada como espicaçar a forma mais primária de orgulho regional (porque obviamente é "Lisboa" que não se está a "explicar") para capitalizar essa fragilidade, mesmo que isso passe como contestação a algo (abolição das SCUT) que ele mesmo sabe ser necessário face à situação em que nos encontramos.

Até ontem, quando ele falou, tinha gostado do rigor alemão de Rui Rio, o presidente da Câmara, o tal que marcava a diferença por não gastar o que não tinha e criticar quem o fazia. Hoje descobri que há um outro. A partir de agora, pelo sim pelo não, não sabendo se será Jekyll ou Hyde a usar da palavra, é capaz de ser melhor não confiar em nenhum dos dois.

What a difference

Vi há pouco uma notícia sobre a reacção elogiosa de Bono Vox, o vocalista dos U2, à admissão de culpa que há uns dias o governo britânico fez relativamente aos acontecimentos do Bloody Sunday, quando num Domingo de má memória, em Janeiro de 1972, as tropas inglesas presentes na Irlanda do Norte dispararam sobre uma manifestação, matando 13 pessoas.

Pela mão do novo primeiro ministro Conservador, David Cameron, o Governo de Sua Majestade admitiu o uso desproporcionado de força sobre o que eram essencialmente civis desarmados. As declarações de Cameron surgiram no seguimento da conclusão do Relatório Saville, que deve o seu nome ao do Lord a quem as Câmaras alta e baixa do Parlamento britânico atribuíram, em 1998, era Tony Blair primeiro-ministro, a responsabilidade de dirigir o inquérito ao sucedido.

Para além de inspirar o primeiro, e ainda hoje mais conhecido, hino da maior banda de rock do Mundo, os acontecimentos do Bloody Sunday moldaram inapelavelmente a relação entre a Coroa e os católicos e protestantes do Ulster nas três décadas seguintes, dando um impulso de apoio à ala mais radical dos separatistas irlandeses, até porque a primeira explicação oficial, que até aqui não tinha sido desmentida, atribuía parte da responsabilidade do sucedido aos manifestantes, agora claramente definidos como vítimas.

Se o acordo é, como Bono refere "um dos marcos mais extraordinários da história da Irlanda", é também mais uma prova de quão distantes nos encontramos de um País de quem somos geograficamente e historicamente tão próximos.

Onde esta distância se sente mais é na forma como a informação é pública, clara e inequívoca, permitindo a Bono apontar a forma como "o relatório trouxe transparência e clareza, porque na sua essência concede a cada pessoa envolvida na catástrofe o seu próprio papel", com isso honrando a memória dos mortos e trazendo alguma paz e consolo aos vivos. Rodeado de natural sigilo durante o processo de elaboração, o relatório foi integralmente colocado online no último dia 15, quando David Cameron falou, para que todos possam verificar, ou disputar, a justiça das respectivas conclusões, e os factos que lhes serviram de base.

E é nestas coisas que, mesmo não trocando a minha nacionalidade por nenhuma outra, tenho uma inveja sem limite dos anglo-saxónicos em geral e, atendendo às inúmeras perversões do sistema político americano, dos britânicos em particular. Invejo-os por saberem que não é possível a uma sociedade progredir escamoteando os seus erros e desresponsabilizando quem os comete, e que esta responsabilização obriga, para melhor e pior, a transparência, seja na informação que os políticos dão à sociedade seja dentro da própria política.

Exemplos disso são a sessão de questões a que qualquer primeiro ministro britânico tem que se submeter todas as quartas feiras nos Comuns, que lhe exigem um nível de preparação e minúcia ao pé do qual a ida quinzenal de Sócrates na Assembleia é tão difícil quanto um exame de inglês técnico ao Domingo, ou a forma como na recente negociação da coligação entre Conservadores e Liberais Democratas a imprensa publicou (um exemplo aqui), um a um, os pontos de negociação entre os dois partidos, de forma a que o respectivo eleitorado fosse capaz de os responsabilizar pelo que fizeram ou não, pelo que cumpriram ou falharam, pelo que cederam ou deixaram de ceder.

No nosso País, cujo sistema eleitoral não favorece, ao contrário do inglês, os governos de um só partido, e onde por isso os governos de coligação são habituais e não uma raridade que não se verificava em cinco décadas, desafio alguém a apontar uma tentativa que seja dos partidos de esclarecerem aquilo que negoceiam entre si, porque a negociação existe cá como lá, ao tomarem posições concertadas ou formarem coligações.

Até aceito que existam pessoas em lugares de responsabilidade que o fazem por acharem que quanto menos soubermos mais fácil se tornará tomar medidas difíceis, e menos contestação ou aproveitamento demagógico existirá, mas em geral só um ingénuo ou um ignorante podem assumir a bondade dos motivos para a omissão sistemática dos factos que nos interessam.

O que acaba por suceder é que em Portugal nos tratam como gente pouco inteligente ou esclarecida, recebendo em troca a nossa total e natural desconfiança, enquanto no nosso mais antigo aliado, por mais defeitos que o sistema tenha, como qualquer outro tem, os políticos sabem que dizer-nos praticamente tudo é a única forma de alguma vez confiarmos neles, porque a descoberta de um mentira é uma inevitabilidade tão certa quanto a morte e os impostos, pelo que só desta forma o voto será uma decisão feita com base nas pessoas e ideias que acreditamos possam mudar a nossa vida e a sociedade para melhor, e não uma escolha entre o menor de dois males. Somos, como eles, uma democracia ocidental tolerante e civilizada. Mas, ao mesmo tempo, what a difference...

Friday, June 18, 2010

Lisboa, ou a beleza escondida

Hoje de manhã ao sair de casa deparei-me com uma cena habitual na minha rua — e aqui abro um parêntesis para referir o deliciosa que acho a expressão “minha rua” — quando me cruzei com o senhor da drogaria, um sexagenário calvo de ar bem disposto, que costuma aproveitar uma pausa do compasso lento da entrada e saída de clientes da sua loja para, encostado a um carro em frente ou circulando devagar pelo passeio, exercitar a voz para cantar uma qualquer música, normalmente sem letra mas com um ritmo e melodia agradáveis, ostentando o à-vontade de quem sabe ser dono de uma bela voz, sempre com o mesmo sorriso aberto e matreiro nos lábios, sem nunca escapar ao contacto dos olhos de quem passa.

Por volta da hora do almoço, passando de carro pelo Cais das Colunas no regresso de uma reunião, reparei no que pareciam ser algumas dezenas de pessoas, que me chamaram a atenção pela forma como, com uma tranquilidade que contrastava com o habitual ritmo apressado dos peões que circulam em Lisboa, se entregavam à mais pura inactividade, conversando, fotografando, percorrendo os degraus do Cais ou simplesmente contemplando o Tejo que se espraiava perante si.

Quando às primeiras horas do dia me cruzei com o lojista-cantor, cujo estabelecimento, a drogaria-retrosaria, é por si só um sinal indesmentível de que nos encontramos num bairro tradicional lisboeta, a minha primeira reacção instintiva foi a do animal urbano cosmopolita, sempre demasiado apressado para trocar olhares com desconhecidos. No instante seguinte, apercebendo-me da pura estupidez da minha reacção inicial, não pude deixar de o fitar nos olhos, devolvendo-lhe o mesmo sorriso sincero que recebi enquanto ele entoava a sua melodia com a habitual convicção e á-vontade. Apercebi-me, nesse momento, de como, mesmo seguros no conforto da nossa rua e bairro, a vida que levamos torna tão fácil escondermo-nos das emoções, ignorando os outros e o correspondente incómodo quando as despertam.

Estes dois episódios de um dia igual a tantos outros serviram para me recordar duas coisas, que acabo frequentemente por ter o privilégio de relacionar entre si. A primeira é a forma como um olhar mais demorado sobre o que nos rodeia no quotidiano facilmente revela surpresas, detalhes belos ou reveladores que apenas a rotina e o correspondente vício do olhar evita que vejamos convenientemente. É algo de que normalmente nos sucede quando viajamos, e nos apercebemos da minúcia e atenção com que registamos os detalhes que habitualmente passariam em claro.

A segunda é a forma como quando passo muito tempo sem fazer aquilo que mais gosto na vida — abandonar o conforto do meu País para percorrer novos locais onde não tenha estado, alimentando a alma com a intensidade e atenção com que consigo registar e apreciar o que me rodeia, como só fazemos ao descobrir um sítio novo — a cidade onde nasci e vivi a maior parte dos últimos trinta e oito anos se encarrega de me recordar, seja no olhar malandro de um marialva de bairro ou na paisagem arrebatadora de um mais bonitos estuários do mundo, da facilidade com que nos esquecemos que a beleza normalmente se esconde à simples distância de um olhar atento. Nessas alturas apetece-me sempre dizer 'obrigado, Lisboa'.

Wednesday, June 16, 2010

As vuvuzelas no País real

Vi há pouco em noticia num jornal da minha área profissional que a Galp distribuiu já 500 mil vuvuzelas, aquele objecto que por esta altura todos suspeitamos não ser um instrumento musical mas uma vingança dos deuses pela colonização, e foi assumido por alguma luminária como o símbolo de apoio à selecção nacional de futebol, um dos poucos assuntos que escapa à tendência dos portugueses para nunca serem unanimemente favoráveis a nada, embora facilmente se alinhem se for para estar contra o que quer que seja.

É por isso no mínimo irónico que à volta de uma das únicas referências unânimes da Nação a mesma empresa que conseguiu a originalidade de ter um País inteiro a cantar um hino de uma gasolineira como forma de apoiar a selecção tenha agora conseguido gerar algo tão unanimemente detestado como a vuvuzela, que qualquer profissional da minha área qualifica, em vários cambiantes, formas e graus de gentileza, como um enorme tiro no próprio pé para a marca.

Se o que até agora escrevi parece fazer todo o sentido, para qualquer pessoa que leia, sem margem para dúvidas, talvez seja um bom momento para questionar se corresponde à verdade, até porque a vida já me ensinou que as ideias em que uma maioria acredita sem questionar são na maior parte dos casos erradas, só que de tão repetidas ninguém deu por isso.

O problema não está nas minhas ideias mas na pessoa que as está a ler, que é demasiado parecida comigo para as questionar. Sucede que há uma incoerência entre a opinião unânime de todas as pessoas que conhecemos e o facto de terem sido vendidas quinhentas mil vuvuzelas. Há uma incoerência entre não haver um único apoiante conhecido desta corneta do demo no meu feed do facebook, que tem mais gente que algumas amostras de sondagem eleitoral, e haver múltiplos relatos de pessoas a acordar com a vuvuzela do vizinho a horas impróprias (ao fim-de-semana de manhã, portanto), porque todo o bairro lisboeta parece ter alguém que gosta de soprar a vuvuzela como se o mundo fosse acabar amanhã.

A incoerência explica-se com uma expressão a que costumo recorrer de vez em quando, e da qual me costumo recordar quando analiso o porquê de certas coisas, que "nós não vivemos no País real", essa figura misteriosa que o primeiro 'Big Brother' revelou em todo o seu esplendor, e que salta à vista de qualquer observador atento que olhe para as capas das revistas, e se dê ao trabalho de imaginar como serão as pessoas que seguem e admiram os incríveis personagens que nelas figuram.

O caso das vuvuzelas é mais um exemplo do admirável mundo que existe fora dos nossos radares, porque tirando as crianças, que têm a tendência natural para produzir barulho, independente de classe ou proveniência, a vuvuzela parece ter sido adoptada sem renitência pela grande massa do povo, o mesmo povo que enche o comboio da linha de Sintra em hora de ponta ou se especializa no assassinato sistemático e reiterado da bela língua portuguesa.

Convém deixar claro que não quero com isto fazer, de forma alguma, qualquer tipo juízo de valor ao que chamei de "povo", até porque a formular uma crítica seria a inversa, tendo como alvo a forma como facilmente esquecemos que vivemos numa redoma, mais rica, animada, confortável e cosmopolita do que a da grande maioria dos nossos compatriotas. Pauline Kael, uma intelectual nova-iorquina que assinou durante mais de vinte anos a crítica de cinema da 'New Yorker', democrata como qualquer bom intelectual americano, disse uma vez que não percebia como Richard Nixon tinha sido reeleito presidente dos EUA, "porque entre todas as pessoas que conheço só uma deve ter votado nele". Nixon, para quem não saiba, ganhou essa eleição em quarenta e nove dos cinquenta e um estados que compõem os EUA.




Tuesday, June 15, 2010

Afinal não somos só dez milhões

Gosto imenso de futebol mas, como costumo dizer, é só algo que me emociona e comove durante a hora e meia de duração de um jogo, e por mais que goste de uma boa discussão sempre resisti relativamente bem à histeria típica que transforma homens educados e civilizados, que não perdem a calma ou levantam a voz numa discussão independentemente do tema, em trogloditas de argumentação primária e berro fácil.

Lembro-me aliás com frequência de como a ‘Tribo do Futebol’ de Desmond Morris, que retirei ainda miúdo da extensa biblioteca do meu Pai, desmontava de forma brilhante este desporto como a maior manifestação tribal dos tempos modernos, a continuação por outros meios do confronto entre os clãs e tribos que compõem qualquer sociedade, com códigos e valores próprios como qualquer confronto, um pouco como a guerra é a continuação da diplomacia por outros meios.

Há pouco alguém me recordava do apoio dos emigrantes e luso-descendentes da África do Sul à selecção, pelo que isto vem a propósito não do jogo de hoje (com a Costa do Marfim, dentro de cerca de duas horas), que marca a nossa estreia no Campeonato do Mundo de futebol, mas da experiência que passei um dia no ‘De Kuip’, a banheira de Roterdão, onde há dez anos, mais dia menos dia, vi um Portugal-Alemanha a contar para o campeonato da Europa.

Era o último de três jogos da primeira fase, tínhamos já o primeiro lugar e a qualificação garantidos, e o seleccionador decidiu jogar com dez suplentes e manter apenas um jogador (Fernando Couto, na altura o capitão) dos onze titulares. Ganhámos por três a zero, e a Alemanha foi afastada do Europeu e, como os festejos noite dentro viriam a mostrar, ganhámos um amigo em cada um dos habitantes de Roterdão, que não perderam ainda a memória do arrasador bombardeamento, e posterior ocupação, a que os alemães os submeteram na II Guerra Mundial.

Do que me lembro, mais do que tudo o resto, foi da forma como oito mil portugueses apoiaram a equipa em uníssono, como nunca tinha visto acontecer em território nacional, cantando o hino nacional durante o jogo, a meio da segunda parte, em plenos pulmões, num transe colectivo que até os onze futebolistas da ‘Mannschaft’ afectou.

Nunca mais me vou esquecer, no momento em que o jogo acabou, da expressão de felicidade incontida na cara de um emigrante, que se preparava com os seus amigos para regressar nesse mesmo dia à Alemanha, onde trabalhava, pelo que percebi numa unidade fabril da Volkswagen, quando dizia aos amigos “só imagino a cara deles amanhã quando eu chegar à fábrica. Epá!”.

Aí , em mais uma associação estranha daquelas em que a minha memória é fértil, lembrei-me de quando, no início da década de 90, a agência de comunicação em que eu trabalhava ia iniciar uma relação com a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Tendo sido incumbido de preparar o plano de comunicação, e logo obrigado a estudar o tema, deparei-me com uma lista de mais de 100 países, com o número de portugueses registados nos consulados ou embaixadas de cada um deles. De livro numa mão e folha de cálculo na outra, somei-os, e cheguei a um número muito próximo dos quatro milhões.

Estava sentado na secretária do meu então chefe, que apesar de eu ter o meu próprio gabinete sempre me deixou à vontade para usar o dele quando queria estar sozinho, quando ele entrou regressado de uma reunião. Fitei-o e disse-lhe, brilho nos olhos de quem sempre teve orgulho em ser português: “Pedro, sabia que afinal não somos só dez milhões?”.

Monday, June 14, 2010

Coincidências?

Estive a espreitar no google analytics a proveniência das pessoas que viram o meu blog neste primeiro dia de vida. Há pouco escrevi sobre a divisão da Polónia por Estaline e Churchill... e descobri agora que tive um leitor da Polónia. Está decidido: amanhã vou escrever sobre o vestiário das passagens de modelos da Victoria's Secret. Não é um País, mas como diriam os meus amigos do Norte, podia muito bem ser uma Nação.

Isto só mesmo em Portugal

Tinha prometido a mim mesmo tentar evitar assuntos que tenham a ver com a minha área de actividade profissional, mas tive péssima pontaria no timing de arranque deste blog. O Turismo dos Açores anunciou que todas as onze (!) agências que participavam no seu concurso de publicidade, que envolve 30 milhões de euros, foram excluídas por motivos processuais, já que nem uma só conseguiu cumprir o caderno de encargos, presumo que a respectiva parte burocrática.

Vou deixar de parte a incredulidade que nos possa causar como, entre dez empresas de primeira linha do mercado (só não conheço um dos nomes) não haver uma única a acertar nos papéis e certidões que é preciso anexar à proposta. Passemos directamente à parte divertida, que é a imprensa açoreana referir que "que o júri terá recomendado a adjudicação directa", certamente que para poupar tempo e salvaguardar os superiores interesses do Turismo açoreano quando se aproxima o crucial período de Verão.

Em suma, temos concorrentes que chegam para formar uma equipa de futebol, temos o primeiro concurso que me lembro de ver, em vinte anos de profissão, em que todos perdem, e no fim temos a sugestão, entendida como suficientemente normal para alguém sequer falar dela a um jornalista, de esquecer tudo isto e escolher mas é um concorrente, de preferência que tenha armadilhado o processo desde o início (se vai receber o proveito, e a correspondente fama, ao menos que a mereça). Tudo isto com dinheiro do Estado e num processo público. Para usar uma frase que detesto, porque na maioria dos casos só revela o provincianismo de quem maldiz Portugal sem conhecer muito mais, e porque prefiro tentar mudar um bocadinho o meu País a mudar-me para outro, isto só mesmo em Portugal...

A régua e esquadro

Há pouco apanhei uma notícia no Economist (e digo "no" porque eles desde o século XVIII se referem a si mesmos como 'this newspaper', e a tradição é muito bonita) sobre a violência no Quirziquistão, de raíz étnica como a maior parte dos desvarios que se dão dos Balcãs até para lá dos Urais. Sucede que a raíz do problema está na forma "arbitrária" (cito) como Estaline dividiu os territórios do Uzbequistão, Quirziquistão e Tajiquistão que leva que algumas regiões tenham uma distribuição étnica que não seria pior se tivesse sido pensada de propósito para dar problemas.

Menciono isto porque me lembrou de um episódio das memórias de Winston Churchill, dois volumes épicos que são também a melhor e mais detalhada história da II Guerra Mundial alguma vez editada. Nesse episódio, decorria ainda a Guerra, Churchill relata como entre a amena conversa de circunstância que se seguiu ao jantar, definiu com Estaline, utilizando os objectos do dia-a-dia que estavam à mão junto a um mapa convenientemente deixado sobre a mesa de trabalho, as actuais fronteiras da Polónia, arrastadas uns bons quilómetros para Ocidente, para suster o peso da Alemanha e dar ao povo polaco espaço de afirmação.

O relato detalhado e vívido da brilhante prosa de Churchill faz-nos sentir que estamos na sala enquanto, entre dois goles de brandy e um dos Cohiba de que o primeiro ministro britânico não se separava, se desenha a sorte de uns quantos milhões de pessoas. O que este episódio me lembra sempre é que, nesta era em que tudo parece ser relativo e nada do que façamos parece fazer diferença, todos os actos têm consequência, sejam os nossos pequenos e aparentemente insignficantes gestos quotidianos, sejam as conversas casuais dos donos do Mundo, de regra e esquadro na mão, à volta de um café e de um belíssimo brandy.

O meu caminho marítimo para a blogosfera

Há já algum tempo que os blogs (e, já agora, este não é, nem alguma vez será, escrito no respeito pelo acordo ortográfico) fazem parte da nossa realidade quotidiana, há quase tanto tempo quanto o que passou desde que decidi não me juntar ao rebanho e assinar também um, pelo menos que tivesse a mínima inclinação de mostrar a alguém.

Não me abstive de ter um blog por não ter a capacidade mínima exigível para usar a palavra escrita como expressão das minhas ideias, apesar disso não ter impedido muito boa gente de passar ser 'blogger', nem deixei de assinar um blog por não ter nada para dizer, apesar desta também estar longe de ser uma preocupação corrente na blogosfera. Terá sido uma conjugação feliz, ou infeliz dependendo do ponto de vista, da minha costumeira renitência em expor-me para além do meu círculo próximo com o meu proverbial horror a modas passageiras, que me leva a evitar qualquer actividade quando sinto que todos os outros parecem estar a praticá-la.

Decidi assim criar este blog por motivos análogos aos que me levaram a ficar quieto quando o mundo falava da revolução da blogosfera, nesta nossa ânsia de 'next big thing' que leva toda a gente a concordar com o poder transformador da última mania antes mesmo de ter tempo de a compreender minimamente. Criei este blog porque hoje em dia blogar está longe de ser uma novidade ou uma afirmação de vanguardismo, e porque com o advento das redes sociais, e em particular do Facebook, as minhas opiniões há muito deixaram de ser algo que eu possa ou queira esconder de quem me conhece. Resta-me assim esperar que todos os meus (três) leitores concordem com a bondade da ideia.

Irão, um ano depois

Faz por estes dias um ano que o Irão foi a eleições, um escrutínio cujo resultado foi clara e despudoradamente falseado para dar a vitória Ahmadinejad, mantendo no poder toda a clique que cresceu à volta da força e influência da Guarda Revolucionária, criada nos tempos do Ayatollah Khomeini para evitar que o exército iraniano, que se absteve de reagir com força à revolução islâmica, tivesse alguma vez poder para desfazer sozinho o regime teocrático dos mullahs.

É um conflito muitíssimo complexo numa sociedade que também ela está longe de ser simples, até porque é muito mais evoluída e cosmopolita do que a ignorância das massas ocidentais, comungada e amplificada pelo típico jornalismo televisivo de 'sound bite', poderia levar a supor. Não é preciso ser historiador para saber que os persas tinham um império que estava no seu auge quando Roma celebrava os primeiros dias da sua República, e é preciso ser de facto ignorante para os colocar no mesmo saco que os descendentes de beduínos que se espalharam do deserto da Arábia até à Península Ibérica, ou das tribos nómadas das montanhas do Afeganistão, simplesmente porque partilham o mesmo profeta.

Ignorantes à parte, aquilo a que assistimos há um ano foi um conflito entre uma faixa de população, maioritariamente jovem — metade dos iranianos tem menos de 25 anos, graças a um surto de natalidade durante a guerra com o Iraque nos anos 80 — moderna, instruída e esclarecida, e uma outra, agarrada ao poder, influência ou riqueza que o aparelho da República Islâmica lhes conferiu, um poder assente nos quase dois milhões de milicianos que o dinheiro do petróleo ajudou a alimentar, em mais um dos episódios de arregimentação dos excluídos da sociedade em que a história é pródiga.

Mais do que discutir a concepção do Estado ou o papel da religião — porque nenhum dos lados contestou, pelo menos como base de discussão, a República Islâmica — e para além de um conflito entre conservadores e reformistas, o que se passou em Teerão teve contornos próximos da luta de classes, entre o Norte e o Sul da cidade, entre a sua zona mais rica, culta e ansiosa por liberdade e a mais pobre e adepta do populismo nacionalista do actual presidente.

A verdade é que o que aconteceu em Junho do ano passado tirou à República Islâmica algo que uma vez perdido dificilmente se recupera: a legitimidade. Ao sobrepor-se ao resultado das eleições, o regime colocou em causa o delicado edifício institucional pensado por Khomeini para assegurar legitimidade popular sem que os líderes religiosos perdessem o controlo da situação. Com a fraude de há um ano, que recebeu reacções contrárias do próprio 'establishment' religioso, o actual supremo líder, Ali Khamenei, transformou o Irão numa ditadura de facto, e terá muito provavelmente iniciado o fim da República Islâmica, com consequências imprevisíveis para todos nós.

Sempre me interessei por história, e graças a Gore Vidal e ao seu romance 'Criação', uma fábula que tem como protagonista um cortesão do Rei da Pérsia e um dos livros da minha vida, sempre me interessei particularmente por este pedaço do mapa, mas a verdade é que é graças ao que sucedeu há um ano, e às incontáveis horas que passei entre a leitura das mais variadas fontes e o acompanhamento em directo dos feeds de Twitter e dos videos que conseguiam saír de Teerão, sei hoje muitíssimo mais do que sabia antes do 'Movimento Verde' ter tomado conta das ruas do Irão.

Aprendi que não deve ter sido por acaso que este povo inventou o xadrês, porque a revolução que levou o Ayatollah Khomeini ao poder não se fez num dia, mas em dois anos conduzidos num crescendo estrategicamente irrepreensível pelos contestatários ao regime do Xá. Aprendi que são preserverantes e corajosos como poucos, e provaram-no pela forma como só os pedidos dos dirigentes que os inspiraram, e nunca o medo de represálias, os impediam de saír à rua no dia seguinte a mais uma manifestação assinalada por mortos e feridos. Aprendi, em suma, a admirá-los como povo, admiração que só cresce por perceber que quem os dirige não os representa.

Em Teerão, as peças continuam com toda a certeza a movimentar-se no tabuleiro, longe do nosso olhar mas nem por isso paradas. Para a maioria de nós, ocidentais focados no sabor do dia do ciclo noticioso, a quase revolução verde de há um ano já se desvaneceu na memória. Para mim, que não deixei de seguir atentamente as notícias ou simples sinais que regularmente chegam do Irão, lembrar-me dos acontecimentos de Junho de 2009 recorda-me também que quando se tem três mil anos de história, um ano são dois dias na vida de um povo.

Sunday, June 13, 2010

United colors against Vuvuzela

O feed de facebook do Salon.com, uma instituição do jornalismo online que normalmente adopta a política americana como centro de gravidade, à volta do qual roda o ocasional satélite europeu ou de interesse geral, faz a pergunta, simples e directa: "Should the Vuvuzela be banned?"

Na resposta dos leitores online, para além do ocasional comentário questionando se a Vuvuzela era alguma nova droga exótica que não tinha sido ainda ilegalizada, mesmo no País do tio Sam, que chama futebol a um desporto jogado com uma bola de geometria improvável, a opinião parece ser unânime: ninguém consegue evitar irritar-se com o som da Vuvuzela, que faz os estádios de futebol (e cito um dos comentários online) "parecerem uma colmeia", dando a ideia que a berraria e cânticos habituais durante os jogos eram afinal de uma até aqui desconhecida harmonia musical.

É nestes momentos que nos lembramos que é sempre mais fácil mobilizar os seres humanos contra um inimigo comum do que a favor de uma causa, por mais meritória que esta seja. E o futebol, que criou um património cultural comum à humanidade como poucas outras actividades, acabou por nos unir, de forma quase unânime, contra a vuvuzela.

Saturday, June 12, 2010

Where are you from?

O rodapé de um qualquer telejornal dizia 'Zimabweano condenado a 15 anos'. Referia-se a um dos assaltantes dos jornalistas portugueses que estão a acompanhar o Campeonato do Mundo de futebol, na África do Sul, onde segundo o Público "os criminosos são sempre referidos pela raça e nacionalidade". Por instantes, o acto reflexo de quem alimenta a barra da televisão lembra-nos que classificar os maus da fita pela cor da pele, local de nascimento ou religião está longe de ser um exclusivo da África do Sul.