Hoje conheci uma personagem de Felinni, um daqueles peculiares integrantes da anónima massa popular que o realizador italiano não hesitaria em escolher para um dos seus filmes, como qualquer outro transeunte que o tivesse hipnotizado no bulício de uma rua de Roma.
O que proporcionou o encontro foi estar em mudanças, processo no qual ele era um dos braços contratados, e ter calhado ter a sua companhia no meu carro, desafogando a cabina da camioneta que transportava o mobiliário. Num garatujar ininteligível que só o contexto diria tratar-se da bela língua portuguesa, foi desfiando a sua ladainha, a princípio parecendo indiferente às minhas respostas, depois parecendo indiferente à sua ausência.
Mesmo assim, contou-me o que sinteticamente se poderia designar pela sua história de vida, de menino que frequentou a escola camarária em Campo de Ourique, onde nasceu e viveu até aos nove anos, ao orgulhoso trintão que desfia as casas que a Câmara de Lisboa ofereceu à família, em bairros menos recomendáveis depois de terminada a luz solar, com o mesmo orgulho com que o jovem quadro se refere à última propriedade adquirida pelo progenitor em prime location.
Mas o que o definia, mais do que tudo isso, era a sua curiosidade quase infantil, um misto de homem que tenta compreender a função das várias coisas que vai recolhendo e de pequeno malandro que nos pergunta subliminarmente se não lhe queremos oferecer o objecto em causa. O momento em que comecei a tomar consciência de que não habitávamos o mesmo planeta foi quando confundiu uma box de televisão por cabo com um leitor de DVD, e mesmo depois de esclarecido insistiu em questionar se o comando não seria mesmo de um DVD, sempre sem perder um delicioso sorriso a dois dedos de distância de palerma.
Poderia perorar sobre o que perdem os pobres de espírito, mas isso não só seria pretensiosismo como estaria a passar ao lado da questão, e a questão é como nós humanos conseguimos o prodígio de ser simultaneamente únicos, e portanto diferentes uns dos outros, e manter algo que nos identifica e torna parte do mesmo todo.
Com o seu ar cândido, o seu português macarrónico, a enorme curiosidade apenas comparável à incorrigível ignorância, a vida sofrida que relatava com aparente tranquilidade, nada no personagem que encontrei poderia ser mais diferente de mim próprio, e facilmente se diria que vivíamos em mundos diferentes.
Afinal, e por mais que haja alguma verdade na nossa diferença, o que a viagem na sua improvável companhia me recordou foi que no fundo, por mais que o nosso quotidiano se viva a um universo de distância, e o nosso caminho se tenha feito em mundos diferentes, continuaremos sempre a ser também dois rapazes que fizeram a escola no mesmo bairro.
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