Em 1974, antes de ter idade para me lembrar de algo de forma substantiva tudo mudou, e as minhas primeiras memórias a sério são de um quotidiano agitado em que os Governos pareciam mudar todos os dias, palavras de ordem eram gritadas na rua e expressões como "povo", "camarada", "luta de classes" e "construção do socialismo" saíram de súbito dos livros de história, onde estavam em qualquer outro país europeu, e passaram a figurar no nosso vocabulário quotidiano.
Ao dia em que os tanques saíram à rua e o regime caiu sem sangue seguiram-se dois anos de catarse colectiva e de libertação da energia acumulada durante quatro décadas, o fim da guerra colonial que o povo e o exército já não queriam e a descolonização feita sem planeamento e sem pensar nos interesses dos portugueses que estavam em África, os excessos socialistas que ainda hoje pagamos no domínio económico e, acima de tudo, a descoberta da liberdade política para muitos portugueses, que como todas as descobertas não foi isenta de erros, abusos e problemas.
Fui com os meus pais para o Oriente, e vivi em Macau desde os primeiros dias de 1980, e para além do impacto que teve sobre mim o privilégio que então foi viver durante três anos num lugar que estava, comparativamente com Lisboa, muito mais próximo do primeiro mundo, ganhei um sentido, que nunca perdi, de que a nossa história, nacionalidade e língua são muito maiores do que o nosso quotidiano e infortúnios parecem indicar.
Lembro-me, ao regressar, da época do 'apertar o cinto', da intervenção do FMI sem a qual o Estado português teria entrado em insolvência, do Governo do Bloco Central que representou uma hoje impensável união para defender o bem maior. Lembro-me da euforia da direita à volta da candidatura de Freitas do Amaral, que mais do que tudo dizia como numa década o País tinha conseguido chegar a relativa paz consigo mesmo, e era possível não se ser de esquerda sem nos chamarem fascistas ou porem em causa as nossas credenciais democráticas.
Lembro-me de como a rodagem do Citroen de Cavaco Silva acabou no providencial líder da nova fase da nossa vida, e como o desconhecido ministro das finanças de Sá Carneiro cavalgou a vaga de centro-direita gerada pelas presidenciais para conseguir a primeira maioria absoluta da nossa jovem democracia. Reparei, nesse momento, que o PSD se alheou do pagamento das dívidas de campanha de Freitas do Amaral, que como homem honrado que era, como eram a maioria dos políticos de então, as pagou do seu bolso, com anos a fio de trabalho, não convocando conferências de imprensa nem fazendo da sua vida um queixume sobre a palavra a que lhe faltaram.
Foi aí, no final do primeiro Governo de Cavaco Silva, provavelmente o último governo com verdadeiro nível que este país conheceu, que começou a situação que agora vivemos. Foi a partir daí que a ocupação do aparelho de Estado pelo partido do Governo passou a fazer parte das regalias do vencedor, foi aí que germinou, nas privatizações e nos privilégios distribuídos a alguns, o regime cinzento em que o poder económico condiciona o poder político a seu favor e a nosso desfavor, foi aí que começou a espiral de perda de qualidade humana, intelectual e política dos homens e mulheres que nos governam.
Hoje sentimos ter batido no fundo. A política, uma das mais nobres actividades de uma sociedade civilizada, não é hoje em Portugal uma ocupação séria ou bem frequentada, e ninguém com qualidade profissional e intelectual que esteja no seu perfeito juízo arrisca o seu nome associando-se à corja que habita os aparelhos partidários e ocupa, em sucessivas camadas que as novas eleições nunca purgam e apenas reforçam, os vários níveis da administração local e central.
O problema central é de qualidade, e é demasiado gritante para admitir explicações bondosas. O Orçamento de Estado mais importante dos últimos 25 anos foi feito em cima do joelho, entregue fora de horas e incompleto, e o mais escandaloso é a forma como ninguém parece reparar ou exigir explicações sérias ao Primeiro Ministro por uma das mais escandalosas e terceiro mundistas demonstrações de incompetência de que me lembro.
A OCDE vem apregoar a necessidade de medidas draconianas no corte do défice, com o ministro das Finanças a assistir às declarações sem ter sequer o decoro de disfarçar a satisfação, e o que é mais escandaloso é a forma como ninguém parece reparar como se utilizou uma organização internacional para assumir a responsabilidade das medidas tomadas por quem elegemos, e como de caminho Portugal foi, neste processo, menorizado e humilhado pelas mesmíssimas pessoas que têm que defender o seu prestígio e posição no mundo.
Não vivo do passado e não quero o Portugal orgulhoso e poderoso que só existia nos livros de história e na propaganda do Estado Novo. Não quero que regressem os anos dourados dos descobrimentos ou do ouro do Brasil, porque D. João II só há um e o Brasil, esse sim, é a única garantia que a nossa língua manterá alguma importância no mundo do Século XXI, mas dar-nos-á apenas e só a importância que soubermos merecer. Não quero que estes senhores que agora mandam mudem de forma de ser, porque deixei de acreditar na sua capacidade para defender o nome de Portugal e o bem estar dos portugueses, e porque não tenho ilusões que alguma vez estejam intelectualmente preparados, para não falar de outro tipo de qualidades, para conduzir o País neste mundo complicado em que vivemos.
O que eu quero é outra coisa, ao mesmo tempo simples e dificílima de conseguir sem mudar tudo, e não vou deixar de a querer independentemente de como a situação evolua: quero o meu País de volta.
revejo-me em algumas das coisas que diz, excepto no caso do governo de Cavaco Silva que, para mim, esse sim o foi o inicio de tudo isto.
ReplyDeletetenho cor politica, terei sempre e acredito que apesar dos excessos cometidos no pós-revolução nada se compara a tudo o que foi feito desde então, ou antes deles.
vivemos num pais de gente amansada que espera sempre que alguém conduza a manada. Depois de tudo, nunca concordam com nada e estão sempre descontentes com o resultado mas, esquecem-se rapidamente que mais culpado é aquele que fica à espera que alguém faça para depois poder ocupar-se apenas da critica.
eu, ao contrário do que aqui pede, não quero o meu pais de volta, quero um pais novo. aquele com quem muita gente sonhou e que nunca materializou.
Subscrevo totalmente .... ! .. também quero o meu País de volta ... ainda será possível ???
ReplyDeleteMiss Dalloway: peço que não entendam mal as minhas palavra, nunca achei que Cavaco Silva fosse um homem providencial (apareceu como tal) e sim, o problema começou sem dúvida aí, se não logo no início pelo menos a partir da primeira maioria absoluta. Não é, aliás, casual a referência ao tratamento que deram as dívidas de campanha de Freitas do Amaral...
ReplyDeleteOs nossos partidos políticos, de uma forma geral, sofre, síndrome de George Bush.
ReplyDeleteA Culpa não é dele! Parem de os culpar, somos nós que votamos neles!