O discurso de Merkel, que seria sempre de assinalar pela negativa em qualquer país europeu, chama particularmente a atenção tratando-se da Alemanha, um país cujos últimos cem anos de história, e papel em duas guerras mundiais, não permitem nem ao mais optimista alimentar dúvidas sobre a seriedade da questão.
E se tratar-se da Alemanha leva o problema a ser ainda mais sério do que normalmente seria, esta preocupação agrava-se quando se percebemos que não se tratou de um deslize ou declaração solta, mas antes de uma posição de compromisso num debate nacional em curso no país, e que a aparente fraca defesa do direito à diferença, cultural ou religiosa, que define um país politicamente evoluído, tem que ter com a corrente dominante da opinião pública - trinta por cento dos alemães defendem o repatriamento de emigrantes, quase sessenta por cento que se limitem as práticas religiosas dos muçulmanos - que mostra clara predisposição para mesmo as posições mais intolerantes poderem ser aceites, ou pelo menos ouvidas, na sociedade alemã.
O problema maior é que não é apenas na Alemanha que isto sucede. A proibição dos minaretes na Suiça, a enorme polémica à volta do novo centro islâmico em Nova Iorque - que demonstrou não apenas o pior da sociedade americana mas também o melhor, pela forma intransigente como as autoridades da cidade colocaram a defesa da liberdade, neste caso de culto, acima da sensibilidade de uma nação que ainda não esqueceu o dia mais traumático da sua história - a violência espontânea ou organizada contra os muçulmanos e os seus locais de culto nos EUA e Europa contam uma história mais ampla e assustadora, de como a religião é cada vez mais uma força de divisão e não de tolerância, capaz até de separar ou descriminar comunidades há muito perfeitamente integradas, que são agora vistas com outros olhos e nova desconfiança pelos seus vizinhos de sempre.
A verdade é que esta não é uma questão que seja passível de ser vista a preto ou branco, e se as nossas liberdades e garantias são a matriz que nos distingue e dá legitimidade como civilização, temos também que conviver com o que é efectivamente uma enorme área cinzenta, de como lidar com um pequeno conjunto de radicais que as utilizam para nos atacar, subvertendo uma religião tolerante como o Islão para justificar a mais injustificável (porque cobarde, perpetrada contra civis inocentes) violência, e subvertendo os direitos que existem para nos defender de condutas incorrectas do Estado ou do Governo, ou seja para proteger a nossa liberdade, para atacar esse mesmo regime e ideias de liberdade.
A resposta não é simples e não será exactamente igual para alemães, americanos, franceses ou portugueses. Para além disso, neste contexto de recessão económica e aumento do desemprego, que sempre aumentam o ressentimento contra a mão de obra proveniente de outro país ou cultura, qualquer político ocidental enfrenta uma escolha difícil, entre defender a tolerância e correr o risco de perder votos e ser retirado do poder ou não censurar a opinião dominante e até juntar-se a ela, questionando a bondade ou até a viabilidade do multiculturalismo, como fez hoje Merkel.
A história diz-nos que são estes momentos que distinguem os grandes estadistas dos políticos medíocres. Ao ver a ameaça Nazi que se formava sobre a Europa Winston Churchill dedicou todas as suas forças a promover a ideia de que o Reino Unido tinha que se preparar para a guerra que aí vinha, e não podia em circunstância alguma confiar no governo alemão e em qualquer compromisso que este aparentemente estabelecesse. Foi ostracizado pelo próprio partido, uma mão provavelmente chegaria para contar os primeiros colegas de bancada que o apoiaram no parlamento, e realizou uma longa travessia do deserto, cujo desfecho, como todos sabemos, o tornaria no homem providencial a quem devemos, provavelmente mais que a qualquer outro, a vitória aliada na II Guerra Mundial.
Ao ver a senhora Merkel ou o senhor Sarkozy, já para não falar nessa colorida personagem de novela mexicana que é Berlusconi, cederem sistematicamente à tentação de agradar às suas opiniões públicas, expulsando emigrantes ou assumindo posições que põem em causa o seu papel na sociedade, entendemos um pouco o que deve ter sentido Churchill em 1938, quando as tropas nazis estavam já em território da actual República Checa, ao ver Neville Chamberlain, que o antecedeu como primeiro-ministro, regressar de uma conferência com Hitler em Munique e apresentar, com o ar de satisfação que ostenta quem cumpriu a sua missão, à chegada a solo inglês, o papel assinado por este, garantindo que as duas nações não voltariam a entrar em Guerra, perante o alívio e alegria gerais da população do País.
A verdade é que se a via escolhida para enfrentar o desafio do radicalismo islâmico for a da repressão, do profiling por critérios religiosos, da expulsão ou ostracização dos muçulmanos que vivem nos países ocidentais, os fundamentalistas estarão a ganhar a guerra, porque cada mesquita incendiada na Europa representará muitos novos recrutas para a causa, e este desfecho será tanto mais amargo quando tivémos, neste caminho, que abdicar de liberdades que tanto custaram a conquistar, derrotando-nos a nós mesmos, sem que no processo tenhamos de facto eliminado a ameaça que o terrorismo põe à nossa segurança.
Benjamin Franklin, um dos pais da nação americana, dizia que uma sociedade que está disposta a perder liberdade para ter segurança não merece nenhuma das duas. O problema, nestas coisas, é que é preciso homens de verdadeira visão para ultrapassar o medo que as sociedades, como as pessoas, têm do que não lhes é familiar. É preciso homens que vejam para além do seu próprio interesse imediato, e sejam capazes de arriscar o seu futuro político ou até a sua vida para defender o bem maior, e neste caso sejam capazes de perceber que a única forma de ganhar a guerra contra o terrorismo é com mais tolerância e integração, e não menos, mesmo que isto implique que alguns maus elementos vão abusar dessa tolerância para nos atacar.
Existem dezasseis milhões de muçulmanos em países da União Europeia, muitos dos quais não conheceram outro país ou cultura do que aquela em que actualmente vivem. Na próxima geração os líderes europeus terão que tomar decisões cruciais para o futuro destas pessoas, e com elas para o futuro de todos nós, e da Europa tolerante e aberta em que a maior parte de nós cresceu. A questão é complexa e não oferece respostas óbvias, mas uma coisa é certa: o sucesso vai depender dos líderes que escolhemos, porque a única coisa certa em tudo isto é que se continuarmos a ser conduzidos por gente de vistas curtas, como são a maioria dos actuais responsáveis políticos, quaisquer que sejam os desenvolvimentos seguintes esta história nunca acabará bem.
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