Wednesday, September 15, 2010

Presumível inocente

Não costumo gostar de me envolver numa discussão quando esta é o tópico mais importante do momento, nem de dar atenção ao que toda a gente parece dar em determinada altura, e naturalmente essa forma de ser acaba por se reflectir na escolha das ideias que me ocorre passar para a escrita, nomeadamente a que ponho aqui.

Uma boa discussão acalorada, como só as discussões entre amigos podem ser, e um debate no Facebook com um outro amigo acabaram por me levar a abrir a excepção, no caso sobre a mãe de todos os processos mediáticos, o processo Casa Pia, ou mais concretamente sobre o facto dos arguidos aguardarem o recurso em liberdade.

O que me levou a abrir a excepção foi no calor do debate os meus amigos (cuja argumentação não vou expôr aqui, por razões óbvias) terem questionado, entre outras coisa, se a presunção da inocência dever ser levada à letra em casos tão graves quanto este, e se faz sentido existir esta quantidade de salvaguardas e recursos, que os acusados podem dispôr até terem efectivamente que pagar o seu preço à sociedade, isto assumindo que o processo não chega a prescrever.

Começando pelo princípio, os arguidos que foram dados como culpados em primeira instância não estão a aguardar o recurso em liberdade porque o sistema não tenha um mecanismo para os prender, mas porque esse mecanismo, a prisão preventiva (que se pode prolongar até aos dois anos), foi já esgotado pela demora inadmissível de um processo que demorou sete anos até gerar uma conclusão. Quando o primeiro grande processo de pedofilia dos tempos modernos veio a público na Bélgica, nos anos 90, o julgamento foi concluído em quatro meses.

Em segundo lugar, e esgotado o limite legal - que, recorde-se, para além de deter criminosos permite deter um inocente como presumível culpado durante dois anos - de prisão preventiva, o estatuto de presumível inocente deve prevalecer, e o princípio geral sobrepor-se ao caso particular, independentemente da respectiva gravidade.

Quanto à possibilidade de recurso a instâncias superiores, que em última análise só protelam a condenação dos culpados, acho que qualquer pessoa razoável sabe que a justiça, por ser administrada por homens, é inerentemente falível, e parece-me também evidente que a possibilidade de erro diminui quantas mais instâncias existirem para verificar que a Lei foi correctamente aplicada, como ajuda a provar cada caso em que o Supremo Tribunal decide de forma contrária ao julgamento inicial.

Prefiro viver com um sistema cujas salvaguardas, mesmo permitindo excessiva liberdade aos culpados em alguns momentos, garantam a liberdade dos inocentes, porque por mais horrendo que seja o crime que alguém cometa, as regras pelas quais ele será julgado aplicam-se, de uma forma ou de outra, a mim ou a qualquer outra pessoa de bem.

Nada disto significa, no entanto, que eu não concorde com os meus amigos quanto ao inadmissível que é um pedófilo aguardar em liberdade após ser dado com culpado num julgamento, ou partilhe da sua indignação pelo estado a que a justiça chegou, e entendo a sua frustração por sentir que no fundo os culpados saem impunes por mais algum tempo. Só acho que a culpa não está nas liberdades que o sistema garante, e muito menos nas suas salvaguardas, o problema está na ineficiência que leva a que um processo destes se prolongue por tempo suficiente para arrastar consigo a vida de todos, inocentes, culpados e vítimas.

O problema está nas leis que regem o funcionamento do sistema, está nos processos, nos meios, nas pessoas que não escondem sequer transportar muitos dos vícios que marcam o resto da nossa sociedade, onde a luta entre grandes egos e pequenos poderes impera sobre o esforço em prol do bem comum, está na necessidade de fazer uma mudança profunda em algo que se vê claramente que não funciona.

Não tenho opinião formada sobre quem é ou não culpado, e embora o tema da pedofilia me horrorize e preocupe há muito deixei de lhe dar atenção quotidiana a este caso, não perdendo muito tempo a acompanhar os factos relatados na imprensa. O mundo está cheio de coisas interessantes para acompanhar, e esta não é definitivamente uma delas.

Se não dou atenção ao caso o mesmo não se pode dizer da forma como o processo decorre. Voltar-me-ei a debruçar sobre o assunto com atenção quando chegar a decisão do Supremo, porque aí serei, como seremos todos, obrigado a fazer contas sobre a confiança que a nossa justiça nos merece, o que em última análise determina boa parte do nosso respeito pela legitimidade do Estado nos punir pelas faltas que cometemos, de forma equilibrada e tratando todos os cidadãos de igual modo.

A moral de toda esta história, não do caso Casa Pia em si mas da forma como a opinião pública e publicada reagiu, tem a ver com algo de mais profundo, que foi apesar de tudo o que me provocou a reacção na discussão que deu, por sua vez, origem a este post.

A causa mais funda é que, a exemplo do que acontecia na Idade Média ou no velho Oeste, é que quando vê criminosos a caminho da forca a maioria de nós coloca-se num de dois papéis, o espectador silencioso que aguarda pela execução com curiosidade mórbida ou o activista que grita por sangue e está pronto a linchar o malfeitor. Nunca nos colocamos na pele do suspeito, do culpado que é sempre presumível inocente, e ao evitar este simples exercício de nos imaginar no lugar dos acusados tornamos fácil e natural qualquer atropelo à liberdade dos inocentes que sejam apanhados nas malhas do sistema.

Em suma, quando defendo a liberdade de um suspeito de um crime, por mais horrendo que este seja, e por mais provável que pareça a sua culpa, não o faço porque seja um liberal, e até o sou, mas antes porque estou a defender a liberdade de todos, a começar pela minha própria.

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