Monday, July 26, 2010

Not so free after all

Li há pouco um artigo, da mais recente edição do Economist, que me deu que pensar. O artigo de abertura, que enquadra o desenvolvimento do tema da capa ('Why America jails too many people') relata um episódio perfeitamente kafkiano, passado em 2000, de quatro americanos que foram levados a tribunal por terem importado lombos de lagosta embalados em sacos de plástico, em vez das caixas de cartão estabelecidas na regulamentação do respectivo país de origem. Três deles foram condenados a oito anos de prisão, dois ainda cumprem pena.

No artigo o Economist coloca, com a sua habitual e impiedosa precisão, o dedo na ferida, referindo a forma como os EUA tanto conseguem ser um País a admirar genuinamente nalguns domínios como merecem a mais justificada das críticas, pelas distorções que não apenas criam como agravam e por vezes eternizam. O caso específico relatado pelo jornal deriva da Lacey Act, uma lei que penaliza os americanos que vão contra regulamentos estrangeiros nas áreas da caça ou pesca. No fundo, uma lei criada para evitar que um cidadão americano pudesse, por exemplo, contribuir para o comércio não-autorizado de espécies em perigo não cobertas pela legislação do seu País, é hoje usada com um zelo que provavelmente não estaria nas cogitações mais longínquas do seu autor original.

Na terra que inventou o sound bite, em que as mensagens politicas são pensadas para ser eficazes, logo primando pela simplicidade e universalidade, de preferência associadas a necessidades básicas ou receios primários dos eleitores, situações como esta são fáceis de explicar por quem tenha uma visão minimamente panorâmica, e o Economist tem-na de sobra: neste caso a raíz do problema assenta no ciclo vicioso que se cria quando se estabelece que um político tem que ser "duro com o crime", tendo como único efeito que cada fornada de decisores tenta tomar posições mais duras que a anterior, quanto mais não seja porque se convencionou que o inverso é um suicídio político, mesmo que mudar uma lei injusta ou ilógica seja uma questão de pura e simples racionalidade.

O Supremo Tribunal americano acaba assim por funcionar como o último guardião da racionalidade, e se nalguns casos acaba mesmo por desfazer as leis sem sentido — porque com nomeação vitalícia e o estatuto e independência que desta advém os juízes, se preocupam mais na influência que têm sobre a lógica do Estado de Direito que garantem do que com o sabor do dia da opinião pública — não é obviamente o suficiente para evitar a quantidade e variedade de excessos em que incorrem legisladores ávidos de sangue e galões pró-segurança.

Comecei por reparar neste assunto porque, liberal como sou, reparo sempre na reacção, ou melhor na ausência dela, que se regista em Portugal quando estão em cima da mesa de discussão política temas que de uma forma ou de outra afectem a nossa liberdade individual. Mas vendo mais além este é também um exemplo de como, para bem ou para o mal, as nossas percepções afectam as nossas atitudes, e se no nosso caso em particular não temos a percepção de qualquer ameaça potencial às nossas liberdades, e se acreditamos que somos de facto uma democracia civilizada e respeitadora do espaço de cada um, a nossa atitude será sempre influenciada por essa ideia, criando o terreno fértil para que qualquer político consiga roubar-nos liberdade, desde que seja suficientemente inteligente para cuidar que não nos apercebemos disso.

O problema da percepção é que é a maior das armadilhas, e o problema da política moderna é que sabendo que quase tudo se joga na percepção, dedica a esta (e não à realidade dos problemas) a maioria do seu tempo e esforço. É por isso que desconfio quando oiço falar em agravamento de penas para baixar o crime, particularmente nos momentos em que algum crime em particular preenche os escaparates noticiosos, como aliás desconfio de todas as medidas repressivas que o Estado apresente como panaceia mágica para os problemas que na maior parte dos casos ele próprio criou.

Por deformação profissional, porque afinal toda a minha vida de trabalho foi dedicada a influenciar de uma forma ou de outra as percepções dos outros, faço um esforço consciente para detectar as diferenças entre a forma como vemos o mundo e a forma que ele efectivamente assume, até porque isso influencia os estereótipos a que o nosso cérebro recorre para lhe dar ordem e racionalidade. Sucede que neste caso, se pedíssemos a qualquer pessoa para escolher entre os EUA, que o seu próprio hino nacional cantam como the land of the free, e a China ou o Irão, para dar dois exemplos de países com sistemas políticos e legais percepcionados como pouco livres e justos, o País onde seria mais provável alguém ser preso oito anos por uma violação administrativa, ninguém acertaria na opção certa. Porque afinal podemos julgar-nos livres de tudo, mas nunca o somos da prisão das nossas próprias percepções e ideias preconcebidas.

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