Saturday, May 21, 2011

A rábula social única

Nos últimos dias o tema principal da campanha tem sido a Taxa Social Única (TSU), o imposto que as empresas têm que pagar sobre o vencimento de cada colaborador, que para quem não saiba acrescenta 23,75% aos 11% que este já desconta sobre o seu salário bruto.

Não sendo complexo o tema não é também linear, e se parte das pessoas não o entende, e parte dos que entendem não têm paciência para o debate, no fundo a tese que o PS tenta fazer vingar é que quanto maior a descida da TSU menos protegido fica o "Estado Social" (assim, com aspas e tudo), ou seja qualquer descida significativa põe em causa as pensões e benefícios sociais dos desempregados.

O PSD correu o risco que a clareza sempre acarreta em eleições, ao definir um patamar (no caso, de 4%) de redução da TSU, e todo o discurso do PS consiste em desmontar esta proposta, e na recusa de adiantar uma proposta alternativa, no fundo criando a ideia que só o PSD quer descer a taxa em causa.

Hoje, no debate com o principal candidato da Oposição, José Sócrates referiu, continuando sem apresentar um número concreto, antecedido do sacramental artifício credibilizador "toda a gente sabe qual a proposta do Governo", que defendia uma "descida moderada" da TSU.

Esta é a narrativa oficial, e no entanto é aqui que o discurso do Primeiro Ministro esbarra com os factos, a começar pelos documentos do acordo assinou há uns dias com a Troika.

O memorando de Políticas Económicas e Financeiras (link aqui), um dos três — o terceiro, o Memorando Técnico de Entendimento, não é público —documentos que expressam o acordo com a Troika refere, e passo a citar directamente do original em inglês "A critical goal of our program is to boost competitiveness. This will involve a major reduction in employer’s social security contributions".

Mesmo descontando as falhas de english technical de José o texto parece-nos claro, nem o mais júnior dos assessores do Primeiro Ministro alimentará dúvidas sobre o que quer dizer "a major reduction".

Ou seja, vistos os factos, ou a forma como a realidade difere da narrativa de Sócrates, a explicação é relativamente simples: começando pela conclusão, parece legítimo depreender que o PS evita expressar-se concretamente sobre a TSU que propõe porque sabe que defender uma redução pouco significativa implicaria ser apanhado facilmente em contradição com o documento que o seu líder assinou há poucas semanas.

Dito de outra forma, a ideia que Sócrates pretende criar, na qual de resto centrou boa parte do seu apelo ao voto nos últimos dias, de que está a defender o Estado Social porque se opõe à descida significativa da TSU que o PSD propõe, é, numa palavra, uma mentira.

Wednesday, May 11, 2011

O meu bairro

Gosto muito do meu bairro. Não cresci longe daqui, e também sou desse outro bairro, mas recentemente, numa daquelas coincidências estranhas em que a vida é fértil descobri, a propósito de um comentário casual, que o café, entre os muitos que o bairro tem, que escolhi para os meus lanches de fim de semana foi o mesmo que a minha Mãe, que na altura vivia na porta ao lado, frequentou enquanto aguardava, grávida, pelo momento do meu nascimento. Dito de outra forma, sou do meu bairro praticamente desde que nasci.

Gosto do meu bairro porque tenho tudo o que pede a vida de quem aceita a sociedade de consumo, mas aqui nunca ninguém me tratou como consumidor. Quem vive no bairro e passa a porta de uma loja, restaurante ou café é um cliente, às vezes um amigo, daqueles com quem somos capazes de manter uma relação de uma vida limitando-nos aos cumprimentos de circunstância.

Gosto do meu bairro porque tem história, e até o ar que circula pelo esqueleto vazio que ocupa hoje o lugar do Cinema Europa transporta memórias, no meu caso dos velhos filmes de capa e espada, reposições a que a minha ingenuidade infantil e a desactualização nacional nos anos setenta davam o ar de novidade.

Gosto do meu bairro porque aqui é difícil caminhar sem encontrar alguém que gostemos de ver, seja o velho amigo que vive duas ruas abaixo, a vizinha bonita a quem gostamos de acenar ou alguém que conhecemos de toda a vida e só agora descobrimos ter-se mudado para a porta ao lado.

Gosto do meu bairro porque tem gente de todo o tipo, e porque sejam as pessoas ricas ou pobres, gordas ou magras, famosas ou anónimas, bonitas ou feias são, antes de mais, pessoas do bairro, e quando é necessário unirem-se são do bairro antes de serem qualquer outra coisa.

Poderia discorrer longa e detalhadamente porque gosto tanto do meu bairro, explanar as emoções que me desperta ou a razão que suporta o confortável que me sinto a viver aqui. Podia explicá-lo de variadíssimas formas mas, como muitas vezes sucede, a melhor opção é a mais simples, de me cingir ao essencial, neste caso às duas razões pelas quais gosto do meu bairro: porque é o meu e, acima de tudo, porque aquilo que lhe chamo é o que o descreve fielmente, um verdadeiro bairro.

Monday, May 9, 2011

Os senhores do estrangeiro

Poucas coisas comovem mais o português que a opinião que os outros têm de si, particularmente se os outros forem estrangeiros de países mais ricos,  mais altos ou até simplesmente mais loiros.

Poucas coisas geram maior unanimidade entre portugueses do que dizer mal do próprio País. Trata-se aliás um desporto praticado desde tenra idade, com vários gestos técnicos adoptados pela generalidade da população — de que o melhor exemplo é a frase "isto só em Portugal" — embora seja, numa estranha contradição com o fascínio do indígena pelos senhores lá de fora, completamente vedado a cidadãos de qualquer outro País do Mundo.

Nos dias mais recentes registou-se um par de acontecimentos que fizeram vibrar estas duas sensíveis cordas da guitarra da identidade lusitana. Primeiro foi um video de exaltação patriótica apresentado por um autarca numa conferência, que tinha como destinatário a Finlândia e onde eram enumeradas várias originalidades, proezas e feitos nacionais. Apesar das incorrecções factuais e discutível relevância de parte do video, o que se assistiu foi um colectivo e emocionado embandeirar em arco.

Se parte desta euforia assentava na ignorância, e na genuína surpresa da maioria quando descobriu que as malaguetas do caril foram levadas para o subcontinente indiano pelos navegadores portugueses, o verdadeiro apelo do video foi outro: mostrava aos senhores estrangeiros que este País não devia ser confundido com um sítio periférico, atrasado, sem dinheiro e liderado por incompetentes, mesmo que no fundo também seja tudo isso.

Hoje, um artigo de opinião de um colunista alemão do Financial Times chamou, com todas as letras, mentiroso ao Primeiro Ministro de Portugal, dizendo que o seu anúncio do pacote de ajuda foi "tragico-cómico", procurando criar a ideia de que as medidas não seriam difíceis. A reacção do indígena variou, mais uma vez, entre o apoio às declarações do senhor alemão e a expressão da vergonha pela qual Sócrates nos faz passar "lá fora", ainda por cima nas prestigiadas páginas rosadas do Financial Times.

Não gosto de José Sócrates, porque acho que a sua actuação nos últimos anos se pautou por uma irresponsabilidade praticamente criminosa, mas fiquei com uma opinião ligeiramente diferente da maioria dos meus compatriotas, até porque se é verdade que o pacote de ajuda foi apresentado pela negativa, ou seja referindo-se ao que não ia acontecer e não às medidas, não é verdade que o chefe do Governo tenha passado a ideia de que os próximos três anos iam ser fáceis.

Mais, a referência polémica vem no âmbito mais alargado de um artigo sobre o estado da Europa, que advoga o aprofundamento da união política da UE, e a inevitabilidade do fracasso de uma União Monetária sem este mesmo aprofundamento. No fundo o senhor alemão mais não fez que expressar a sua vontade de que o Norte da Europa, com o seu País à frente, apenas financie os países do Sul — e Sócrates foi apenas mais um exemplo para expressar o desprezo do Norte protestante, calvinista e trabalhador pelo Sul católico, desorganizado e indolente — se estes se comportarem de forma respeitável e respeitadora.

Ou seja, onde muitos portugueses, incluindo alguns dos meus amigos mais esclarecidos, viram uma referência ao primeiro Ministro que envergonha o País eu vi um mero insulto a um País com 868 anos de história, ainda por cima vindo de um povo cuja nobreza comia com as mãos enquanto na côrte portuguesa a norma era a baixela de prata. Possivelmente serei eu a estar errado, mas uma coisa é certa: há muitas ocasiões como esta, em que discordo da voz maioritária dos outros portugueses, mas se calhar é porque, e nisso sou muito pouco português, nunca dei crédito adicional a ninguém por falar inglês ou alemão.