Nasci no início da década de 70, portanto quando os carros eléctricos da Carris eram, mais do que uma curiosidade ou um meio de transporte utilizado por quem tem tempo disponível ou o privilégio de ter o eixo da sua vida a corresponder com uma das poucas linhas ainda existentes, uma das formas de locomoção preferidas dos lisboetas, indispensável antes do advento do crédito e da consequente democratização do automóvel, porque se hoje ter um carro é quase tão comum como ter electrodomésticos em casa, nos anos 70 a situação estava muito longe de ser essa.
No início dos anos 80 recordo-me da minha euforia infantil quando, juntamente com as minhas duas irmãs mais novas, aproveitámos todas as ocasiões que uma breve vinda de férias de Macau, onde então vivíamos, nos proporcionou para apreciar as colinas lisboetas dentro de um eléctrico, percorrendo a linha do início até ao seu final, dois pontos que normalmente coincidiam, esgotando a paciência da nossa Mãe quando reivindicávamos uma volta adicional depois de utilizado o primeiro bilhete.
Quando regressei, com os meus onze anos, apanhava todos os dias a carreira 28 para vencer a distância entre a casa dos meus pais e o colégio, cujo portão ficava em frente a uma curva apertada dos carris, circunstância que normalmente aproveitávamos para saltar do eléctrico em andamento.
Saltar de um eléctrico em andamento era aliás algo que qualquer pequeno lisboeta experimentava, com a cumplicidade dos amigos e sem os pais alguma vez sonharem, quando chegava aos dez ou onze anos, antes da paranóia da segurança e da real evolução do mundo ter levado a que as crianças deixassem de andar sozinhas pela cidade, pelo que me lembro como se fosse ontem da forma como aprendi a saltar após a tremenda queda que dei da primeira, e última, vez que o fiz sem perceber que tinha que travar no momento de contacto com o solo, inclinando o tronco para trás para contrariar o natural efeito da gravidade.
Quando cheguei à adolescência o eléctrico foi perdendo importância no meu quotidiano, substituído pelo táxi nas saídas nocturnas e pelo autocarro ou metro quando ia aos meus treinos de rugby, a única actividade diurna regular que me obrigava a percorrer distâncias maiores. Ainda aproveitei, nesta fase, o lado romântico da marcha lenta dos carros sobre os carris, e lembro-me perfeitamente, com dezassete anos, de ter decidido ir de Santos às Amoreiras pelo caminho mais longo, aproveitando a quase hora e meia que faltava para o início da sessão de cinema a que ia com a minha namorada da altura para dar um passeio pela cidade.
Hoje, num eléctrico que foi ficando progressivamente vazio até estar apenas eu e o condutor, o que não terá deixado de contribuir para a nostalgia que me foi assaltando, tive a clara noção de uma coisa: que Lisboa irá sempre continuar, a dominar as margens do Tejo como nos últimos quatro milénios, mas no dia em que os eléctricos deixarem de funcionar uma parte da cidade onde nasci e cresci terá, também ela, desaparecido.
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