Thursday, October 28, 2010

Um eléctrico chamado Lisboa

Acabei agora de fazer algo que há uns bons anos não fazia, neste caso o percurso do escritório até casa de eléctrico. Tenho o meu carro na oficina, e um dos eléctricos da Carris passava providencialmente ao lado de um multibanco onde levantava dinheiro, pelo que entrei sem hesitar mas inteiramente por acaso nesta viagem que, mais do que trazer-me de Santos até Campo de Ourique, me levou a passear durante dez minutos pela minha infância e juventude.

Nasci no início da década de 70, portanto quando os carros eléctricos da Carris eram, mais do que uma curiosidade ou um meio de transporte utilizado por quem tem tempo disponível ou o privilégio de ter o eixo da sua vida a corresponder com uma das poucas linhas ainda existentes, uma das formas de locomoção preferidas dos lisboetas, indispensável antes do advento do crédito e da consequente democratização do automóvel, porque se hoje ter um carro é quase tão comum como ter electrodomésticos em casa, nos anos 70 a situação estava muito longe de ser essa.

No início dos anos 80 recordo-me da minha euforia infantil quando, juntamente com as minhas duas irmãs mais novas, aproveitámos todas as ocasiões que uma breve vinda de férias de Macau, onde então vivíamos, nos proporcionou para apreciar as colinas lisboetas dentro de um eléctrico, percorrendo a linha do início até ao seu final, dois pontos que normalmente coincidiam, esgotando a paciência da nossa Mãe quando reivindicávamos uma volta adicional depois de utilizado o primeiro bilhete.

Quando regressei, com os meus onze anos, apanhava todos os dias a carreira 28 para vencer a distância entre a casa dos meus pais e o colégio, cujo portão ficava em frente a uma curva apertada dos carris, circunstância que normalmente aproveitávamos para saltar do eléctrico em andamento.

Saltar de um eléctrico em andamento era aliás algo que qualquer pequeno lisboeta experimentava, com a cumplicidade dos amigos e sem os pais alguma vez sonharem, quando chegava aos dez ou onze anos, antes da paranóia da segurança e da real evolução do mundo ter levado a que as crianças deixassem de andar sozinhas pela cidade, pelo que me lembro como se fosse ontem da forma como aprendi a saltar após a tremenda queda que dei da primeira, e última, vez que o fiz sem perceber que tinha que travar no momento de contacto com o solo, inclinando o tronco para trás para contrariar o natural efeito da gravidade.

Quando cheguei à adolescência o eléctrico foi perdendo importância no meu quotidiano, substituído pelo táxi nas saídas nocturnas e pelo autocarro ou metro quando ia aos meus treinos de rugby, a única actividade diurna regular que me obrigava a percorrer distâncias maiores. Ainda aproveitei, nesta fase, o lado romântico da marcha lenta dos carros sobre os carris, e lembro-me perfeitamente, com dezassete anos, de ter decidido ir de Santos às Amoreiras pelo caminho mais longo, aproveitando a quase hora e meia que faltava para o início da sessão de cinema a que ia com a minha namorada da altura para dar um passeio pela cidade.

Hoje, num eléctrico que foi ficando progressivamente vazio até estar apenas eu e o condutor, o que não terá deixado de contribuir para a nostalgia que me foi assaltando, tive a clara noção de uma coisa: que Lisboa irá sempre continuar, a dominar as margens do Tejo como nos últimos quatro milénios, mas no dia em que os eléctricos deixarem de funcionar uma parte da cidade onde nasci e cresci terá, também ela, desaparecido.

Monday, October 25, 2010

Palavras presas

Às vezes há coisas que parece que sempre soubemos mas que, por uma ou outra razão, nunca expressámos em voz alta. Para mim, que gosto particularmente de palavras e do que se pode fazer com elas, os momentos em que constato isso mesmo, que acabei de descobrir uma nova expressão para algo que sempre soube mas nunca disse, são sempre especiais.

Foi por isso que há pouco, a conversar com uma amiga minha numa conversa aparentemente tão comum quanto pode ser uma conversa entre amigos a uma segunda-feira, quando o meu cérebro em particular não está disponível para seriedade ou profundidade, senti um desses momentos de revelação.

O momento surgiu a propósito de uma frase que ela tinha terminado com reticências, que eu interpretei, correctamente, como sendo o equivalente a um suspiro, dos que emitimos quando há algo que sabemos mas não queremos ou conseguimos dizer: ao referir como às vezes falam mais do que qualquer coisa que disséssemos ela pronunciou, certeira, que os suspiros "são as palavras que estão presas, e vão saindo aos poucos".

Saturday, October 23, 2010

Patriotas de esquerda

Nasci dois anos antes do 25 de Abril, por isso no período em que aprendi a falar e a explorar a língua portuguesa tive o privilégio de conviver com um vocabulário político mais alargado do que a maioria das crianças de hoje. Não era apenas a diversidade que fazia a diferença, mas também a forma como o uso de determinadas palavras nos conotava com a nossa posição no espectro político-partidário, havendo palavras que eram claramente de direita, e outras de esquerda.

O melhor exemplo disso é a palavra 'Pátria', usada até à exaustão pelo Estado Novo no seu discurso e propaganda, explorando o nacionalismo como factor de coesão e identificação, como aliás era próprio dos cânones da altura, dito de outra forma como se esperaria de uma ditadura conservadora em meados do Século XX.

Sempre me considerei um patriota, mas cresci numa altura em que a palavra não era de uso comum, e mais do que isso era usada por uns e nunca por outros, porque tinha uma conotação definida. As poucas ocasiões em que se dizia 'Pátria' em público, com entusiasmo e sem pudor, eram ironicamente essas grandes manifestações populares, frequentadas de igual forma por direita e esquerda, que são os jogos de futebol da Selecção, enquanto se cantava o hino nacional.

O mundo muda e evolui, e se no século passado o nacionalismo era o traço que definia as ditaduras de direita hoje esta associação parece ultrapassada, e é curioso ver como a China, esse bastião da construção do socialismo e modelo para tantos intelectuais de esquerda nos anos 6o, ou no nosso caso 70, usa o nacionalismo para preencher o espaço vazio deixado por um Estado com uma ideologia cada vez menos definida, que de comunismo apenas tem o nome.

No entanto, se se há coisas que não se alteram, e se mantêm constantes independentemente da força da mudança que as rodeie, uma dessas coisas é o Partido Comunista Português, que ainda há uns dias foi capaz de atacar o comité Nobel, por servir os interesses do capitalismo americano, ao dar o prémio da Paz a um dissidente chinês, julgado e preso pelo regime do país.

Do PCP espera-se que seja hoje, como em 1974, o último partido a recorrer a um léxico que não lhe seja familiar, e todos sabemos como com os comunistas a escolha de palavras nunca é acidental. Foi por isso que hoje, quando percorria as ruas do meu bairro, ao passar por uma sede do PCP aqui existente, apanhei uma das maiores surpresas da minha vida, ao ver o painel sobre a varanda, que dizia, claro e objectivo como é timbre dos comunistas, no seu inconfundível fundo vermelho e letras amarelas, foice e martelo na posição da ordem: "Com o PCP, uma política patriótica e de esquerda".

Wednesday, October 20, 2010

Ou vai ou taxa

Entre as múltiplos pequenos e grandes aumentos de impostos com que o Governo nos brindou, num dos mais pesados Orçamentos de Estado de que há memória, há um que parece recolher o repúdio unânime, neste caso da taxa que, incluída na factura de electricidade, temos que pagar para sustentar a RTP.

Todas as críticas apontam para a falta de sentido de custear uma empresa cronicamente deficitária, e quase toda a gente que ouvi pronunciar-se diz que se recusaria terminantemente a pagar a taxa se tivesse a possibilidade de o fazer, para além do argumento imbatível de que, claro, não faz sentido uma pessoa pagar se raramente vê a RTP. Sucede que este raciocínio é errado, e é errado porque está incompleto.

Para completar o quadro não vou falar da forma como o buraco financeiro da RTP surgiu, e mesmo descontando alguma má gestão que possa ter havido como o peso maior recai na sucessão vergonhosa de medidas governamentais desastradas, que primeiro, numa daquelas ideias populares e mal pensadas em que o cavaquismo foi fértil, extinguiram a taxa sem estudar alternativas (estudos posteriores revelaram que a RTP daria lucro com a exploração da publicidadde, já depois das privadas existirem, se a taxa se tivesse mantido), como se o problema de financiamento da televisão pública se resolvesse por si mesmo, depois levaram a RTP a vender a sua rede emissora à PT por um valor inferior ao que passou a pagar por dois anos de utilização, e finalmente persistiram no incumprimento constante, no tempo e nos montantes, do pagamento das indemnizações definidas pelo próprio Estado, o que obrigou a empresa a recorrer sistematicamente à banca para se manter em funcionamento (são situações destas que nos ajudam a perceber porque os lucros dos bancos portugueses parecem ser à prova de crise) que naturalmente não fizeram mais do que agravar o problema.

O raciocíno está incompleto porque aquilo que pagamos não é só a RTP-1, e se olharmos para o resto vemos que existe espaço para programação relevante que não tem audiência de massas, como é o caso da RTP-2, e existem canais internacionais que prestam um serviço valioso na defesa da língua e cultura portuguesas no mundo, porque não é preciso ser diplomata ou empresário para perceber que poder discutir a jornada anterior da Superliga antes do início de uma conversa séria num país africano tem o seu valor, ou o importante que é os filhos dos nossos quatro milhões de emigrantes saberem mais do País onde têm as raízes do que histórias antigas que ouvem da boca dos pais.

Está incompleto porque não devíamos simplesmente discutir se queremos ou não pagar tudo o que a actual televisão pública implica ou acabar com ela, porque a verdadeira opção a tomar nunca será essa, mas antes o que pode ser importante manter, e por isso merece ser pago, e o que não, e por isso deve desaparecer.

Se estudarmos o assunto podemos concluir que nem fará sentido manter um primeiro canal como o actual, concorrendo directamente com os privados numa situação dúbia em que a única diferença é a duração dos intervalos, resultando numa estação que deveria prestar serviço público mas está efectivamente tão refém dos seus resultados de audiência quanto os seus concorrentes privados, porque depende o valor dos blocos publicitários, e estes dependem directamente dos resultados, para atenuar o crónico défice financeiro.

Podemos também concluir que mais vale acabar com alguns canais, que não temos dinheiro para pagar mais que os que prestem efectivamente serviço público, e que o Estado apenas deve gastar dinheiro se a televisão servir para elevar o nível cultural da audiência ou para promover a língua e cultura portuguesas.

Podemos concluir que o contribuinte não tem que pagar nada, ou que tem que pagar tudo o que agora paga, mas essa não é a verdadeira questão.

A verdadeira questão é que temos que analisar o assunto como um todo complexo e que merece uma análise aprofundada, e não como um sound bite em que a conversa predominante é que ninguém devia pagar taxa porque de facto ninguém vê muito a RTP. Temos acima de tudo que evitar o mais fácil, que é parar o debate na frase consensual que alguém diz e toda a gente subscreve e repete sem pensar demasiado no assunto nem admitir discussão, seja o assunto televisão ou as despesas de saúde do País.

A verdadeira questão é que nestes tempos em que tudo é discutível, particularmente os investimentos, gastos e decisões que envolvem os nossos impostos e o nosso futuro, e mais do que isso em que tudo é contestável, é de todo desaconselhável vermos as questões a preto e branco, como escolhas entre positivo e negativo, porque há muitas coisas que precisamos de pôr a funcionar de uma forma diferente, e não que simplesmente desapareçam por não merecerem a nossa simpatia, e se passarmos a vida a decidir só entre certo e o errado, com base apenas no que sabemos ou achamos, sem considerar que haja coisas que nos escapam, muita coisa ficará pelo caminho.

Tuesday, October 19, 2010

Porque não aumentá-los?

Há um fio condutor comum de todos os ataques que se lêem e ouvem ao estado de coisas, e à forma nebulosa como muitas de pessoas na esfera pública parecem ter rendimentos muitíssimo acima dos outros portugueses e, este sim o verdadeiro problema, muito acima das suas aparentes capacidades ou qualificações. Em bom português, no aparelho de Estado, já para não falar desse mundo nebuloso das empresas públicas ou na esfera de influência governamental, há gente a mais, a ganhar dinheiro a mais.

A outra parte do problema, de que se fala menos mas que é patente tanto nos pequenos detalhes como nos grandes momentos — de que o melhor exemplo é o Orçamento de Estado que o próprio responsável político definiu como "o mais importante dos últimos 25 anos", entregue incompleto a minutos do prazo legal, depois de no ano passado, em mais um dos arreliadores problema informáticos que parecem perseguir este regime, ter sido entregue numa pen vazia — que é o da mais pura e simples incompetência grassar pelo escalão mais alto do Estado, começando no aparelho dos ministérios, que deveria representar a elite das pessoas que servem a causa pública, e acabando no próprio Governo. No fundo, o problema do regime é o da qualidade, do nível de qualificação de quem ocupa postos de responsabilidade.

Falarmos de falta de qualidade de alguns dirigentes e dos salários exagerados de outros leva-nos muitas vezes a confundir as coisas, e a aceitar a ideia que os políticos são demasiado bem pagos. Isso está errado, e é parte do problema. O presidente da República tem um salário bruto ligeiramente abaixo dos 7.500 euros, e o de um ministro representa 65% desse valor, ou perto de 4.900 euros antes de impostos, o que antes de ajudas de custo ou outros factores (já lá vamos) representará à volta de três mil euros limpos por mês.

Assumindo que o ministro deva ser a referência salarial daqueles que com ele trabalham directamente é razoável assumir também que, começando pelo chefe de gabinete, ninguém leve para casa ao final do mês mais de três mil euros de salário base. Quem tenha a mais pequena ideia de como funciona o governo sabe que em alguns gabinetes ministeriais trabalha-se muito, por vezes doze, catorze ou mesmo dezasseis horas por dia, portanto independentemente de outras considerações temos que assumir que se trata em muitos casos de um trabalho difícil e desgastante.

A questão, de que todos temos consciência, mas que evitamos sempre discutir é simples: não podemos pedir que os políticos sejam pessoas de qualidade pagando-lhes menos do que muitos administradores de médias empresas recebem por mês. É muito fácil comparar a remuneração do Presidente da República à do empregado de escritório, que recebe pouco mais que o salário mínimo, mas é perigoso e irrealista fazê-lo, porque o presidente ou chefe do Governo estão longe de ser dos salários mais desproporcionados relativamente à média dos portugueses, e há no País quem ganhe mais que o mais alto representante do Estado e mereça cada euro que recebe.

Pagar pouco aos políticos é triplamente perverso:

É perverso porque afasta pessoas capazes que não sejam economicamente independentes antes de ocuparem um cargo político, porque mesmo aceitando uma redução de rendimento por uma questão de serviço público os dois mil e muitos euros de salário de um secretário de Estado não pagam uma vida de classe média-alta num centro urbano, nomeadamente para quem tenha filhos, ou seja os compromissos que as pessoas potencialmente capazes de dar um contributo têm antes de ir para o Governo.

É perverso porque convida à artimanha para complementar um rendimento que é de senso comum ser inferior ao razoável, e aí entram as ajudas de custo, os cartões de crédito e outros mecanismos que apenas dependem da seriedade do utilizador para não serem usados abusivamente, convida à criatividade para remunerar irregularmente (recorrendo a institutos ou empresas externas em vez do próprio ministério) alguns assessores cujo salário foi nivelado pela anterior remuneração privada e leva ao efectivo desperdício de dinheiros públicos quando os ministérios têm que recorrer a assessorias externas, realizadas por empresas, para terem acessos às competências que não têm forma de contratar individualmente pelo seu custo real, para além de aumentar a permeabilidade do Governo face a influências do exterior, porque os mesmos consultores que apoiam o Estado não deixam naturalmente de aproveitar as oportunidades que surgem para conseguir tratamento privilegiado para os seus clientes privados.

E é, acima de tudo, perverso porque torna aceitável a ideia de que a verdadeira compensação financeira, que numa sociedade desenvolvida acompanha o sucesso em todas as áreas da vida profissional, é recebida após a política pelos contactos e experiência que se obteve, o que por um lado é um convite a que esta agenda e contactos se vão estabelecendo ainda enquanto o cargo é exercido, e por outro lado mina as fundações do que deve ser a independência do poder político face aos interesses económicos predominantes, agravando uma promiscuidade que nunca é totalmente evitável entre o dinheiro e a condução dos negócios do Estado.

É assim claro que se queremos qualidade na política temos, como sucede em qualquer outro domínio da vida moderna, de a remunerar de forma correspondente.

No entanto, e como vivendo em democracia limitarmo-nos a aumentar os políticos sem repensarmos a forma como a sua organização gasta o dinheiro é impraticável, e mais do que isso acarretaria o risco de não resolver o problema da qualidade, temos que pensar no que teria que mudar para que esta alteração produzisse uma mudança efectiva.

Há por isso cinco coisas que têm que ser salvaguardadas para que esta ideia possa ser viável:

Em primeiro lugar que as remunerações sejam fixadas de forma independente, porque qualquer salário fixado pelo próprio beneficiário tem sempre a sua credibilidade ferida na origem, e que haja uma entidade ou forma de fixação que não permita que os responsáveis políticos sejam, como são agora obrigados a ser, juízes em causa própria.

Em segundo lugar, que sejam adequadas à responsabilidade da função, ou seja comparáveis a remunerações equivalentes no sector privado, idealmente calculadas com base nestas, sem deixar de ter em conta que a possibilidade de prestar um serviço à comunidade e, porque não dizê-lo, e a oportunidade de influenciar o rumo político do País e alargar conhecimentos e contactos, levem sempre a que a remuneração pública não exceda o seu equivalente privado.

Em terceiro lugar, a estrutura que apoia o trabalho dos políticos, dos gabinetes ministeriais ao apoio aos deputados e grupos parlamentares, tem que ser reavaliada do ponto de vista organizacional, como se faria em qualquer empresa privada, definindo uma orgânica que resolva as efectivas necessidades de cada ministério e da Assembleia da República, evitado a contratação selvagem de assessores remunerados directa e indirectamente, diminuindo ao mínimo indispensável o recurso a prestadores de serviços externos para assegurar necessidades que a própria máquina estatal deveria suprir por si, e limitando a capacidade dos políticos reorganizarem à sua medida, a cada mudança de Governo ou até de cargo, o funcionamento do que são efectivamente estruturas públicas, diminuindo as perdas de eficiência que estes processos de mudança sempre acarretam, diminuindo o período de adaptação da máquina do Estado a cada novo responsável político e reduzindo a margem de desorganização que possa ser induzida pelas reestruturações feitas por políticos menos competentes.

Em quarto lugar, é necessária total e absoluta transparência, e todos os gastos dos gabinetes devem ser publicados online, no caso dos salários anualmente, e no caso dos gastos extraordinários mensalmente, evitando não apenas a suspeição e falta de crédito que sempre advém da opacidade como alguns excessos conhecidos à posteriori, como a conta de flores do gabinete do Primeiro Ministro, ou pelo menos que estes sejam feitos sem uma justificação clara.

Finalmente, porque o sistema precisa, mais do que nunca, de sangue e ideias novas, devia ser mudada a forma de contratação dos cargos de dependência directa de políticos, como sejam os gabinetes ministeriais e principais institutos públicos, aproveitando terem por norma uma duração finita, equivalente ao do mandato do político ou administração em causa, para criar a possibilidade de uma comissão temporária de serviço público, capaz de atrair pessoas de qualidade que não desejem fazer carreira permanente no Estado mas estejam disponíveis para prestar um serviço útil ao País durante um período definido, aproveitando a remuneração mais elevada para melhorar, como sucede com qualquer empresa, o nível qualitativo dos recursos humanos, recrutando pessoas no mercado de trabalho em geral e nas melhores universidades, como faz qualquer empresa de primeira linha, e não fechando a porta ao recrutamento interno, ou seja aos melhores funcionários públicos de carreira, deixando-os concorrer em igualdade de circunstâncias aos mesmos lugares, aproveitando as pessoas com genuína qualidade e empenho que (também) existem no Estado, e sua inestimável experiência do funcionamento da coisa pública.

É verdade que pela natureza sensível da actividade política, nas posições mais próximas dos decisores a confiança pessoal é essencial, pelo que teria que ser preservada a capacidade de escolha directa de parte dos colaboradores, mas a abertura do recrutamento atrairia muita gente capaz para os vários níveis do aparelho de suporte do Governo e Parlamento, e o próprio nível das pessoas que os responsáveis políticos, incluindo o Primeiro Ministro, poderiam convidar com sucesso subiria garantidamente.

O organigrama do Parlamento, Governo e Presidência e as formas de remuneração deveriam ser fixadas por um comité de sábios, um grupo de pessoas reconhecidamente capazes e independentes, de diferentes áreas políticas, com credibilidade técnica e experiência tanto na área pública ou governamental como na privada, comissão esta que seria nomeada com o acordo de pelo menos dois terços de apoio dos partidos com assento de parlamentar, sob compromisso dos dois maiores partidos de implementarem as respectivas recomendações.

Definir um quadro técnico claro para permitir uma decisão política transparente e aceite por todos não é um processo novo no nosso País, apesar de poucas vezes nos lembrarmos disso, e já produziu resultados no passado com outros temas, e em momentos menos graves que o actual, pelo que não há razões para não acreditar que uma iniciativa deste tipo não pudesse ser bem sucedida.

Tenho a certeza que se devida e aprofundadamente estudado este tema é resolúvel, no sentido em que é simultaneamente possível aumentar a qualidade dos políticos e reduzir desperdícios e ineficácias, ao mesmo tempo remunerando melhor quem preste serviço público e reduzindo o custo da estrutura necessária para legislar e governar o País. Enquanto a organização que é necessária para dirigir os assuntos do Estado mantiver as suas limitações actuais, e a salarial é claramente uma delas, a tendência para criar estruturas paralelas que possam realizar o trabalho que os ministérios não conseguem com a rapidez ou eficácia necessárias, continuará, e com esta o descontrolo na despesa e a proliferação de zonas cinzentas, com camadas de organismos que duplicam competências de ministérios a acumularem-se ao sabor das sucessivas conveniências políticas.

Tenho também a certeza de que uma medida destas contribuiria para moralizar a remuneração dos gestores e responsáveis de institutos públicos, porque os mecanismos de indexação que existiam para moderar os salários destes dirigentes associando-os ao salário do Presidente da República ou responsável do governo (existem 1.100 funcionários que ganham mais que o primeiro ministro) poderiam voltar a ser aplicados, uma vez que a respectiva remuneração fosse mais realista e condizente com a importância real dos principais cargos do Estado, em vez da actual situação, em que é admissível que o presidente do Conselho de Administração de um hospital público ganhe duas vezes mais que o Presidente da República, não porque o princípio em si faça sentido mas porque se assume que este último tem um salário irrealisticamente baixo.

Para resolver este problema é apenas preciso coragem para enfrentá-lo e explicá-lo à população, que é tudo o que tem faltado aos nossos políticos — veja-se a opacidade do acordo a que PS e PSD chegaram em Maio para as medidas do primeiro PEC, para ter um exemplo recente — nos caso de alguns políticos a coragem para deixar de lado a retórica que compara ordenados fabris a salários de governantes, e confiança na inteligência das pessoas para perceber o que está em causa. E é acima de tudo preciso noção de uma coisa: que ou aumentamos a qualidade dos nossos políticos ou a qualidade do sistema em si não melhorará, e muito dificilmente saíremos da actual situação com gente da qualidade da que actualmente ocupa os escalões mais altos do aparelho de Estado.

Monday, October 18, 2010

Quero o meu País de volta

Nasci em 1972, quando o regime era outro e o território do meu País ia de Vila Real às Portas do Cerco, que marcavam a fronteira entre o último bastião do império português e a China vermelho-vivo de Mao Tse Tung.

Em 1974, antes de ter idade para me lembrar de algo de forma substantiva tudo mudou, e as minhas primeiras memórias a sério são de um quotidiano agitado em que os Governos pareciam mudar todos os dias, palavras de ordem eram gritadas na rua e expressões como "povo", "camarada", "luta de classes" e "construção do socialismo" saíram de súbito dos livros de história, onde estavam em qualquer outro país europeu, e passaram a figurar no nosso vocabulário quotidiano.

Ao dia em que os tanques saíram à rua e o regime caiu sem sangue seguiram-se dois anos de catarse colectiva e de libertação da energia acumulada durante quatro décadas, o fim da guerra colonial que o povo e o exército já não queriam e a descolonização feita sem planeamento e sem pensar nos interesses dos portugueses que estavam em África, os excessos socialistas que ainda hoje pagamos no domínio económico e, acima de tudo, a descoberta da liberdade política para muitos portugueses, que como todas as descobertas não foi isenta de erros, abusos e problemas.

Fui com os meus pais para o Oriente, e vivi em Macau desde os primeiros dias de 1980, e para além do impacto que teve sobre mim o privilégio que então foi viver durante três anos num lugar que estava, comparativamente com Lisboa, muito mais próximo do primeiro mundo, ganhei um sentido, que nunca perdi, de que a nossa história, nacionalidade e língua são muito maiores do que o nosso quotidiano e infortúnios parecem indicar.

Lembro-me, ao regressar, da época do 'apertar o cinto', da intervenção do FMI sem a qual o Estado português teria entrado em insolvência, do Governo do Bloco Central que representou uma hoje impensável união para defender o bem maior. Lembro-me da euforia da direita à volta da candidatura de Freitas do Amaral, que mais do que tudo dizia como numa década o País tinha conseguido chegar a relativa paz consigo mesmo, e era possível não se ser de esquerda sem nos chamarem fascistas ou porem em causa as nossas credenciais democráticas.

Lembro-me de como a rodagem do Citroen de Cavaco Silva acabou no providencial líder da nova fase da nossa vida, e como o desconhecido ministro das finanças de Sá Carneiro cavalgou a vaga de centro-direita gerada pelas presidenciais para conseguir a primeira maioria absoluta da nossa jovem democracia. Reparei, nesse momento, que o PSD se alheou do pagamento das dívidas de campanha de Freitas do Amaral, que como homem honrado que era, como eram a maioria dos políticos de então, as pagou do seu bolso, com anos a fio de trabalho, não convocando conferências de imprensa nem fazendo da sua vida um queixume sobre a palavra a que lhe faltaram.

Foi aí, no final do primeiro Governo de Cavaco Silva, provavelmente o último governo com verdadeiro nível que este país conheceu, que começou a situação que agora vivemos. Foi a partir daí que a ocupação do aparelho de Estado pelo partido do Governo passou a fazer parte das regalias do vencedor, foi aí que germinou, nas privatizações e nos privilégios distribuídos a alguns, o regime cinzento em que o poder económico condiciona o poder político a seu favor e a nosso desfavor, foi aí que começou a espiral de perda de qualidade humana, intelectual e política dos homens e mulheres que nos governam.

Hoje sentimos ter batido no fundo. A política, uma das mais nobres actividades de uma sociedade civilizada, não é hoje em Portugal uma ocupação séria ou bem frequentada, e ninguém com qualidade profissional e intelectual que esteja no seu perfeito juízo arrisca o seu nome associando-se à corja que habita os aparelhos partidários e ocupa, em sucessivas camadas que as novas eleições nunca purgam e apenas reforçam, os vários níveis da administração local e central.

O problema central é de qualidade, e é demasiado gritante para admitir explicações bondosas. O Orçamento de Estado mais importante dos últimos 25 anos foi feito em cima do joelho, entregue fora de horas e incompleto, e o mais escandaloso é a forma como ninguém parece reparar ou exigir explicações sérias ao Primeiro Ministro por uma das mais escandalosas e terceiro mundistas demonstrações de incompetência de que me lembro.

A OCDE vem apregoar a necessidade de medidas draconianas no corte do défice, com o ministro das Finanças a assistir às declarações sem ter sequer o decoro de disfarçar a satisfação, e o que é mais escandaloso é a forma como ninguém parece reparar como se utilizou uma organização internacional para assumir a responsabilidade das medidas tomadas por quem elegemos, e como de caminho Portugal foi, neste processo, menorizado e humilhado pelas mesmíssimas pessoas que têm que defender o seu prestígio e posição no mundo.

Não vivo do passado e não quero o Portugal orgulhoso e poderoso que só existia nos livros de história e na propaganda do Estado Novo. Não quero que regressem os anos dourados dos descobrimentos ou do ouro do Brasil, porque D. João II só há um e o Brasil, esse sim, é a única garantia que a nossa língua manterá alguma importância no mundo do Século XXI, mas dar-nos-á apenas e só a importância que soubermos merecer. Não quero que estes senhores que agora mandam mudem de forma de ser, porque deixei de acreditar na sua capacidade para defender o nome de Portugal e o bem estar dos portugueses, e porque não tenho ilusões que alguma vez estejam intelectualmente preparados, para não falar de outro tipo de qualidades, para conduzir o País neste mundo complicado em que vivemos.

O que eu quero é outra coisa, ao mesmo tempo simples e dificílima de conseguir sem mudar tudo, e não vou deixar de a querer independentemente de como a situação evolua: quero o meu País de volta.

Sunday, October 17, 2010

A história que nunca acabará bem

Li hoje no Público que a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, assumiu o fracasso de criar uma verdadeira sociedade multicultural no país, afirmando que não foi possível conseguir uma sociedade que permitisse a convivência harmoniosa entre pessoas de diferentes origens, culturas e religiões, e apelando aos emigrantes para que "façam mais" para se integrar, dominar o idioma, conhecer a cultura e costumes, em suma transformarem-se em alemães em vez de transformarem, pela sua presença, a sociedade alemã em algo de diferente e mais diverso.

O discurso de Merkel, que seria sempre de assinalar pela negativa em qualquer país europeu, chama particularmente a atenção tratando-se da Alemanha, um país cujos últimos cem anos de história, e papel em duas guerras mundiais, não permitem nem ao mais optimista alimentar dúvidas sobre a seriedade da questão.

E se tratar-se da Alemanha leva o problema a ser ainda mais sério do que normalmente seria, esta preocupação agrava-se quando se percebemos que não se tratou de um deslize ou declaração solta, mas antes de uma posição de compromisso num debate nacional em curso no país, e que a aparente fraca defesa do direito à diferença, cultural ou religiosa, que define um país politicamente evoluído, tem que ter com a corrente dominante da opinião pública - trinta por cento dos alemães defendem o repatriamento de emigrantes, quase sessenta por cento que se limitem as práticas religiosas dos muçulmanos - que mostra clara predisposição para mesmo as posições mais intolerantes poderem ser aceites, ou pelo menos ouvidas, na sociedade alemã.

O problema maior é que não é apenas na Alemanha que isto sucede. A proibição dos minaretes na Suiça, a enorme polémica à volta do novo centro islâmico em Nova Iorque - que demonstrou não apenas o pior da sociedade americana mas também o melhor, pela forma intransigente como as autoridades da cidade colocaram a defesa da liberdade, neste caso de culto, acima da sensibilidade de uma nação que ainda não esqueceu o dia mais traumático da sua história - a violência espontânea ou organizada contra os muçulmanos e os seus locais de culto nos EUA e Europa contam uma história mais ampla e assustadora, de como a religião é cada vez mais uma força de divisão e não de tolerância, capaz até de separar ou descriminar comunidades há muito perfeitamente integradas, que são agora vistas com outros olhos e nova desconfiança pelos seus vizinhos de sempre.

A verdade é que esta não é uma questão que seja passível de ser vista a preto ou branco, e se as nossas liberdades e garantias são a matriz que nos distingue e dá legitimidade como civilização, temos também que conviver com o que é efectivamente uma enorme área cinzenta, de como lidar com um pequeno conjunto de radicais que as utilizam para nos atacar, subvertendo uma religião tolerante como o Islão para justificar a mais injustificável (porque cobarde, perpetrada contra civis inocentes) violência, e subvertendo os direitos que existem para nos defender de condutas incorrectas do Estado ou do Governo, ou seja para proteger a nossa liberdade, para atacar esse mesmo regime e ideias de liberdade.

A resposta não é simples e não será exactamente igual para alemães, americanos, franceses ou portugueses. Para além disso, neste contexto de recessão económica e aumento do desemprego, que sempre aumentam o ressentimento contra a mão de obra proveniente de outro país ou cultura, qualquer político ocidental enfrenta uma escolha difícil, entre defender a tolerância e correr o risco de perder votos e ser retirado do poder ou não censurar a opinião dominante e até juntar-se a ela, questionando a bondade ou até a viabilidade do multiculturalismo, como fez hoje Merkel.

A história diz-nos que são estes momentos que distinguem os grandes estadistas dos políticos medíocres. Ao ver a ameaça Nazi que se formava sobre a Europa Winston Churchill dedicou todas as suas forças a promover a ideia de que o Reino Unido tinha que se preparar para a guerra que aí vinha, e não podia em circunstância alguma confiar no governo alemão e em qualquer compromisso que este aparentemente estabelecesse. Foi ostracizado pelo próprio partido, uma mão provavelmente chegaria para contar os primeiros colegas de bancada que o apoiaram no parlamento, e realizou uma longa travessia do deserto, cujo desfecho, como todos sabemos, o tornaria no homem providencial a quem devemos, provavelmente mais que a qualquer outro, a vitória aliada na II Guerra Mundial.

Ao ver a senhora Merkel ou o senhor Sarkozy, já para não falar nessa colorida personagem de novela mexicana que é Berlusconi, cederem sistematicamente à tentação de agradar às suas opiniões públicas, expulsando emigrantes ou assumindo posições que põem em causa o seu papel na sociedade, entendemos um pouco o que deve ter sentido Churchill em 1938, quando as tropas nazis estavam já em território da actual República Checa, ao ver Neville Chamberlain, que o antecedeu como primeiro-ministro, regressar de uma conferência com Hitler em Munique e apresentar, com o ar de satisfação que ostenta quem cumpriu a sua missão, à chegada a solo inglês, o papel assinado por este, garantindo que as duas nações não voltariam a entrar em Guerra, perante o alívio e alegria gerais da população do País.

A verdade é que se a via escolhida para enfrentar o desafio do radicalismo islâmico for a da repressão, do profiling por critérios religiosos, da expulsão ou ostracização dos muçulmanos que vivem nos países ocidentais, os fundamentalistas estarão a ganhar a guerra, porque cada mesquita incendiada na Europa representará muitos novos recrutas para a causa, e este desfecho será tanto mais amargo quando tivémos, neste caminho, que abdicar de liberdades que tanto custaram a conquistar, derrotando-nos a nós mesmos, sem que no processo tenhamos de facto eliminado a ameaça que o terrorismo põe à nossa segurança.

Benjamin Franklin, um dos pais da nação americana, dizia que uma sociedade que está disposta a perder liberdade para ter segurança não merece nenhuma das duas. O problema, nestas coisas, é que é preciso homens de verdadeira visão para ultrapassar o medo que as sociedades, como as pessoas, têm do que não lhes é familiar. É preciso homens que vejam para além do seu próprio interesse imediato, e sejam capazes de arriscar o seu futuro político ou até a sua vida para defender o bem maior, e neste caso sejam capazes de perceber que a única forma de ganhar a guerra contra o terrorismo é com mais tolerância e integração, e não menos, mesmo que isto implique que alguns maus elementos vão abusar dessa tolerância para nos atacar.

Existem dezasseis milhões de muçulmanos em países da União Europeia, muitos dos quais não conheceram outro país ou cultura do que aquela em que actualmente vivem. Na próxima geração os líderes europeus terão que tomar decisões cruciais para o futuro destas pessoas, e com elas para o futuro de todos nós, e da Europa tolerante e aberta em que a maior parte de nós cresceu. A questão é complexa e não oferece respostas óbvias, mas uma coisa é certa: o sucesso vai depender dos líderes que escolhemos, porque a única coisa certa em tudo isto é que se continuarmos a ser conduzidos por gente de vistas curtas, como são a maioria dos actuais responsáveis políticos, quaisquer que sejam os desenvolvimentos seguintes esta história nunca acabará bem.

Thursday, October 14, 2010

A culpa é nossa

Nos últimos tempos o tom predominante do discurso público tem sido a revolta, pelo estado a que o País chegou e pela forma como a política nacional mais parece uma peça de teatro de mau gosto, em que final feliz algum salvará o desempenho dos protagonistas de uma avaliação vergonhosa.

Queixamo-nos do estado em que o Governo, este e os anteriores, deixaram o nosso querido jardim à beira-mar plantado. Queixamo-nos da forma sistemática como os militantes proeminentes do partido do Governo, deste e dos anteriores, ocuparam sem modéstia ou decoro todos os bem remunerados lugares da esfera do Estado, tanto a que sabemos existir como o nebuloso e incontrolável mundo-sombra dos institutos que duplicam competências do Governo sem o incómodo do controlo público e das empresas que dependem, por voto ou favor, dos vários ministérios, ocupando e alternando entre si as sinecuras mais cobiçadas, conquistando estatuto social e desafogo financeiro com base num mérito que apenas eles próprios e os seus próximos vêem.

Nesta voragem de culpabilização culpamos todos os que estão bem, sem distinguir se o sucesso chegou por mérito ou favor, se a via do conforto e até da riqueza vieram do que se sabe e se criou ou de quem se conhece e favoreceu. A raiva contra quem vence é própria dos invejosos, e sendo um dos traços negros do carácter nacional é também uma armadilha, uma das piores em que podemos caír, porque nos prende nas malhas da nossa própria impotência, alimentando o ressentimento de quem vê o sucesso sentado no lugar dos resignados, dos que decidiram morrer com a sua própria incapacidade de lá chegar, vivendo numa prisão que para alguns apenas existe no espírito, e para outros que é consequência lógica da nossa atávica pobreza, da inexistência de recursos e de capacidade ou tradição de educar convenientemente as massas, no fundo do nosso destino inevitavelmente medíocre.

Deixámos que a noção de que a porcaria é a regra minasse, de forma aparentemente irreversível, a nossa moral, destruindo a confiança mínima que uma sociedade civilizada tem que ter nas instituições que a separam da barbárie. Por todo o lado se ouvem gritos e palavras de ordem, agora amplificados com o novo megafone de babel da internet, da blogosfera às redes sociais, contra a corja que nos domina e parece ocupar todos os bons empregos, receber todas as benesses, e continuar a habitar um mundo imune a crises ou variações da inflação, numa existência desprovida da incerteza financeira quanto ao dia seguinte que acompanha o quotidiano a grande maioria dos portugueses.

Tudo isto parece certo e, no entanto, tudo isto está errado.

Está errado porque esta corja que suga, a diferente ritmo e intensidade, mas com igual tenacidade, do administrador indicado pelo Governo ao funcionário sem rosto, função ou utilidade prática, o sangue vital da nossa economia, o capital gerado pela proporção exagerada que o Estado captura dos nossos já magros proventos e pelo crónico endividamento público, esta corja de que nos queixamos e que diariamente atacamos sem quartel, esta corja que consegue reunir o ódio unânime dos portugueses como poucas coisas, esta corja de que se fala, somos todos nós.

Está errado porque sempre somos moralistas em causa alheia e raramente em causa própria. Os mesmos portugueses que são capazes de apanhar dois autocarros para participar numa manifestação não recusariam, no dia seguinte ou uns anos depois, um lugar bem remunerado na farta teta do erário público que um primo ou amigo bem colocado lhes fizesse aterrar no colo.

Está errado porque adiamos as decisões difíceis esperando adiar as consequências, começamos por pedir crédito para ter dinheiro para as férias ou comprar outro carro, acabamos a pedir outro crédito para pagar os excessos do anterior, encomendamos um trabalho que não sabemos como vamos pagar, e depois de tudo isto esperamos que quem elegemos para nos governar actue de forma diferente, e surpreendemo-nos quando não o faz, e quando o País sofre as consequências de se ter endividado consistente e irremediavalmente durante quase quatro décadas.

Está errado porque culpamos os políticos por não terem coragem ou tomarem medidas difíceis, por não fazerem as reformas que têm que fazer, mas seríamos incapazes de dar o leme a alguém que dissesse que cem mil pessoas terão que passar de um emprego pago pelo Estado para um futuro incerto para que o País funcione eficazmente, e não desperdice o dinheiro de todos.

Está errado porque somos capazes de protestar relativamente aos exagero de impostos que pagamos mas não de questionar a saúde e educação praticamente gratuitas, as auto-estradas às quais não queremos que regressem portagens ou qualquer coisa que não sejam os privilégios e mordomias da classe dominante, ou dito de outra forma todos os privilégios a que nós próprios não temos acesso.

Podemos continuar a viver como até aqui, e qualquer pessoa inteligente dirá mesmo que esse é o desfecho mais provável, senão mesmo o único possível, e aí, com maior ou menor intensidade consoante a altura da vaga que fustigue o País a cada momento, a culpa será sempre dos outros, "deles", da corja.

Ou podemos mudar, e assumir que a corja somos nós, que ao apontar um dedo a quem nos governa temos três dedos apontados para nós mesmos, que o sucesso não existe sem passar por sacrifícios, que o emprego ideal é aquele em que trabalhamos mais e somos compensados por isso, e não o que atrapalha o menos possível a nossa vida e apesar disso nos remunera bem, que aqueles que elegermos serão sempre o nosso reflexo, pelo que é a cada um de nós que cabe praticar o exemplo que gostava de ver dado pelos que nos deveriam liderar.

Um céptico, ou alguém que simplesmente conheça a nossa história, dirá que nunca perceberemos isto, e que as coisas nunca mudarão, porque não existe vontade ou expectativa de que efectivamente mudem, porque não existem recursos ou capital intelectual para produzir a riqueza necessária para progredirmos, porque preferimos uma existência pobre e previsível ao risco implícito na ambição.

Normalmente sou céptico, mas neste tema também me lembro sempre de uma frase, a de na vida termos que optar entre tentar mudar, por pouco que seja, o nosso País, ou mudarmo-nos para outro. Por isso, resistindo ao cepticismo só me apetece dizer: se isto é assim, e se os culpados somos todos, se temos que nos questionar se recusaríamos um salário de duzentos mil euros para um lugar para o qual não somos qualificados antes de poder criticar quem o faz, se percebermos que a corja somos nós é o primeiro passo para acabarmos com ela, então, nesse caso, quanto mais cedo nos apercebermos disso melhor.