Monday, January 17, 2011

Baby Doc is also our problem

Reparei ontem no relato da imprensa do tão imprevisto quanto extraordinário regresso ao Haiti de Jean Claude Duvalier, ou Baby Doc, o ditador que aterrorizou de forma impiedosa o país de 1971, quando herdou o poder do seu pai, François Papa Doc Duvalier, até 1986, quando foi obrigado a exilar-se perante a revolta de uma população farta de sangue e pobreza.

Pai e filho carregaram durante décadas o duvidoso mérito de terem referência assegurada quando se falava dos dirigentes mais sanguinários do planeta, mantendo um regime autoritário e fortemente repressivo que juntava ao habitual culto de personalidade do líder a originalidade de explorar o misticismo, através do voodoo, aumentando exponencialmente as possibilidades de infligir medo a uma população pobre e supersticiosa, que mantinha dominada com a sua temível polícia secreta, os Tonton Macoute, num percurso de vergonha que naquela altura da história provavelmente só Pol Pot e os seus Khmers conseguiram exceder.

Duas décadas e meia depois de ter sido obrigado a abandonar o Haiti, Baby Doc regressa, sem grandes explicações e dizendo apenas que quer "ajudar" um país em pleno turbilhão político, enquanto aguarda uma polémica segunda volta das presidenciais, e um ano após o terramoto que devastou o território e do qual este está muito longe de ter recuperado. Claro que a relevância de tudo isto, para quem vive em qualquer outro lugar do mundo, é reduzida, e sempre foi, porque afinal o cenário deste filme não passa de um pedaço de ilha nas Caraíbas, sem particular peso económico ou estratégico, nem o número suficiente de empresas e residentes estrangeiros necessário para chamar a atenção do mundo ou comovê-lo quando os fumos da tragédia se desvanecem.

O que torna o regresso de Baby Doc relevante não é, no entanto, o futuro dos haitianos, por mais simpatia que estes nos mereçam. O que torna esta notícia digna de menção é ser um bom exemplo de como, em tempos de dificuldade extrema, a memória pode ser curta, e facilmente aceitamos o que até aí parecia inaceitável, pensando no impensável, como sermos salvos por quem já nos levou ao inferno ou libertados pelo nosso anterior carcereiro.

Se pensarmos que a palavra de longe mais dita e escrita nos dias de hoje, dos jornais aos posts do facebook, da publicidade às conversas de café, é "crise", então se calhar pode também não ser má ideia percebermos como o regresso de Baby Doc é, só pelo facto de ser possível, um problema de todos nós.

Wednesday, January 12, 2011

A China que (se) ajuda

As recentes notícias sobre a compra de dívida pública europeia pela China têm levantado alguma celeuma deste lado do Mundo, celeuma essa que não é amenizada pela decisão dos responsáveis chineses de proibirem os europeus de divulgarem os termos exactos dos negócios realizados.

É linear para qualquer pessoa que um negócio destes dificilmente se fará sem contrapartidas, e o recente apoio de 5 mil milhões de euros dado pela China aos armadores gregos para modernizarem as suas frotas, com a contrapartida das compras serem feitas em estaleiros chineses, é um exemplo do que previsivelmente se seguirá noutros países, mas também é perfeitamente admissível que o Governo chinês prefira limitar a informação que é pública, porque sabe que quaisquer que sejam os termos estes causariam inevitavelmente reacções adversas, sendo irrelevante se estas se baseariam na realidade ou em preconceitos e medos que os EUA e União Europeia têm crescente dificuldade em esconder, e que não têm deixado de ser explorados pelo establishment político, nomeadamente do lado de lá do Atlântico.

O tom geral das reacções de europeus, e até de americanos, que vêem com desconforto a entrada do gigante asiático no que é tradicionalmente o seu quintal, tem sido pautado pela desconfiança, nomeadamente sobre que contrapartidas escondidas impuseram os chineses aos países europeus com dificuldades de financiamento, e para não variar sobre quais as reais intenções dos habitualmente enigmáticos dirigentes do Reino do Meio.

Apesar da abundância de teorias de conspiração, e da polémica levantada com as contrapartidas do negócio naval grego, nada disto é novo: as potências ocidentais fizeram-no décadas a fio, enquanto engordaram para além do limite do razoável a dívida do terceiro mundo para que este lhes comprasse bens e equipamentos, normalmente rentabilizando tecnologias que estavam já desactualizadas nos países de origem, e com um descaramento muito superior aos chineses na forma como denominando este esquema de "ajudas ao desenvolvimento" ainda conseguiram a proeza de ficar bem vistos junto de uma opinião pública geralmente ignorante ou desatenta.

Se, como em tudo na vida, há efectivamente dois lados nesta moeda, neste caso prefiro o positivo. Se é certo que não há almoços grátis, e o apoio chinês não deverá ter sido dado sem contrapartidas, a razão de fundo é sintomática de como o nosso mundo está a mudar, e como a globalização comprova cada vez mais a ideia, ou se quisermos o ideal, de que o comércio livre, e a interdependência económica que este acarreta, são a melhor via para um mundo próspero e livre de guerra.

Neste caso a China apoia a Europa porque, ao contrário do que acontecia há umas décadas atrás com a "ajuda" (assim, com aspas e tudo) dada aos países em vias de desenvolvimento, a desgraça da economia europeia arrastaria consigo a própria China, hoje feita fábrica do mundo, que se veria privada de um dos seus principais mercados.

É assim, mais do que uma questão de altruísmo, uma necessidade de auto-preservação para este governo autoritário e pragmático que ainda se intitula comunista. Os senhores de Pequim sabem que o regime poderia não resistir aos problemas sociais que seriam causados pelo desemprego, nomeadamente entre os milhões de chineses que abandonam todos os anos o campo para trabalhar nas cidades, inevitável caso o seu explosivo crescimento actual abrandasse para valores mais normais, como certamente sucederia se a Europa entrasse em recessão prolongada.

Poucos o saberão, mas há várias vozes credíveis, entre quem acompanha a China moderna, que defendem que uma das razões de fundo para ter ocorrido a revolta que se viu em Tiananmen não foi a simples ânsia por liberdade e democracia, provocada pela uma demissão mal aceite de um dirigente estimado pela população, mas um motivo bem mais prosaico: a subida da inflação nos meses anteriores, que fez disparar o preço de muitos bens essenciais, e espalhou o descontentamento generalizado entre a população. Se há coisa que os dirigentes de Pequim aprenderam aí é que o seu futuro depende, ironicamente para um País que ainda se intitula comunista, única e exclusivamente da sua capacidade de dar emprego, comida e meios de enriquecer a um povo cada vez mais exigente.

Friday, January 7, 2011

Que tristeza de Alegre

Manuel Alegre disse ontem em entrevista televisiva que houve "favorecimento" nas mais valias que Cavaco Silva recolheu na venda das suas acções da SLN, e que este configura "gestão danosa", tendo que haver um "julgamento político" no próximo dia 23 quando os portugueses acorrerem às urnas. Um cheiro a crime, em suma. No meio da argumentação não se coibiu de afirmar, com um ar de quem sabe muito bem o que está a dizer e um olhar cúmplice atirado à entrevistadora, que "aquele preço não é o preço de mercado" e que "resta saber" se o mesmo tratamento foi estendido a outros accionistas. Fez-me lembrar Octávio Machado, ou melhor a caricatura do Palmelão, e o seu já famoso "vocês sabem do que eu estou a falar".

Tudo isto poderia fazer vagamente sentido se não fosse um detalhe: é que ao contrário do que sucedia com o BPN, as acções da SLN não eram cotadas em bolsa, e por isso o "preço de mercado" de que fala Alegre era simplesmente o preço que alguém estaria disposto a dar por elas, numa transacção privada com o qual ninguém tem a ver senão os envolvidos, desde que se cumpra a Lei, como foi claramente o caso. Ainda por cima, e para não falar do facto de Alegre não ser capaz sequer de reconciliar o seu próprio livro de cheques, quanto mais entender algo que vá além de noções básicas de economia, pelas notícias que têm surgido a posição de Cavaco nem foi alienada a um preço particularmente favorável.

O argumento de Alegre, de sugerir que a venda foi feita acima do valor pelo qual a empresa estava avaliada, deixando implícito que esta valorização era objectivamente conhecida, e que foi feito um preço "para amigos" no caso de Cavaco, revela maldade ou ignorância. Se é ignorância, é preocupante não só que não entenda o que se passa como que não seja capaz de ouvir alguém, ou pior ainda que não exista alguém, que lhe explique que não pode falar em "preço de mercado" quando claramente não entende o conceito, e a forma como este não se aplica igualmente a uma empresa que esteja ou não cotada, a um negócio público e regulado ou a um negócio privado.

Se é maldade, é pena que um homem que, tal como o seu adversário, embora num registo inteiramente diferente, sempre se quis distinguir do comum dos políticos, usando regularmente termos pomposos para elogiar a sua própria verticalidade e idealismo, acabe a última campanha eleitoral da sua vida a fazer jogo sujo.

O Cavaco que não dá Cavaco

O ar grave e claramente irritado de Cavaco Silva que os noticiários da noite de ontem repetiram incessantemente não dava lugar a dúvidas, quase dispensando o som para se perceber o teor das declarações do professor de Boliqueime: tinha decidido que não ia alimentar mais a novela do BPN, e de agora em diante não ia falar mais sobre o assunto, porque todos os esclarecimentos que havia para dar já tinham sido dados. Do lado de Alegre, no entanto, a gritaria continua, e a imagem que fica, para parafrasear o comentário de um amigo meu, é que "Cavaco não está a dar cavaco de tudo" o que há para dizer sobre as acções que comprou.

Sucede no entanto que, por mais que eu não goste da personagem que nos desgovernou durante uma década, ele tem razão, porque já deu cavaco das acções há muito tempo, e declarou quantas comprou, quantas vendeu, e os valores envolvidos, e estes dados, longe de serem segredo, são públicos há muito tempo, e a imprensa não deixou de os noticiar quando os acontecimentos se precipitaram após a crise financeira de Setembro de 2008, e os rabos de palha do BPN começaram a cheirar mal demais para se poder continuar a ignorar o assunto.

Cavaco de facto já tinha admitido abertamente, e sem que ninguém se escandalizasse, que tinha feito um investimento financeiro de cerca de 100.00 euros em 2001 (portanto quando estava fora da política) e que em 2003 pediu à SLN para vender as acções e encaixou a correspondente mais valia. Investiu o seu dinheiro, ganho com o seu trabalho, e realizou um excelente investimento, e em si nada disto é imoral ou errado. Quando Cavaco vendeu as suas acções faltavam cinco anos para o BPN entrar em rotura, e não há nada que nos permita afirmar que nesse momento o actual Presidente da República tivesse alguma informação menos positiva sobre a empresa ou sobre a conduta dos seus responsáveis.

Ao ser colocado perante a questão no debate com Alegre, Cavaco tentou colocar a bola no outro lado do campo, e questionou a responsabilidade da actual administração (uma forma pouco subtil de apontar o dedo ao Governo e ao PS que apoia Alegre) no beco sem saída a que, mais de dois anos depois da queda do BPN, o Governo de facto conduziu o banco, isto depois de ter recusado um plano de viabilização por privados, liderado por Miguel Cadilhe, que mesmo no pior cenário sairia mais barato ao contribuinte do que o pesadelo a que agora nos arriscamos.

O argumento tem lógica, como aliás a recente entrevista de Fernando Ulrich desmonta com precisão cirúrgica, mas Alegre foi esperto e soube explorar a repulsa da populaça pelo verdadeiro caso de polícia que foi o percurso do BPN, o expoente máximo da corrupção e promiscuidade entre o poder financeiro, político e económico, e sem factos que de facto o suportassem conseguiu aqui uma forma de associar Cavaco ao pior que o cavaquismo gerou, obrigando a descer à terra o homem que normalmente fala "dos políticos" como se ele próprio não fosse um deles, tocado pelos mesmos vícios e soberba que encontramos em qualquer homem de poder. Cavaco sobrestimou a sua própria credibilidade, ou por outro lado subestimou a força da indignação geral com a aventura dos seus ex-ajudantes, e deu o flanco de uma forma que vai acabar por marcar uma campanha que foi desde o início completamente soporífera, e em última análise se arrisca a marcar a presidência.

Tudo valeu até aqui, e parece-me que tudo continuará a valer, para prolongar o mais possível a agonia do candidato da direita. Primeiro o argumento idiota, mais um, de Alegre, de que era importante saber-se "a quem vendeu ele as acções", tentando lançar um isco que ninguém nos media foi suficientemente burro para agarrar (as acções foram vendidas a uma empresa da própria SLN, mas quem determinou o destinatário foi a empresa, e não Cavaco, e mesmo não sendo especialista na matéria acho razoável assumir que não é incomum uma empresa comprar acções próprias que um pequeno accionista deseje vender) de imediato, mas que acabou por colar na agenda dos jornalistas.

Antes deste argumento Alegre tinha recorrido a um outro , ainda mais idiota, mas que sendo um bom 'sound bite' teve melhor acolhimento nos media, de que Cavaco era responsável pelo que aconteceu no BPN, "porque quem tinha acções da SLN era de facto dono do BPN". Não falando sequer do raciocínio primário que não se admite a um candidato ao mais alto cargo político da Nação, o argumento não resiste à análise mais elementar, de como será possível responsabilizar alguém que, para além de saír da holding cinco anos antes da queda do Banco, fez um investimento de 100.000 euros num grupo com largas dezenas de empresas, milhares de colaboradores e activos avaliados em milhares de milhões de euros.


O que neste momento parece claro é que a imagem de Cavaco sairá sempre beliscada desta aventura, porque a sua aura de seriedade inatacável sofre pela associação ao BPN, mas mesmo que a espuma de desvaneça e a verdade dos factos faça desaparecer a actual impressão, de que o professor de Finanças Públicas não está a contar a história na íntegra, há outra conclusão a retirar do episódio, que é tudo menos positiva.

O outra conclusão é que desde que passe tempo suficiente para a memória se desvanecer, e falo do tipo de memória que nos diz o que comemos hoje ao almoço, é possível requentar notícias velhas para criar histórias novas, pelo que qualquer político minimamente hábil consegue manipular estes media e estes jornalistas, mal preparados e pouco rigorosos, que se preocupam mais em correr com o megafone de político em político, e de histeria em histeria, do que em destrinçar o discurso dos factos, tratando das coisas a partir da sua substância e marcando a agenda noticiosa em função do que é relevante para o público, e não da declaração bombástica do momento.