Monday, September 27, 2010

A ratoeira de Sócrates

Os últimos dias têm-nos recordado do distante que está a silly season, e como à ausência de notícias relevantes se sucedem agora acontecimentos nos quais é difícil não reparar. O último tema a ocupar a arena tem sido a discussão do Orçamento de Estado, ou mais propriamente a forma como o Governo ameaça demitir-se caso não chegue a acordo, com o principal partido da oposição, para garantir a respectiva aprovação na Assembleia da República.

Já estamos habituados a alguma dramatização na discussão de um Orçamento sem um governo maioritário, mas desta vez algo parece diferente. As posições duras dos principais responsáveis políticos do Governo, Primeiro Ministro incluído, a aparente quebra de confiança pessoal entre Sócrates e Passos Coelho a propósito do que escapou para a imprensa sobre a respectiva negociação a dois (a ponto de PPC afirmar que não se encontrará novamente a sós com o líder do PS) e a forma como o PSD se parece demarcar das tentativas de conciliação de Cavaco Silva indiciam que desta vez, ao contrário do habitual, existe a possibilidade real do Governo se demitir num momento de enorme fragilidade da nossa Economia e finanças públicas.

Não sei, e neste caso apenas duas pessoas no País sabem, e uma delas disse que não voltava a encontrar-se sem testemunhas perante a outra, qual a real vontade do PS e PSD de chegar a acordo sobre o Orçamento, mas tenho uma explicação possível, uma tese que resulta, em termos simples, nos dirigentes socialistas estarem a brincar connosco, com o nosso trabalho, com os nossos impostos, e em suma com o nosso País.

Como todos sabemos esta crise orçamental foi desencadeada porque o PSD não quer aprovar o orçamento sem obter garantias de redução da despesa necessária para cumprir o PEC, nomeadamente porque é claro que o Governo se prepara para resolver parte do problema pelo lado da receita agravando a carga fiscal, como o próprio PS acabou por confirmar. Aqui não há novidade, a própria Comissão Europeia manifestou dúvidas sobre a eficácia das medidas que Portugal anunciou para reduzir a despesa, ao que o Governo já disse que iria anunciar futuramente as medidas adicionais exigidas pelas metas de redução da despesa.

Passos Coelho defende os interesses do País mas, como qualquer político, defende-os intransigentemente porque coincidem com os seus próprios interesses, já que se a besta sorvedoura de recursos que é o Estado português, e a sua despesa corrente incontrolável, não for devidamente açaimada neste momento, o líder do PSD dificilmente terá, quando se sentar na cadeira do poder nas próximas eleições, condições mínimas para fazer algo de substantivo, porque para além de cortar a direito na despesa terá que aumentar ainda mais, ou pelo menos não reduzir, os impostos. Este caderno de encargos obriga-lo-á a adiar a concretização das suas interessantes (embora dificilmente aplicáveis num País em que o Estado paga 700.000 salários) ideias liberais, que assentam na redução do peso do Estado e da carga fiscal que asfixia o País, como obrigou Durão Barroso a adiar o seu choque fiscal, porque só reduzindo o desperdício do Estado é viável diminuir a forma como a coisa pública suga o sangue da economia, libertando meios e recursos que serão melhor empregues pelas pessoas e empresas.

Sócrates, por seu lado, é reconhecidamente um sobrevivente, e bastou ver há umas semanas Francisco Assis, com aquele seu ar de burguês alimentado a croissants, a perorar sobre o "ataque ao estado social" perpetrado pelo PSD, o que para corresponde a acusar de homicídio de um cadáver alguém que ainda não chegou ao local do crime, para perceber que o Primeiro Ministro escolheu a luz que o poderá guiar até ao fim do túnel.

O que suspeito é que Sócrates está a procurar esta crise porque sabe que este é o momento ideal para assar Passos Coelho em lume brando, porque o seu tema de campanha, de colocar a opção entre os dois partidos como uma de escolher entre a defesa e a destruição do "Estado Social", está já bem definido, com a infeliz contribuição do próprio líder do PSD, com um processo de revisão constitucional que é tão feliz nas ideias válidas e na necessidade de discussão de temas importantes, como a capacidade do Estado de pagar serviços gratuitos para todos, como infeliz no timing e forma como foi lançado.

Sabendo que Passos Coelho não pode arriscar-se a aprovar qualquer Orçamento do Governo, sob pena de não poder dissociar-se dos respectivos resultados em futuras eleições, o líder do PS reserva para "mais tarde" as medidas que irá tomar para reduzir a despesa, precisamente o ponto onde os sociais democratas exigem clarificação. O cálculo é que, pressionado por Cavaco, pela conjuntura internacional e pelo cada vez maior prémio de risco que o Estado paga para se financiar, Passos Coelho acabará por aceitar, e assim parecerá alguém que tomou uma posição de força e no fim acabou por ceder, e pactuar com o Governo e com a situação, certamente deplorável, em que o País se encontrará dentro de um ano, quando passadas as presidenciais se devem realizar novas legislativas.

Se, por outro lado, não aceitar, e o Governo acabar por se demitir, fazendo adensar o fantasma da intervenção do FMI e aumentando ainda mais o já de si estratosférico custo do dinheiro para Portugal, que num país de proprietários hipotecados se prolonga rapidamente do financiamento do Estado para as prestações bancárias dos cidadãos, Sócrates pode colocar-se na posição onde qualquer político gosta de estar, a vítima injustiçada a quem não deixaram fazer o seu trabalho, e conseguirá o feito de etiquetar simultaneamente Passos Coelho como irresponsável e defensor da extinção da função social do Estado, uma ideia que, num país de funcionários e reformados como o nosso, tornará a eleição do líder do PSD impossível se uma fatia razoável do eleitorado a achar credível.

Encurralado entre duas más escolhas sem proveito, empurrado para uma solução por um Cavaco Silva que soma o seu reconhecido horror a qualquer tipo de trapalhada com a necessidade de salvaguardar uma vitória eleitoral que está neste momento assegurada, Passos Coelho arrisca-se a saír desta história com uma imagem de fraqueza, por ter cedido depois de uma posição de princípio, ou de irresponsabilidade, por ter sido o maior culpado da queda do Governo, e de tudo o que se lhe seguir.

Sócrates sabe que a sua melhor hipótese de sobrevivência política é agora, e quase se pode dizer que será agora ou nunca, pelo que é o principal interessado em provocar esta crise. Dentro de um ano, face à manutenção do problema que agora vivemos, passada a histeria do "ataque ao Estado Social" e quando a expressão "tendencialmente gratuito" tiver regressado ao seu lugar obscuro no dicionário, o Primeiro Ministro sabe que não apenas o País como o seu próprio partido já estarão a pensar na sua inevitável substituição.

Num País a sério o primeiro ministro e o líder da oposição discutiriam a reforma da função social do Estado, e explicariam aos portugueses que quem em três décadas passou de duas ou três centenas de milhar para dois milhões de pensionistas não pode manter um sistema de reformas viável se não o repensar. Num país a sério, e perante o risco real do Estado deixar de se conseguir financiar, os cortes difíceis mas indispensáveis, que exigem consenso alargado, seriam decididos antes, ou no mínimo em simultâneo, com o Orçamento de Estado, e seriam anunciados de forma clara e transparente perante agentes económicos e eleitores.

Sucede que este nem sempre é um País a sério, pelo que aquilo que acabamos por discutir não é a via de resolução da crise, ou que forma deverá tomar a indispensável reforma do Estado, mas antes de forma como Sócrates montou, com a inteligência política e instinto de sobrevivência que lhe é característico, uma brilhante ratoeira para apanhar Passos Coelho e explorar a única via possivel para se manter no poder. O problema, nesta história, é que os ratos não são os dirigentes do PSD, mas todos nós, que continuamos a pagar esta loucura com o nosso trabalho e impostos.

Wednesday, September 15, 2010

Presumível inocente

Não costumo gostar de me envolver numa discussão quando esta é o tópico mais importante do momento, nem de dar atenção ao que toda a gente parece dar em determinada altura, e naturalmente essa forma de ser acaba por se reflectir na escolha das ideias que me ocorre passar para a escrita, nomeadamente a que ponho aqui.

Uma boa discussão acalorada, como só as discussões entre amigos podem ser, e um debate no Facebook com um outro amigo acabaram por me levar a abrir a excepção, no caso sobre a mãe de todos os processos mediáticos, o processo Casa Pia, ou mais concretamente sobre o facto dos arguidos aguardarem o recurso em liberdade.

O que me levou a abrir a excepção foi no calor do debate os meus amigos (cuja argumentação não vou expôr aqui, por razões óbvias) terem questionado, entre outras coisa, se a presunção da inocência dever ser levada à letra em casos tão graves quanto este, e se faz sentido existir esta quantidade de salvaguardas e recursos, que os acusados podem dispôr até terem efectivamente que pagar o seu preço à sociedade, isto assumindo que o processo não chega a prescrever.

Começando pelo princípio, os arguidos que foram dados como culpados em primeira instância não estão a aguardar o recurso em liberdade porque o sistema não tenha um mecanismo para os prender, mas porque esse mecanismo, a prisão preventiva (que se pode prolongar até aos dois anos), foi já esgotado pela demora inadmissível de um processo que demorou sete anos até gerar uma conclusão. Quando o primeiro grande processo de pedofilia dos tempos modernos veio a público na Bélgica, nos anos 90, o julgamento foi concluído em quatro meses.

Em segundo lugar, e esgotado o limite legal - que, recorde-se, para além de deter criminosos permite deter um inocente como presumível culpado durante dois anos - de prisão preventiva, o estatuto de presumível inocente deve prevalecer, e o princípio geral sobrepor-se ao caso particular, independentemente da respectiva gravidade.

Quanto à possibilidade de recurso a instâncias superiores, que em última análise só protelam a condenação dos culpados, acho que qualquer pessoa razoável sabe que a justiça, por ser administrada por homens, é inerentemente falível, e parece-me também evidente que a possibilidade de erro diminui quantas mais instâncias existirem para verificar que a Lei foi correctamente aplicada, como ajuda a provar cada caso em que o Supremo Tribunal decide de forma contrária ao julgamento inicial.

Prefiro viver com um sistema cujas salvaguardas, mesmo permitindo excessiva liberdade aos culpados em alguns momentos, garantam a liberdade dos inocentes, porque por mais horrendo que seja o crime que alguém cometa, as regras pelas quais ele será julgado aplicam-se, de uma forma ou de outra, a mim ou a qualquer outra pessoa de bem.

Nada disto significa, no entanto, que eu não concorde com os meus amigos quanto ao inadmissível que é um pedófilo aguardar em liberdade após ser dado com culpado num julgamento, ou partilhe da sua indignação pelo estado a que a justiça chegou, e entendo a sua frustração por sentir que no fundo os culpados saem impunes por mais algum tempo. Só acho que a culpa não está nas liberdades que o sistema garante, e muito menos nas suas salvaguardas, o problema está na ineficiência que leva a que um processo destes se prolongue por tempo suficiente para arrastar consigo a vida de todos, inocentes, culpados e vítimas.

O problema está nas leis que regem o funcionamento do sistema, está nos processos, nos meios, nas pessoas que não escondem sequer transportar muitos dos vícios que marcam o resto da nossa sociedade, onde a luta entre grandes egos e pequenos poderes impera sobre o esforço em prol do bem comum, está na necessidade de fazer uma mudança profunda em algo que se vê claramente que não funciona.

Não tenho opinião formada sobre quem é ou não culpado, e embora o tema da pedofilia me horrorize e preocupe há muito deixei de lhe dar atenção quotidiana a este caso, não perdendo muito tempo a acompanhar os factos relatados na imprensa. O mundo está cheio de coisas interessantes para acompanhar, e esta não é definitivamente uma delas.

Se não dou atenção ao caso o mesmo não se pode dizer da forma como o processo decorre. Voltar-me-ei a debruçar sobre o assunto com atenção quando chegar a decisão do Supremo, porque aí serei, como seremos todos, obrigado a fazer contas sobre a confiança que a nossa justiça nos merece, o que em última análise determina boa parte do nosso respeito pela legitimidade do Estado nos punir pelas faltas que cometemos, de forma equilibrada e tratando todos os cidadãos de igual modo.

A moral de toda esta história, não do caso Casa Pia em si mas da forma como a opinião pública e publicada reagiu, tem a ver com algo de mais profundo, que foi apesar de tudo o que me provocou a reacção na discussão que deu, por sua vez, origem a este post.

A causa mais funda é que, a exemplo do que acontecia na Idade Média ou no velho Oeste, é que quando vê criminosos a caminho da forca a maioria de nós coloca-se num de dois papéis, o espectador silencioso que aguarda pela execução com curiosidade mórbida ou o activista que grita por sangue e está pronto a linchar o malfeitor. Nunca nos colocamos na pele do suspeito, do culpado que é sempre presumível inocente, e ao evitar este simples exercício de nos imaginar no lugar dos acusados tornamos fácil e natural qualquer atropelo à liberdade dos inocentes que sejam apanhados nas malhas do sistema.

Em suma, quando defendo a liberdade de um suspeito de um crime, por mais horrendo que este seja, e por mais provável que pareça a sua culpa, não o faço porque seja um liberal, e até o sou, mas antes porque estou a defender a liberdade de todos, a começar pela minha própria.

Tuesday, September 14, 2010

Zapping iraniano

Comecei há uns dias a ler um livro intitulado 'The Age of Speed', que analisa o progresso humano pelo original, e a julgar pelas primeiras páginas interessante, ponto de vista da velocidade, ou mais concretamente da necessidade que sempre tivémos de acelerar todas as actividades em que nos envolvemos, seja uma viagem transatlântica ou a espera pelo check in no aeroporto.

Todos sentimos já alguma ansiedade pela forma como por vezes parecemos atropelados pelo excesso de velocidade e informação do mundo de hoje, que parece transformar-nos em máquinas de zapping, com dificuldade crescente em concentrar tempo e atenção num só pensamento ou actividade, eternamente a saltar de um estímulo para o outro sem conseguir deter a marcha num único local.

Há no entanto momentos que nos recordam que nem tudo é mau nesta mudança. Há pouco, ao ler uma (para não variar) excelente reportagem do Economist sobre as movimentações na cúpula do poder no Irão, dei por mim a googlar o personagem de destaque, no caso braço-direito do presidente Ahmedinejad, e a viagem que se seguiu pelos links da Wikipedia levou-me a ver as biografias e intervenções recentes de vários responsáveis-chave da estrutura de poder, na tentativa de entender pelo menos superficialmente o percurso e ideias de cada um.

Não o fiz por acaso, mas porque a vida dos persas me interessa desde que, ainda adolescente, e muito por culpa de um romance de Gore Vidal (Criação) que é um dos livros da minha vida, ganhei um fascínio particular pela sua história e império, que os acontecimentos de Junho do ano passado apenas tornaram mais intenso e profundo, pelo que teria sido sempre possível que noutras circunstâncias tivesse querido, como agora quis, aprofundar o tema. Foi ao aperceber-me disso que reparei que há apenas vinte anos teria gasto incontáveis horas e algumas deslocações a bibliotecas, livrarias e arquivos de jornal para conseguir a informação que obtive num passeio de meia hora pela internet. E aí lembrei-me que viver nesta era do zapping tem as suas vantagens, porque para além de saltar entre novelas, séries e filmes agora podemos, sem sair do sofá e da mesmíssima inactividade, usá-lo para perceber quem são os homens que determinarão o futuro dos iranianos, ou em última análise o de todos nós.

Turismo da estupidez

Vi ontem na SIC uma reportagem que me incomodou, e não apenas por ser mais uma demonstração de como eram acertadas as palavras de Einstein sobre o carácter infinito da estupidez humana, mas também pelo que diz sobre quem consome as noticias, ou pelo menos sobre a forma como a redacção de um canal de sinal aberto nos é capaz de ver.

Sob o ilustrativo título "Turismo de Guera", a reportagem do correspondente da estação em Israel abordava a forma como europeus, americanos e japoneses com tempo e rendimento disponíveis visitam a linha da frente do conflito israelo-palestiniano, usando os seus euros, dólares e ienes para o que poderíamos supor ser um aparente misto de turismo aventura e preocupação legítima quanto à situação que se vive naquela parte do mundo.

Basta uma imagem, o plano claramente assassino de um grupo de turistas ocidentais sorrindo confortavelmente refastelados, em amena cavaqueira, à sombra de uma árvore, assistindo ao encontro dos manifestantes, aqui promovidos a atracção turística, com o gás lacrimogéneo do exército israelita, para desfazer qualquer ilusão sobre o espírito da reportagem e entender que esta asssenta em reduzir com toda a naturalidade o conflito mais determinante dos nossos dias a uma atracção de circo, com a adrenalina adicional de não haver grades entre o público e os leões, mesmo que o briefing antes da manifestação deixe claro aos nossos amantes de turismo-aventura que se não estiverem junto a um palestiniano que se dedique ao arremesso de pedras aos israelitas não correm o risco de serem baleados.

Mais do que a enorme leviandade como se faz desaparecer a fronteira entre o sério e o divertido, entre a raíz da relação tensa do Islão com o mundo cristão e mais uma excentricidade permitida pelo tempo e dinheiro que temos a mais, o que me impressionou foi a forma como a redacção da SIC promove e deixa passar este tipo de abordagem, o que se diz algo sobre os jornalistas envolvidos no processo, e falamos de uma classe cujos melhores elementos merecem o maior respeito da sociedade, diz muito mais sobre a forma como eles nos vêem, capazes de consumir sem pestanejar este enlatado surrealista a que quiseram chamar reportagem, sem questionar sequer a sua lógica.

Quero ver se algum dia o conflito latente entre religiões e civilizações que marca o dia-a-dia do mundo em que vivemos, e lança sombras que ninguém nega sobre o nosso futuro e dos nossos filhos, se traduzir em guerra efectiva e nos filhos e filhas dos europeus a morrerem em combate, haverá alguma luminária a pensar levar intelectuais e burgueses com rendimento disponível à frente, e um idiota com uma câmara e um microfone a fazer, com o beneplácito de um chefe de redacção que vê o seu público como uma massa pouco educada e atenta, uma reportagem sobre "turismo de morte".

(A malfadada reportagem aqui, um pouco antes do minuto 10)

Saturday, September 4, 2010

Depressão pós-férias

Estamos nos últimos dias de Agosto, e eu nos últimos dias das minhas curtas férias de praia, quando o zapping estival me leva a aterrar numa notícia do telejornal TVI que proclamava, certeira, "fim das férias pode dar lugar a depressão".

Para muitos dos que assistiam à televisão a "depressão pós-férias", um neologismo de duvidoso valor científico que me pareceu mais provável ter sido forjado na reunião editorial da estação televisiva do que nas páginas de uma qualquer publicação especializada em psicologia ou psiquiatria, representava mais um episódio da técnica, que os media usam recorrentemente e com doses cada vez mais reduzidas de pudor, de criar notícias que se associem de forma directa e linear ao que pensa e sente a audiência, no caso uma audiência que no dia anterior se deitou no último Domingo de Agosto, para milhares de pessoas o dia mais representativo do fim do periodo de descanso anual de que a maioria de nós aprecia.

Não vou discutir a falta de critério e exigência que leva quem devia produzir informação a relatar acontecimentos que só um olhar excessivamente bondoso poderia remotamente classificar como notícias, mas inquieta-me ver travestida de informação, e assumida assim como natural, a facilidade como o que é um quadro clínico cientificamente válido, legitimamente aplicado a explicar casos em que o nosso cérebro diminuiu ou mesmo retirou as condições mínimas para sermos funcionais, é aplicado levianamente para elevar a problema real qualquer ligeiro desconforto da nossa existência.

Preocupa-me viver numa sociedade que promove constantemente a desculpabilização como forma de vida, onde uma criança que não está atenta às aulas e tem maus resultados sofre sempre de défice de atenção e não de simples falta de disciplina e empenho, onde o foco do sistema de ensino é evitar o trauma da reprovação e não premiar os que se esforçam e adquirem conhecimentos (com a inevitável punição dos que não o fazem), onde as dificuldades de reajustamento entre o ritmo pausado das férias e o regresso à rotina de trabalho são associadas a um quadro clínico sério, associação que mais não faz do que reforçar a mensagem subliminar de que a nossa existência deveria ser tendencialmente fácil e livre de inconvenientes.

Preocupa-me acima de tudo porque qualquer pessoa com a mínima noção do que a rodeia já terá percebido que o nosso mundo, o do hemisfério ocidental, terminou um ciclo de mais de meio século de crescimento, riqueza e previsibilidade em que o nosso padrão de conforto e bem estar não parou de progredir, e que os nossos filhos e netos terão que trabalhar mais, sofrer mais, e dar cada vez menos por garantida a prosperidade dos dias que os aguardam.

Ao ouvir a notícia da TVI ocorreu-me que há pouco mais de um século conceitos hoje tão enraízados e inquestionáveis como os subsidios de desemprego, as pensões na velhice ou as próprias férias eram pura e simplesmente inexistentes, e quão rídicula que seria ainda há poucas décadas a premissa de que houvesse um quadro clínico legitimamente associado ao regresso ao trabalho quotidiano.

Ocorreu-me ainda outra coisa: uma sociedade que enfrenta o trabalho como um mal necessário e não como uma via para o progresso, que continua a ter como objectivo colectivo o mínimo esforço para a máxima recompensa, ignorando que do lado oposto do mundo centenas de milhões de pessoas se esforçam com um empenho que só a memória recente da fome confere, estará condenada a prazo a deixar de sofrer de depressão pós-férias, porque mesmo acreditando na existência do mundo ideal dos telejornais da TVI todos acabaremos por perceber que só teremos uma vida minimamente satisfatória se soubermos aproveitar os momentos em que trabalhamos, em vez de estar em permanente contagem decrescente para o período seguinte de inactividade.