Wednesday, November 11, 2015

A teoria do fundamentalismo ideológico


Apesar do resultado pobre que teve nas eleições, há uma coisa em que o PS conseguiu indiscutivelmente algum sucesso, que foi disfarçar a sua própria deslocação para a esquerda com uma suposta deriva ideológica da direita para o extremismo neoliberal. Chamemos-lhe a teoria do fundamentalismo ideológico, que neste caso é isso mesmo, uma teoria cuja correspondência com a verdade parece sempre altamente duvidosa, excepto se sair da boca do Pedro Nuno "não pagamos" Santos ou de outro qualquer dos jovens turcos que ultimamente berram em nome do PS.

A teoria do fundamentalismo ideológico é baseada em factos verídicos — o memorando da troika, que como qualquer documento com chancela do FMI tem a típica receita de inspiração neoliberal, e que teve que ser implementado —, ignorando o respectivo contexto, neste caso quem negociou e assinou o programa, e propagada com base em mentiras descaradas ou, se quisermos ser meigos, baseando-se em teses sem suporte factual, repetidas incessantemente até começarem a parecer verdades. Esta construção de uma realidade alternativa, destinada a substituir a realidade efectiva nas mentes dos seus apoiantes, é uma táctica costumeira dos extremistas, pelo que tem a vantagem adicional de ter assegurado o côro, do PCP e do Bloco, que só precisaram de substituir "reaccionário" por "neoliberal" nos seus habituais exageros retóricos.

A primeira mentira da teoria do fundamentalismo ideológico diz que a direita destruiu o Estado Social, sendo dado concomitantemente o exemplo do SNS, alegando-se que que há portugueses sem acesso à Saúde graças ao aumento das taxas moderadoras imposto pelos neoliberais do PSD e CDS. Não vou sequer discutir o princípio das taxas moderadoras, ou como alguém com um rendimento razoável pagar 20 euros por uma urgência está longe de constituir um escândalo, que isso é matéria de opinião, vou cingir-me aos factos: a realidade diz que nunca houve tantos portugueses isentos de taxas moderadoras como agora, cerca de 6 milhões, a que há que somar 900 mil doentes crónicos. Vou assumir que há três milhões e meio de portugueses que, não estando isentos, ganham o suficiente para não ter que optar entre morrer sem médico e gastar 20 euros. A verdade é que, apesar de haver assim mais gente com saúde gratuita do que quando cessou funções o anterior Governo PS os socialistas repetem até à exaustão o contrário.

A segunda mentira da teoria do fundamentalismo ideológico é que o Governo foi "além da troika". Mais uma vez, baseando-se em factos verídicos, neste caso uma declaração de Passos Coelho (que tinha outro sentido, mas afinal quem quer saber de detalhes como o contexto?), o PS tentou criar a ideia de que a direita, por puro sadismo ideologicamente motivado, tinha feito cortes acima do que a Troika tinha exigido. Pondo de lado o ridículo de acusar um partido de governo, que depende das boas graças dos eleitores, de sadismo político, o que diz a realidade? Que as metas para o défice das contas públicas que constavam do memorando, que como todos sabemos foi assinado por um PM do Partido Socialista, foram todas, sem excepção, suavizadas após negociação com a troika. Se olharmos objectivamente para a realidade dos programas de assistência essa suavização até é normal quando os programas são implementados com o mínimo de eficácia, mas essa nem é a questão. A questão é que não só a direita não foi "além da troika" como trouxe a troika para um ponto menos duro do que aquele que Sócrates assinou, mas mais uma vez é repetido até à exaustão o contrário.

A terceira mentira do fundamentalismo ideológico é que a direita aplicou as suas ideias neoliberais à Educação, menosprezando a escola pública e preferindo pagar a escolas privadas nos famigerados contratos de associação (que, já agora, implicam um gasto menor por aluno que o da escola pública, mas mais uma vez essa é matéria de opinião, por isso vou passar à frente). A realidade diz-nos que há hoje menos contratos de associação do que havia em 2011, quando o PS deixou o Governo. A maioria dos contratos que ainda existem foram celebrados por que Governo? Uma dica: são anteriores à tomada de posse de Passos Coelho.

Qualquer pessoa informada que tenha ideia do que é de facto neoliberalismo, ou que pelo menos não confunda o Milton Friedman com o Thomas Friedman e saiba que o Friedrich Hayek não é pai da Selma nem joga no Rapid de Viena, e tente procurar na acção deste Governo ideias e práticas claramente neoliberais, terá grande dificuldade em encontrá-las (lanço aliás o desafio a TODOS os meus amigos de esquerda para me esclarecerem de onde anda o Wally da escola de Chicago no programa de Governo). Há, como em todas as regras, uma excepção, e houve um membro do Governo que não apenas se disse inspirado pelas ideias de Friedman, nomeadamente a necessidade de minimizar a regulação da actividade económica, como as levou à prática: foi o secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, que fez um trabalho cujos resultados falam indesmentivelmente por si, e que dos lados do PS a única reacção que teve, na impossibilidade de fazer uma crítica ao desempenho do sector económico que melhor se comportou ao longo desta crise, foi uma tentativa bacoca da Câmara Municipal de Lisboa, a mesma que se prepara para taxar e regular as actividades que a regulamentação aligeirada ajudou a surgir, de chamar a si o mérito dos resultados do boom turístico que é visível nas ruas da capital.

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