Monday, May 8, 2017

Presos no passado

Depois das eleições francesas de ontem espera-nos a habitual semana de troca de comentários com diferentes pessoas a dizer as mesmas coisas. Sim, milhões votaram na Le Pen e isso dá que pensar. Sim, a "Europa"está moribunda e isto pode ter sido só adiar a inevitável espiral da desgraça. Não, o populismo não acabou aqui e continuará a grassar pelo continente, desde que vivemos no planeta Trump tudo é possível.
E depois vem o tema que será abordado, e de onde poderia saír todo um novo debate, mas onde é duvidoso se chegue a uma conclusão diferente do habitual: é que Macron foi o primeiro presidente da república francesa que não saiu de um grande partido, e foi eleito praticamente como independente, com um partido criado de improviso para a campanha. E aí vamos ouvir horas a fio de políticos e outros especialistas a falarem da crise dos partidos tradicionais, e da perda da sua ligação ao eleitorado, alguns até arriscarão soluções genéricas para o problema, mas nenhum a tentará um diagnóstico diferente dos que já ouvimos ou sugerirá sequer uma sombra de uma explicação consistente para o fenómeno. Para mim, que não sou político, especialista em política ou coisa que o valha, apenas um cidadão comum com interesse em estar informado e doses de curiosidade cepticismo que nunca me deixaram ficar mal, o problema parece-me claro: no plano das ideias, continuamos todos a viver no passado, a falar do passado e a raciocinar como no passado, e é isso que explica a aparente falta de solução visível para os problemas que nos afligem. Se virmos a história das ideias políticas mais comuns nos nossos dias constatamos que todas têm uma coisa em comum, desde o comunismo, que surgiu para responder aos excessos da revolução industrial e do capitalismo, à ideia inovadora de que o Estado devia ter uma função social, que surgiu na Alemanha de Bismarck para responder à ascensão do comunismo, passando pelo liberalismo, que surgiu como reacção aos estado fiscal (que assume que tudo o que produzimos é tendencialmente propriedade sua e que as dívidas do País são dos cidadãos) em que se transformaram os países ocidentais da I Guerra Mundial em diante: são todas produto do passado e circunstâncias passadas. Vivemos por isso num mundo onde os comunistas reverenciam ideias e autores do século XIX, os liberais clássicos ideias e autores do início do Século XX, os neoliberais ideias e economistas da segunda metade do Século passado e por aí fora. Apesar de estarmos neste momento no olho de um furacão de mudança comparável ao da Revolução Industrial (que gerou as correntes e contra-correntes ideológicas que ainda nos acompanham) os conceitos e ideias usados para enquadrar os problemas e definir soluções são sem excepção mais velhos do que os homens que os tentam usar, mas há um deserto de teorias e soluções consistentes aplicáveis à realidade que efectivamente vivemos. Se for verdade que a história é cíclica aguardam-nos ainda umas décadas de problemas, miséria, conflitos e até guerras até a humanidade encontrar uma forma de progredir em conjunto para novo e melhor estágio de desenvolvimento. E se não deixa de ser angustiante a consciência de que ao dia de hoje não há pensadores que nos orientem ou políticos que nos ajudem a percorrer o caminho, a verdade é que eles acabarão por surgir, porque depois da tempestade vem sempre a bonança, o que é sempre notícia, mesmo que signifique que só os nossos netos é que deixarão verdadeiramente de andar à chuva.

Wednesday, November 11, 2015

A teoria do fundamentalismo ideológico


Apesar do resultado pobre que teve nas eleições, há uma coisa em que o PS conseguiu indiscutivelmente algum sucesso, que foi disfarçar a sua própria deslocação para a esquerda com uma suposta deriva ideológica da direita para o extremismo neoliberal. Chamemos-lhe a teoria do fundamentalismo ideológico, que neste caso é isso mesmo, uma teoria cuja correspondência com a verdade parece sempre altamente duvidosa, excepto se sair da boca do Pedro Nuno "não pagamos" Santos ou de outro qualquer dos jovens turcos que ultimamente berram em nome do PS.

A teoria do fundamentalismo ideológico é baseada em factos verídicos — o memorando da troika, que como qualquer documento com chancela do FMI tem a típica receita de inspiração neoliberal, e que teve que ser implementado —, ignorando o respectivo contexto, neste caso quem negociou e assinou o programa, e propagada com base em mentiras descaradas ou, se quisermos ser meigos, baseando-se em teses sem suporte factual, repetidas incessantemente até começarem a parecer verdades. Esta construção de uma realidade alternativa, destinada a substituir a realidade efectiva nas mentes dos seus apoiantes, é uma táctica costumeira dos extremistas, pelo que tem a vantagem adicional de ter assegurado o côro, do PCP e do Bloco, que só precisaram de substituir "reaccionário" por "neoliberal" nos seus habituais exageros retóricos.

A primeira mentira da teoria do fundamentalismo ideológico diz que a direita destruiu o Estado Social, sendo dado concomitantemente o exemplo do SNS, alegando-se que que há portugueses sem acesso à Saúde graças ao aumento das taxas moderadoras imposto pelos neoliberais do PSD e CDS. Não vou sequer discutir o princípio das taxas moderadoras, ou como alguém com um rendimento razoável pagar 20 euros por uma urgência está longe de constituir um escândalo, que isso é matéria de opinião, vou cingir-me aos factos: a realidade diz que nunca houve tantos portugueses isentos de taxas moderadoras como agora, cerca de 6 milhões, a que há que somar 900 mil doentes crónicos. Vou assumir que há três milhões e meio de portugueses que, não estando isentos, ganham o suficiente para não ter que optar entre morrer sem médico e gastar 20 euros. A verdade é que, apesar de haver assim mais gente com saúde gratuita do que quando cessou funções o anterior Governo PS os socialistas repetem até à exaustão o contrário.

A segunda mentira da teoria do fundamentalismo ideológico é que o Governo foi "além da troika". Mais uma vez, baseando-se em factos verídicos, neste caso uma declaração de Passos Coelho (que tinha outro sentido, mas afinal quem quer saber de detalhes como o contexto?), o PS tentou criar a ideia de que a direita, por puro sadismo ideologicamente motivado, tinha feito cortes acima do que a Troika tinha exigido. Pondo de lado o ridículo de acusar um partido de governo, que depende das boas graças dos eleitores, de sadismo político, o que diz a realidade? Que as metas para o défice das contas públicas que constavam do memorando, que como todos sabemos foi assinado por um PM do Partido Socialista, foram todas, sem excepção, suavizadas após negociação com a troika. Se olharmos objectivamente para a realidade dos programas de assistência essa suavização até é normal quando os programas são implementados com o mínimo de eficácia, mas essa nem é a questão. A questão é que não só a direita não foi "além da troika" como trouxe a troika para um ponto menos duro do que aquele que Sócrates assinou, mas mais uma vez é repetido até à exaustão o contrário.

A terceira mentira do fundamentalismo ideológico é que a direita aplicou as suas ideias neoliberais à Educação, menosprezando a escola pública e preferindo pagar a escolas privadas nos famigerados contratos de associação (que, já agora, implicam um gasto menor por aluno que o da escola pública, mas mais uma vez essa é matéria de opinião, por isso vou passar à frente). A realidade diz-nos que há hoje menos contratos de associação do que havia em 2011, quando o PS deixou o Governo. A maioria dos contratos que ainda existem foram celebrados por que Governo? Uma dica: são anteriores à tomada de posse de Passos Coelho.

Qualquer pessoa informada que tenha ideia do que é de facto neoliberalismo, ou que pelo menos não confunda o Milton Friedman com o Thomas Friedman e saiba que o Friedrich Hayek não é pai da Selma nem joga no Rapid de Viena, e tente procurar na acção deste Governo ideias e práticas claramente neoliberais, terá grande dificuldade em encontrá-las (lanço aliás o desafio a TODOS os meus amigos de esquerda para me esclarecerem de onde anda o Wally da escola de Chicago no programa de Governo). Há, como em todas as regras, uma excepção, e houve um membro do Governo que não apenas se disse inspirado pelas ideias de Friedman, nomeadamente a necessidade de minimizar a regulação da actividade económica, como as levou à prática: foi o secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, que fez um trabalho cujos resultados falam indesmentivelmente por si, e que dos lados do PS a única reacção que teve, na impossibilidade de fazer uma crítica ao desempenho do sector económico que melhor se comportou ao longo desta crise, foi uma tentativa bacoca da Câmara Municipal de Lisboa, a mesma que se prepara para taxar e regular as actividades que a regulamentação aligeirada ajudou a surgir, de chamar a si o mérito dos resultados do boom turístico que é visível nas ruas da capital.

Thursday, March 20, 2014

I Have a dream





















Ultimamente tenho andado a matutar, a reflectir, a pensar no futuro do meu País. Afinal, tem de haver alguma coisa que nós, portugueses, sejamos capazes de fazer melhor que qualquer outro povo do mundo, alguma coisa que seja o nosso petróleo, a nossa Nokia, a nossa saída. Recentemente, tive uma quase epifania, em que percebi que há um futuro possível em que somos todos tão ricos como príncipes sauditas.

É um plano em duas fases, ousado mas perfeitamente realizável se houver esforço e união de todos. A primeira fase é a mais difícil: temos que arranjar quem pague bom dinheiro por políticos incompetentes, porque existindo mercado poderemos potencialmente exportá-los, enfim, a todos.

Se noutros países a progressão na política se dá pela obra feita, e se escolhem para cargos de liderança aqueles com provas dadas ao longo da carreira, em Portugal existem especialistas com uma capacidade única e inimitável para progredir, degrau após degrau, por vezes até mesmo ao topo, sem nunca terem realizado ou provado coisíssima nenhuma.

Rentabilizado o filão, assim que tenhamos vendido todos os políticos (incluindo os jotas, por atacado, para estagiários e estafetas na Goldman Sachs), é aí que se revela a verdadeira genialidade do plano. É que ao contrário do petróleo, quando esgotarmos as reservas deste novo recurso, e cessarem as respectivas receitas, a economia do País não sofrerá qualquer efeito negativo, antes pelo contrário. É que por um lado, como toda a gente sabe desde os romanos, os portugueses não são passíveis de serem governados, pelo que a ausência de governantes pouca diferença fará ao andamento do nosso quotidiano, e por outro, com o dinheiro que sobra se eles deixarem de esbanjar e distribuir entre si os nossos impostos, poderemos todos gozar uma reforma dourada a partir dos 40 anos.

Thursday, December 5, 2013

Até ao próximo



















Passei o dia todo longe do computador, mas nem por isso me esqueci que se cumpriram ontem 33 anos desde que morreram Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, vítimas de um acidente que ainda hoje é difícil de referir usando essa palavra. Mais importante do que a forma como o Cessna caiu naquele dia, e acima de tudo mais triste do que isso, é que, mesmo descontado o exagero da mui lusitana tendência para apreciar sempre mais os nossos conterrâneos na morte do que em vida, olhando para o tempo que passou desde que somos uma democracia, é difícil não pensar que naquele dia em Camarate morreram os dois últimos políticos que poderiam ter feito deste País algo diferente do que veio a ser.

Vivendo num regime moribundo, que apenas sobrevive pela nossa atávica alergia (que muitos confundem com letargia) a grandes tremores ou confusões, liderados por políticos medíocres e homens sem fibra, tolerando uma sociedade em que os interesses de alguns se sobrepõem quase sempre ao benefício de todos, é fácil acreditar que estamos condenados a viver eternamente entre o lamento e a resignação. Quando me lembro de Sá Carneiro e Amaro da Costa recordo-me — e recordo-me mais do que quando penso noutros grandes portugueses do passado, porque sou uma das crianças por cujo futuro eles lutaram — que se não somos um País tão medíocre quanto os líderes que temos é porque de vez em quando há portugueses diferentes dos outros, que desafiam o conformismo e o medo do risco, que põem convicções à frente de interesses, que enfrentam o que tiverem que enfrentar por aquilo em que acreditam e, nem que seja por alguns momentos apenas, nos provam que somos capazes de ser muito melhores do que pensávamos, e como não estamos condenados a ser eternamente medíocres e eternamente liderados por homens que desprezamos.

Tinha oito anos quando morreram os últimos portugueses deste tipo especial, os últimos políticos para quem podíamos olhar com genuíno respeito, e hoje, que tenho quarenta e um, seria feliz se soubesse que voltaria, até ao fim da minha vida, a poder votar noutro homem assim.

Wednesday, August 7, 2013

Falhar no óbvio
















Demitiu-se hoje o Secretário de Estado que tinha supostamente tentado vender SWAPs a Sócrates, e que, de uma forma quase cómica, alegava em sua defesa que só ia para as reuniões fazer número (suponho que também fazia côro quando lhe pediam, e nalguns dias recolhia os pedidos de cafés para poupar tempo à secretária) e só fazia lobby para o Banco que lhe pagava o salário, mas não vendia nada.

É só mais um episódio desta novela que, mais do que qualquer outra coisa, revela que Passos Coelho é desprovido da mais pequena réstea de bom senso, aquela réstea que  até o mais alienado tem quando ouve os outros. Senão vejamos: nomeou Maria Luís Albuquerque para ministra das Finanças quando esta, então secretária de Estado, já estava a ser ouvida pelo Parlamento sobre o seu grau de conhecimento dos contratos de Swap, isto deixando de lado a reacção do seu parceiro de coligação.

Não era preciso ser politólogo (basta ter visto dois episódios de West Wing com o som desligado) para perceber o que se ia passar a seguir: a oposição ia aproveitar alegremente a oportunidade para saltar em cima da Ministra das Finanças, e ainda por cima uma oportunidade duplamente dourada, pelo ataque fácil ao Governo, e por estarmos na 'silly season', onde a ausência de assunto leva a que o tema Swaps se tenha tornado facilmente no prato preferido dos media, que têm tantas páginas para encher neste mês de férias quanto em qualquer outro.

É que Maria Luís Albuquerque até podia ser totalmente inocente no caso das Swap, e o seu secretário de Estado vítima de uma cabala feita com documentos manipulados, mas isso é irrelevante, porque o que resulta daqui, para a maioria das pessoas, que não sabe nem quer saber as minudências associadas a um contrato de derivados, é que há um problema, mais um, em que os erros podem ser de qualquer um dos suspeitos do costume, mas a conta no fim é sempre paga pelo contribuinte.

Ora face a isto, num momento em que a credibilidade dos políticos, que nunca foi grande junto do indígena, está no nível mais baixo de que há memória, e em que estamos sob um garrote financeiro e fiscal de administração estrangeira, qualquer pessoa com dois dedos de testa perceberia que a última atitude a tomar seria nomear uma ministra que pudesse ser assada em fogo lento em audiências no Parlamento desde o dia da posse, já para não falar da forma como o momento tornava imperiosa a escolha de alguém com curriculum e credibilidade inatacáveis.

Tudo isto é particulamente grave por uma razão simples: é que se nos restantes aspectos da governação a pouca experiência profissional e fraca noção do mundo em que vivemos podiam explicar alguns erros de Passos Coelho, aqui trata-se de táctica política pura e dura, precisamente a única coisa para que a escola (?) das 'jotas' devia ter preparado o Primeiro Ministro. Ora se na parte que é suposto dominar Pedro Passos Coelho comete erros deste calibre, só nos resta rezar para que não tenha a mania de dar ideias aos restantes membros do Conselho de Ministros.

Thursday, April 4, 2013

Um País de especialistas instantâneos



Portugal é, de facto, um País peculiar: em Junho de 2011, quando o País sentia o primeiro impacto da Troika, um tal de Miguel Gonçalves, um jovem empresário e empreendedor cuja presença no programa televisivo 'Prós e Contras' se destacou pela positiva (o que, convenhamos, não é difícil, para qualquer ser com neurónios funcionais, por contraste com a apresentadora da coisa), deixando para a história a expressão "bater punho", foi subitamente alcandorado a revelação do século, uma espécie de guru instantâneo que nos explicava o que estava mal na atitude do País, cujas palavras mereciam aplauso e sublinhado unânimes.

Como nem toda a gente é suficientemente masoquista para assistir a mais que uns minutos de Fátima Campos Ferreira a boa nova chegou ao indígena da forma mais habitual nos dias de hoje: um video no Youtube.

Há uns dias o rapaz foi apresentado (eu sei que foi por Miguel Relvas, mas isso está longe de explicar tudo) como embaixador de um programa de combate ao desemprego jovem que o Governo necessitava de relançar, e num assomo de sinceridade o ministro até disse que o tinha conhecido no mesmo sítio que o comum dos habitantes do facebook, nada mais nada menos que no Youtube.

O que aconteceu em seguida? O tal Miguel ficou debaixo de uma chuva de críticas tão ou mais intensa que o dilúvio de encómios que o deu a conhecer ao mundo, etiquetado em menos que um fósforo como um vendedor da mais pura banha da cobra, um bluff, um golpe de imagem sem substância, alguém que indo trabalhar de borla só pode ter tido garantia de favores da personagem Relvas, e que para cúmulo do ridículo tinha sido "descoberto no Youtube".

O que há de comum entre estes dois momentos? Duas coisas: a primeira é que as pessoas que emitiram opiniões abalizadas passaram mais tempo a escrever o que pensavam sobre o assunto no facebook do que propriamente a informarem-se sobre o tema, ou neste caso a pessoa, que criticavam. A segunda é que muitos dos que agora dispararam a crítica fácil foram os que em meados de 2011 tinham sido tão ou mais céleres no elogio automático (e suspeito que eles próprios não se aperceberam tratar-se da mesma personagem que tinham conhecido... no Youtube).

Em suma, em Portugal temos sempre tempo para ter opiniões firmes sobre tudo, particularmente se estas forem negativas, mas raramente tempo para estudar os assuntos e formar opiniões fundamentadas. Somos um País de especialistas instantâneos.

Friday, September 21, 2012

Coisas que eu gostava que me explicassem #1 - A "paixão" pela educação

Em 1995, num País cansado de Cavaco Silva, António Guterres foi eleito prometendo "diálogo", e falando abundantemente da sua "paixão"pela Educação. A piscadela de olho ao tema não era inocente: para além do óbvio apelo aos pais receosos com o futuro dos seus petizes em idade escolar, era uma mensagem para o que é. de longe, o maior grupo de funcionários públicos.

Em Junho deste ano o ministério da Educação tinha. segundo a última síntese estatística do emprego público que o ministério das Finanças apresentou à troika, mais de 232 mil funcionários, que representam 38 por cento do total (605.000) de funcionários públicos existentes no País, ou metade da administração central.

Para se ter uma ideia da desproporção, para zelar pela educação do indígena o Estado português conta com perto de oito vezes mais funcionários do que para zelar pela sua saúde (31.034), e quase cinco vezes mais do que é necessário para garantir a Segurança Interna (48.724), ou seis vezes a Defesa (41.280), do País. Nos Açores e Madeira a situação não é diferente: a secretaria regional açoriana da Educação tem nos seus quadros metade dos funcionários públicos da região, enquanto a sua congénera da Madeira chega a astronómicos 65 por cento.

Não sou perito em educação, apenas um de milhões de portugueses que passaram pelo sistema de ensino público. nem consegui encontrar, numa pesquisa rápida, dados fiáveis sobre o número exacto de alunos que frequentam actualmente o sistema de ensino, mas não é preciso ser perito, ou saber fazer muitas contas, para perceber que o rácio de funcionários por aluno há-de ser assombrosamente baixo, e que muito provavelmente algo está errado.

Era isto que gostava que me explicassem: porque tem o ministério da Educação tanta gente, ainda por cima para prestar um serviço que está longe de ser reconhecido como excelente? Como é possívelΩ ser tão grande que um corte de apenas 5 por cento nos seus efectivos representasse mais funcionários que todo o sector empresarial do Estado? Não sei como ficarão os resultados da próxima série, depois do corte na contratação de professores para o novo ano lectivo, mas uma coisa é certa: se vamos começar a ter que fazer contas para perceber o Estado que conseguimos pagar, o ministério da Educação é um bom sítio para se começar a praticar o uso da calculadora.

Tuesday, September 18, 2012

A conversa (que interessa) é outra

Há cerca de semana e meia Pedro Passos Coelho anunciou ao País nova ronda de austeridade, destacando-se no pacote de medidas a alteração da TSU, que levou a mais uma machadada no rendimento do trabalho dos portugueses.

A reacção não se fez esperar, e desde aí o primeiro ministro foi bombardeado por críticas de todas as proveniências, desde os suspeitos do costume até notáveis do seu próprio partido, passando pelo próprio parceiro de uma coligação cujo nível de coesão passou rapidamente de sólido a colapso iminente.

Tem sido esta a narrativa dominante: ora discutimos a evidente insensibilidade do Governo, ora o putativo fundamentalismo ideológico por trás da mexida da TSU, ora ainda como a opinião pública, bem demonstrada na enorme manifestação do último Sábado, parece ter abandonado, quem sabe definitivamente, o Governo que tinha colocado no poder há pouco mais de um ano.

Se bem que pareça ser esta a conversa importante a ter neste momento, pelo menos por parte de todos os que se interessam pelo futuro do seu País, a mim parece-me que esta narrativa passa ao lado do essencial. Dito de outra forma, a conversa que interessa é outra.

Não quero dizer que o Governo não mereça ser atacado e responsabilizado - afinal, a descida da TSU pode ser uma óptima medida para apoiar as empresas exportadoras, que utilizarão a baixa de custos para se tornarem mais atraentes em mercados competitivos, mas terá efeitos a nível interno que só uma boa dose de 'wishful thinking', para não falar de puro e simples desrespeito intelectual pelos portugueses, poderá defender como benéficos para o emprego e bem estar da população.

Para além disto há a sensação de que não se cortou na despesa com a profundidade exigida, e que esses cortes não foram feitos onde de facto doíam, e onde de facto incomodavam os poderes instalados. É verdade que a solução de renegociar as PPP pode revelar-se uma melhor opção a longo prazo do que tentar alterar as regras do jogo a meio (como o Governo espanhol, envolvido em batalhas jurídicas de desfecho e duração incertos, pode atestar) para obter ganhos de curto prazo, mas a verdade é que até agora essa estratégia não deu frutos visíveis, o que nos permite desconfiar.

A questão que me interessa não é se Passos Coelho e o seu governo estão alheios ao sofrimento alheio, se são obedientes ovelhas do neoliberalismo ou sequer se a TSU foi uma boa ou má medida (até porque  poucas vezes em Portugal se viu tamanho consenso quanto a tratar-se de uma iniciativa errada). A questão é que o Governo só pode ser responsabilizado de forma limitada, porque mesmo que tenha tomado a medida menos correcta, ou menos difícil, no fundo não passa de pouco mais que uma comissão executiva cujos actos de gestão têm que ser sancionados pelos crescidos, neste caso pelo triunviriato de credores.

Este é, por ordem crescente de importância, o primeiro de dois problemas que afligem Portugal: a ideia de que os nossos representantes eleitos são quem governa o País é bonita, mas não passa de uma fantasia. Até ao final do programa de assistência financeira somos um protectorado, e na semana que passou a decisão do tribunal constitucional alemão sobre a participação no Mecanismo de Estabilização do SME foi muito mais importante do que o bem estar dos portugueses, ou até os sinais de que a receita que nos foi prescrita podia não estar a funcionar.

Duas das três entidades que suportam neste momento as nossas finanças públicas (o FMI é um caso à parte, com uma agenda conhecida) estão mais preocupadas em mostrar aos eleitorados do Norte da Europa que são capazes de firmeza a colocar os Países do Sul na linha do que em quaisquer manifestações que levem centenas de milhar à rua. Podíamos dizer que isto é triste mas é meramente uma consequência lógica da forma como conduzimos o nosso País nas últimas três décadas, que nos colocou à mercê de quem é capaz de pagar a conta.

Alguns podem dizer que a Espanha tem resistido de outra forma às imposições externas, e conseguido concessões negociais, o que só demonstra a inaptidão de quem nos representa, mas essa tese ignora o facto mais básico desta crise: que ao contrário do que sucede connosco, os países credores não se podem dar ao luxo de deixar a Espanha entrar em bancarrota, porque o buraco resultante muito provavelmente sugaria toda a economia europeia.

Podemos responsabilizar o actual Governo, e é legítimo e natural que o façamos, afinal ainda há uns meses elegemos o parlamento que lhe dá suporte, mas a triste verdade é que, mais TSU menos TSU, é altamente duvidoso que se tivéssemos a alternativa imediata (o PS) a dirigir o País o desfecho tivesse sido muito diferente, por mais que a retórica o pudesse ser.

E isto leva-nos ao segundo problema, que em muito terá contribuído para que o País um dia acordasse dentro do buraco fundo onde agora estamos, que é a quase falência do regime, e a assustadora falta de qualidade dos homens e mulheres em quem devíamos confiar para dirigir o País.

Não foi preciso mais de um ano para perceber que a Passos Coelho, por bem intencionado que seja, falta a visão e a capacidade de liderança para fazer a diferença nos momentos críticos, seja nas decisões difíceis que coloquem em causa os interesses instalados, seja em algo tão ou mais importante, a capacidade de escolher as pessoas certas para os lugares certos. Como ouvi dizer por estes dias, Passso convidou as quatro ou cinco pessoas que o ajudaram a chegar à liderança do PSD para o Governo, e não o fez por amiguismo, mas pela simples razão de que não conhecia muito mais gente.

É verdade que alguns cortes da despesa demoram tempo, algo que não temos, e é admissível um cenário em que mesmo tomadas as decisões certas os seus efeitos demorarão a aparecer, mas o primeiro ministro parece ter perdido o crédito que lhe permitiria esperar para apresentar resultados e, ou muito me engano, ou o progressivo distanciamento do CDS/PP acabará por resultar em implosão do executivo, já que só uma forte coesão interna permitiria manter um governo que perdeu o apoio popular.

E é aqui que chegamos ao verdadeiro problema, que ilustra a falência do regime: as alternativas à actual situação. Se olharmos para os partidos representados na Assembleia o panorama é assustador: dois deles estão fora da realidade, com uma base ideológica criada no Século XIX, que feneceu com o século seguinte, mas que eles continuam teimosamente a venerar. Defendem a maldade intrínseca do capitalismo, a necessidade de proteccionismo como valor de base do comércio, e resumidamente que o mundo globalizado dos nossos dias revolva em sentido contrário perto de um século. Numa frase, com excepção do pontual "tema fracturante" não servem para nada senão para fazer barulho.

O caso de António José Seguro é diferente, até pela proximidade de percurso com Passos Coelho (de quem, aliás, é amigo). Passos é um produto da partidocracia, com uma leitura aparentemente deficitária do mundo em seu redor, e a teimosia dos que não conseguindo entender tudo preferem não fazer nada. Seguro, também um produto das 'Jotas', sem percurso profissional ou de vida digno de registo, com um diploma que apenas serve para poder usar o indispensável título académico a preceder o nome, revela ser ainda pior, um cata-vento, alguém capaz de passar como boa qualquer ideia que lhe tenha sido ventilada suficientemente próximo do ouvido.

Da entrevista que o líder do PS deu nesta segunda-feira, em que em teoria apresentou a alternativa às medidas do Governo - e na prática desfiou algumas generalidades, fintou pergunta sobre as PPP assinadas pelo seu antecessor, e genericamente se afirmou como amigo da competitividade e emprego - houve um exemplo em particular que me chamou a atenção: Seguro pretende substituir cirurgicamente algumas importações por "produção nacional".

Jerónimo de Sousa deve ter ficado radiante, afinal é o que o PCP sempre tem apregoado como panaceia geral para os males da nossa economia: fechá-la aos malvados estrangeiros que prejudicam a boa da produção nacional. Ora o que faz sentido na boca de um comunista não assenta minimamente bem quando o autor da ideia é o teórico primeiro suplente do cargo de primeiro ministro, que uma vez no poder terá que lidar com o mercado único europeu, cujos tratados impedem o proteccionismo, e com os acordos assinados no âmbito da OMC. Numa palavra, com uma realidade incompatível com a sua brilhante ideia, o que é altamente preocupante, porque indicia que o líder do PS não apenas se faz rodear de pessoas capazes deste tipo de pensamento, como não é capaz de ter depois um juízo crítico das ideias que ouve.

Há perto de duas semanas Adriano Moreira, um dos últimos verdadeiros senadores com que a nossa República ainda conta, mencionou um facto tão significativo com ignorado no debate que nos tem consumido: que Portugal não tem um conceito estratégico definido desde 1974, o que é inacreditável se pensarmos até onde conseguimos chegar quando a nossa pátria é a língua portuguesa, e na dimensão das nossas águas territoriais, e constatamos que uma estratégia para o País foi assunto que, tirando o fogacho ocasional, os dois partidos de poder simplesmente não se deram ao trabalho de debater seriamente.

E é este o verdadeiro problema: um sistema político que discute medidas e sound bites com retórica na máxima intensidade, mas é incapaz de apresentar um rumo ou uma estratégia.

O próprio memorando de entendimento com os nossos credores continha uma panóplia de medidas de reforma do Estado e da economia, com uma clareza de prazos e objectivos provavelmente superior à de qualquer (outro) programa de governo que tenha sido sufragado em democracia A passagem à prática desse programa não foi pura e simplesmente fiscalizada: o Bloco e o PCP naturalmente não perdem tempo a analisar uma linha do programa, porque estão simplesmente contra, e o PS foi-se dizendo genericamente a favor do crescimento e do emprego e contra a austeridade (mais uma lógica que nunca compreenderei) e distanciou-se o mais que pôde de um documento que ostentava a sua assinatura.

No fundo, ao não discutirem em termos o compromisso que assumimos em troca dos sacrifícios, confrontando o Governo com datas e números em vez de simples retórica, os partidos da oposição hipotecaram boa parte das possibilidades do programa ser uma oportunidade, tal como acabou por ser o de 1983.

E é assim que vivemos, sem competência na implementação ou no controlo da receita a que fomos condenados, sem estratégia que vá além da travessia do deserto, apesar do potencial estar perante os nossos olhos, sem pessoas em quem possamos confiar para nos levar a vencer estes desafios, com um sistema político que não funciona.

A parte estranha é que apesar de sabermos que o sistema é disfuncional, entretemo-nos a alimentar a discussão nos termos que nos são propostos pelos seus protagonistas: austeridade contra crescimento, defesa do estado social contra vontade de o extinguir, sensibilidade social contra insensibilidade pura e dura, como se toda a complexidade do mundo fosse passível de ser reduzida em dicotomias simples, que só admitem estar a favor ou contra alguma coisa.

Enquanto o fizermos, enquanto dermos força a esta narrativa, estamos implicitamente a dar-nos por satisfeitos, trocando um mal menor por outro, sabendo que não podemos esperar mais que a mediania e rezando por um lampejo de brilhantismo, assumindo que o sistema não mudará e por isso evitando pensar no que tem que mudar em nós.

Gostaria de viver num País onde os políticos discutissem ideias, mas também planos, factos, medidas, prazos, onde a mudança demográfica da sociedade e o seu impacto sobre as finanças do Estado fosse estudada, onde fôssemos capazes de discutir qual a verdadeira dimensão do Estado Social que podemos suportar (deixando de discutir, sem lógica, se queremos extingui-lo ou salvá-lo), onde pudéssemos decidir em consenso aquilo de que estamos e não estamos dispostos a abdicar perante a falta de recursos financeiros do Estado, onde as perguntas importantes fossem respondidas pelas pessoas que dirigem o nosso destino, e feitas por quem espera a sua vez de o fazer.

Sei que pouco posso fazer para que tudo isso aconteça, mas uma coisa pelo menos está ao meu alcance: não continuar a alimentar a conversa do sistema, não continuar a perder neurónios e horas a discutir o último sound bite, não continuar a aceitar os termos redutores em que a discussão se faz, que apenas interessam aos dois protagonistas principais, e apenas os protegem de um verdadeiro escrutínio. Quero falar sobre o futuro do meu País, sobre o rumo que temos que seguir, sobre a estratégia para não voltar a ser governado por uma comissão de burocratas estrangeiros. É por isso quero participar o mínimo possível na conversa que Passos, Seguro e as suas entourages nos querem impôr. Porque a conversa que interessa, a do futuro de Portugal, é outra.


Saturday, August 4, 2012

Pobreza franciscana



O primeiro exame sério da míriade de fundações e organismos que constituem o "Estado paralelo" construído por sucessivos governos para escapar ao rigor das metas do défice ou das Leis que regem as compras e gastos públicos (ainda hoje se descobriu que metade dos apoios dados pelo Estado no último triénio foram para a fundação responsável pelo Magalhães, uma das bandeiras socialistas, e este está longe de ser dos piores exemplos).

A primeira abordagem séria à extinção das inúmeras empresas municipais que criaram milhares de empregos artificiais à custa dos impostos sobre o trabalho de todos nós, premiando as redes de clientelas dos principais partidos a nível local.

A primeira afronta séria, desde Leonor Beleza, ao poder magnânimo dos médicos, e uma auditoria séria ao SNS que descobriu profissionais a ganharem duas, três ou muitas (num caso detectou-se um médico que recebia anualmente cerca de 500.000 euros do Estado) vezes mais os máximos estabelecidos por Lei, algo que não pode ser seriamente dissociado da penúria do SNS, de que vemos inúmeros sintomas todos os dias, o maior dos quais será o das as remunerações indecentemente miseráveis dos enfermeiros, o elo mais fraco desta cadeira, independentemente destas resultarem de um leilão.

A primeira tentativa séria de dar uso aos milhares de hectares de terra que o Estado tem ao abandono, ironicamente impulsionada por uma ministra que está no extremo oposto do expectro político relativamente aos defensores da reforma agrária, uma autoria que horrorizaria quem nos anos 70 e 80 gritava que a terra devia ser dada a quem a trabalha.

Estes são alguns exemplos mais recentes de mudanças que o Governo tem feito, e que se obviamente não estarão isentas de críticas na forma ou na execução, têm o mérito de terem existido, mais do que o que poderá ser dito dos governos anteriores.

É a análise destas e de outras medidas, procurando descobrir o que está menos bem feito, que se esperaria de uma Oposição interventiva e informada. O que temos tido, em vez disso? A discussão dos vários significados do verbo "lixar", e a retórica tão vazia quanto irresponsavelmente populista do PS que diz estar "do lado oposto ao Governo e à Troika", e mais recentemente um conjunto de atoardas sobre a privatização da TAP que ficariam bem numa dicussão de café, mas ficam claramente mal ao líder de um partido que supostamente deveria ter aspirações a governar, e como tal a saber como funcionam as coisas, e que numa empresa tão deficitária e tão dificilmente vendável como a TAP não se consegue estabelecer à partida um modelo definido que sirva os interesses do País, apenas negociar o melhor possível com base nas ofertas que eventualmente surjam, no limite rejeitando as condições em que o processo é exequível.

Está tudo dito quanto à qualidade das pessoas que supostamente deviam controlar a actividade do Governo e eu, como cidadão, posso nunca ter votado nestes opositores, mas não é por isso que não me preocupa a sua baixa qualidade e fraco domínio das questões, para não falar da pura e simples falta de adesão à realidade dos extremos do espectro político, que leva a que os partidos que hoje estão fora do Governo não mereçam sequer o crédito de saberem qual o papel que lhes está reservado, e que em vez de ladrar de forma automática, e por vezes até desprovida de sentido, contra tudo o que o Executivo faz,  deviam antes andar a vigiá-lo, e a obrigá-lo a ser melhor e mais rigoroso.

Tuesday, March 13, 2012

No fundo, somos todos parvos...

Ajudado, é certo, por um regime de bonificações que levou a compra de casa a ser vantajosa, associado a uma lei de arrendamento que parecia feita de propósito para manter as rendas baixas para todos (incluindo os que podiam pagar preços de mercado), mesmo que tal implicasse um parque habitacional em ruinas, o português médio tinha como projecto de vida ser "proprietário" (as aspas justificam-se, como verão) da sua própria casinha, resistindo teimosamente a qualquer argumento que questionasse esta grande conquista. Eu sei-o bem, sempre defendi o arrendamento, ou pelo menos que se considerasse esta alternativa, levando sempre em troca um "mas isso não faz sentido, estás a pagar por uma coisa que não é tua" dos meus amigos, que quando fazia este raciocínio olhavam sempre para mim como se tivesse chegado na véspera de Marte.

Em trinta anos tornámo-nos no País com mais proprietários 'per capita' da Europa, ou melhor com mais propriedade, já que cada português é agora orgulhoso proprietário de uma média de duas (?!) casas "suas", estatística cuja falta de sentido nunca ocorreu a ninguém questionar nos tempos áureos em que todas as casas se iriam valorizar, mesmo que localizadas num local onde não existisse nada em redor.

Quando chegou a era da inovação financeira e do crédito fácil, que levou os Bancos a viverem num mundo (virtual) isento de riscos de crédito, o nosso lusitano médio aproveitou a benesse para pedir mais algum dinheiro para obras, que gastou naquele sofá italiano que sempre quis, ou no novo plasma maior que o do vizinho, aproveitou para mudar logo para a sua casa de sonhos antes de ter vendido a anterior, aproveitou para beneficiar de uma prestação mais baixa, pagando só os juros, e adiando o encontro com a realidade até ao limite do possível (porque mais tarde a casa ia valorizar e podia sempre ser vendida num dia de aperto), aproveitou quando quis casar e decidiu que a primeira decisão a tomar, ainda antes de perceber se conseguia dividir a casa de banho com outra pessoa, seria comprar a meias um imóvel a cheirar a novo.

Hoje, o Bloco de Esquerda, sempre atento à resposta mais demagógica possível aos problemas (reais, esses sim) das pessoas, propõe que quem não tem dinheiro devolva a casa ao Banco, e considere extinta a dívida. No fundo, propõe que quando as coisas corram mal a pessoa passe o risco da sua decisão (e no mundo real decisões como comprar uma casa envolvem obviamente riscos) para o Banco que a financiou. Porquê? Porque a culpa é dos Bancos, que contribuiram para o endividamento das famílias.

Apesar de estar nos antípodas ideológicos do BE não me move, antes pelo contrário, qualquer simpatia pela banca nacional. Apenas há uma coisa que gosto menos: demagogos irresponsáveis, que acham que alguém há-de pagar a conta que os pobrezinhos - as massas incultas à espera da sua orientação, seja neste tema seja em coisas como saír à rua para se manifestar - contraíram certamente sem sombra de culpa ou irresponsabilidade, enganados pelos lobos maus do capitalismo, encarnados na banca que concedeu empréstimos a quem os pediu.

Não gosto desta linha de raciocínio, apesar de compreender que deriva do tronco central do discurso típico  - onde a moral substituiu a política,  porque  a luta de classes é chão que já deu uvas, e a um partido moderno e urbano exige-se que disfarce o melhor possível o facto da sua matriz ideológica ser do Século XIX -  do Bloco, em que o capitalismo é o mal, como parte de um pressuposto muito caro a certa esquerda, mas que provoca o mais puro repúdio num liberal de direita como eu, ou no fundo em qualquer cidadão que se julgue consciente: que somos todos carneiros, parvos e manipuláveis, prontos a contraír dívidas, que obviamente serão culpa dos nossos credores no dia em que não as conseguirmos pagar...

Wednesday, November 2, 2011

That little thing called democracy

Depois da semana passada ter terminado com um suspiro generalizado de alívio pela aprovação do novo programa de ajuda à Grécia, que obrigará os credores a assumirem perdas de 50% nas posições de dívida pública daquele País e concederá aos gregos um empréstimo suplementar de 100 mil milhões de euros, esta semana começou com a forte queda dos mercados financeiros, após o anúncio, pelo Primeiro Ministro helénico, de um referendo para recolher aprovação popular das medidas de austeridade a que o pacote de ajuda obriga.

De Paris e Berlim, em surdina ou de forma sonora, os protestos não se fizeram esperar, e no momento em que escrevo as notícias que circulam na imprensa falam na suspensão da ajuda à Grécia, incluindo os 8.000 milhões de euros que o Estado helénico necessita com urgência para pagar salários e obrigações inadiáveis, pelo menos até ao resultado do referendo ser conhecido, e reforçam que o pacote de ajuda está inteiramente dependente da adopção na íntegra das medidas de austeridade que George Papandreou acordou na semana passada. 

Não é preciso explicar a ninguém o risco do que se segue a um incumprimento descontrolado da Grécia: o alastrar da crise da dívida a países maiores, como Itália, Espanha ou mesmo França, grandes demais para serem alvo de ajuda financeira, a morte prematura do euro, provável prenúncio do desaparecimento da UE, pelo menos como a conhecemos, e uma recessão prolongada em toda a Europa, condenando os seus membros mais frágeis à pobreza durante uma geração.

O observador mais desatento diria que é inadmissível a forma como os líderes dos maiores países europeus reagem ao exercício de democracia por um dos países mais pequenos. A questão tem, no entanto, pouco a ver com países grandes e pequenos: o problema da UE, como da CEE antes dela, é com a democracia em si, e com excepções pontuais e fáceis de apontar, quase todas as medidas da chamada "construção europeia" foram tomadas em gabinetes e salas de reunião, por políticos que foram negociando e decidindo algo que afecta fortemente o quotidiano dos seus cidadãos sem alguma vez se preocuparem em envolvê-los na discussão, e muitas vezes até evitando que esta sequer ocorresse.

A União Europeia, um organismo supra-nacional que institui um espaço de comércio livre e fronteiras comuns, portanto a poucos passos de ser uma federação, entre países que passaram toda a sua História a guerrear-se entre si (o que não deixa de ser um feito tremendo) é o maior espaço democrático do mundo, mas foi construída recorrendo o mínimo possível à democracia propriamente dita. É assim natural o incómodo de Paris, e particularmente de Berlim, que sentem que Papandreou fez uma jogada suja, usando num momento crítico uma carta que nunca fez parte do baralho.

É costume dizer-se que os países não têm amigos, apenas interesses. Serão os interessses dos maiores países, e a capacidade de ter visão para os defender a longo prazo, tomando medidas difíceis no imediato,  que ditarão o desfecho desta crise, e o futuro da UE, se este de facto existir. O problema de base também é a democracia, porque Merkel resiste teimosamente a ajudar os gregos sem contrapartidas draconianas porque é isso que lhe exige o seu eleitorado, mas é nestas alturas que um político eleito tem que saber discordar da vontade dos seus eleitores, ou pensar nos danos colaterais que o seu domínio de facto da UE, que é o que resulta desta crise, pode provocar. 

De uma forma ou de outra, os gregos introduziram uma nova carta em jogo e, sinceramente, se o euro e a União Europeia estão destinados a falhar, ao menos que falhem pelos motivos certos, ou seja porque um povo decidiu democraticamente que não queria alinhar no jogo de sempre. Se for esse o desfecho, os historiadores do futuro não deixarão de reparar na suprema ironia do País que fez tombar o primeiro dominó da queda do maior espaço democrático da história da humanidade ter sido, precisamente, o inventor da democracia.

Wednesday, June 15, 2011

Mudar de vida

Em poucas ocasiões como no Público do último Sábado me lembro de conseguir encontrar em simultâneo, na mesma edição de um mesmo jornal, três peças jornalísticas que, relatando cada uma a sua história, melhor compusessem uma narrativa maior e mais abrangente.

Neste caso, a narrativa mais larga era a crise económica em que Portugal se encontra. Duas das peças estavam incluídas numa reportagem da Pública sobre a forma como os portugueses estão a reagir à crise: uma sobre uma jovem empregada de limpeza, precária, para utilizar um termo em voga nestes últimos meses, mãe solteira com um namorado desempregado a receber o rendimento mínimo, e outra sobre um casal de professores universitários de meia idade, que viram o seu rendimento sofrer a redução de 10% imposta aos escalões mais altos da função pública.

A outra reportagem era sobre o Clube Fluvial do Porto, cuja situação financeira se degradou ao ponto de ver recentemente cortado o fornecimento de gás, e que enfrenta a perspectiva de extinção, apesar do seu património, um novíssimo complexo de piscinas que a reportagem avaliava acima dos 10 milhões de euros, ser substancialmente superior às dívidas, um pouco abaixo do milhão.

O que mais me prendeu a atenção na entrevista à jovem mãe solteira, uma algarvia com menos de 30 anos de idade que tem como principal ocupação a limpeza de casas de férias na Quinta do Lago, não foi a injustiça de limpar casas onde ela própria sabia que um dia de aluguer representa facilmente o dobro ou o triplo dos menos de quinhentos euros que aufere mensalmente, não foi sequer o lamento de não poder partilhar uma casa com o seu companheiro por rendimento insuficiente, mas um outro detalhe: queixava-se de não ter "ao menos" a sua própria casa, a seu ver por não ter um emprego estável "porque se tivesse um rendimento mais fixo podia recorrer ao Banco".

O sonho de ser dono do seu tecto ou pedaço de terra é tão antigo quanto a civilização, pelo que representa de liberdade e segurança face às incertezas do futuro. É no entanto uma falácia, e uma falácia perigosa, pensar que é possível, ou sequer desejável, que todos os membros de uma sociedade desenvolvida sejam proprietários de um imóvel. A pobre rapariga que limpa casas que custam por dia o triplo do seu rendimento mensal é tão livre de sonhar quanto qualquer um de nós, mas devia dar-nos que pensar que uma mulher que recebe um salário mínimo ache convictamente que o que a separa de ter o seu sonho financiado por um banco é um vínculo laboral permanente, ou seja como alguém que mal consegue sobreviver tem como aspiração endividar-se para o resto da sua vida.

A segunda história, o casal de meia idade, demonstra como o nosso País mudou numa geração, como a uma cultura de modéstia e ponderação nos gastos sucedeu o consumismo desenfreado e a posse de bens materiais, da obsessão nacional com a casa própria até à compra do mais recente telemóvel, como objectivo de vida. Apesar de ter um rendimento mensal muitas vezes superior ao da jovem precária algarvia, o casal realizou fácil e pragmaticamente as alterações que se exigiam no seu estilo de vida, substitui jantares fora por pedidos de take away e adquiriu um mealheiro onde acumular as moedas que lhe sobram diariamente nos bolsos, conseguindo assim acumular algum dinheiro extra para gastos imprevistos ou para a ocasional extravagância.

O que mais me impressionou na entrevista foi que estas alterações foram relatadas ao jornalista sem um queixume, um lamento, aceites como factos da vida com que é preciso lidar. Qualquer pessoa dirá que reequacionar os nossos gastos é a atitude prudente perante uma situação como a que vivemos, e a que a maioria das pessoas de bom senso tomariam. Eu diria mais, é a atitude que quase qualquer português tomaria, desde que tenha nascido até à  década de 60 do século passado.

A história do Clube Fluvial do Porto, ou melhor dos problemas financeiros que ameaçam acabar com a sua história centenária, é simples de contar, e mais do que isso é apenas mais uma de muitas histórias semelhantes que ouvimos. Instalado em terrenos com excelente localização no Porto, o Clube alienou parte do seu património para desenvolvimento de um projecto imobiliário, utilizando as receitas para construir um moderníssimo complexo de piscinas. Como sempre sucede nestas alturas, as receitas foram volumosas, mas foram excedidas pelos gastos, e a exploração do complexo desportivo não foi pensada para ser sustentável.

Como sempre sucede nestas coisas, e como está a suceder a um País com o dobro das auto-estradas que parece precisar, a realidade acabou por fazer a sua aparição, como faz sempre mais cedo ou mais tarde. A moral da história? Mesmo perante a catástrofe iminente,  os dirigentes do Fluvial não conseguem esconder o seu orgulho, ainda que mascarado com medo e desânimo, porque o clube tem "o melhor complexo de piscinas da Península Ibérica", recusando-se a entender o óbvio: que a menina dos seus olhos é também o peso que os arrasta ao fundo.

Como os dirigentes do Fluvial, temos uma vez por todas que fazer contas e entender que não há obra que valha a pena fazer se significar a nossa falência, que não basta ter crédito para que algo seja viável, e que termos a casa ou o carro mais vistoso não nos torna nem um pouco mais ricos e desenvolvidos, sendo o contrário mais provável. Como a pobre mulher de limpezas algarvia, temos que perceber que se sabemos que o mundo é injusto e o futuro incerto também devíamos saber que a saída não pode ser comprada a crédito. O que temos que fazer, como fez o casal de meia idade que cresceu noutro Portugal, conservador e avesso deixar os gastos excederem as receitas, é adaptarmo-nos a novas circunstâncias, sem saudosismos nem queixas, com pragmatismo e animados pela expectativa de um futuro melhor.

O que temos todos, como País, que fazer, e que como demonstram os professores universitários temos tudo a ganhar em fazer sem dramas ou lamentos, é mudar de vida.

Saturday, May 21, 2011

A rábula social única

Nos últimos dias o tema principal da campanha tem sido a Taxa Social Única (TSU), o imposto que as empresas têm que pagar sobre o vencimento de cada colaborador, que para quem não saiba acrescenta 23,75% aos 11% que este já desconta sobre o seu salário bruto.

Não sendo complexo o tema não é também linear, e se parte das pessoas não o entende, e parte dos que entendem não têm paciência para o debate, no fundo a tese que o PS tenta fazer vingar é que quanto maior a descida da TSU menos protegido fica o "Estado Social" (assim, com aspas e tudo), ou seja qualquer descida significativa põe em causa as pensões e benefícios sociais dos desempregados.

O PSD correu o risco que a clareza sempre acarreta em eleições, ao definir um patamar (no caso, de 4%) de redução da TSU, e todo o discurso do PS consiste em desmontar esta proposta, e na recusa de adiantar uma proposta alternativa, no fundo criando a ideia que só o PSD quer descer a taxa em causa.

Hoje, no debate com o principal candidato da Oposição, José Sócrates referiu, continuando sem apresentar um número concreto, antecedido do sacramental artifício credibilizador "toda a gente sabe qual a proposta do Governo", que defendia uma "descida moderada" da TSU.

Esta é a narrativa oficial, e no entanto é aqui que o discurso do Primeiro Ministro esbarra com os factos, a começar pelos documentos do acordo assinou há uns dias com a Troika.

O memorando de Políticas Económicas e Financeiras (link aqui), um dos três — o terceiro, o Memorando Técnico de Entendimento, não é público —documentos que expressam o acordo com a Troika refere, e passo a citar directamente do original em inglês "A critical goal of our program is to boost competitiveness. This will involve a major reduction in employer’s social security contributions".

Mesmo descontando as falhas de english technical de José o texto parece-nos claro, nem o mais júnior dos assessores do Primeiro Ministro alimentará dúvidas sobre o que quer dizer "a major reduction".

Ou seja, vistos os factos, ou a forma como a realidade difere da narrativa de Sócrates, a explicação é relativamente simples: começando pela conclusão, parece legítimo depreender que o PS evita expressar-se concretamente sobre a TSU que propõe porque sabe que defender uma redução pouco significativa implicaria ser apanhado facilmente em contradição com o documento que o seu líder assinou há poucas semanas.

Dito de outra forma, a ideia que Sócrates pretende criar, na qual de resto centrou boa parte do seu apelo ao voto nos últimos dias, de que está a defender o Estado Social porque se opõe à descida significativa da TSU que o PSD propõe, é, numa palavra, uma mentira.

Wednesday, May 11, 2011

O meu bairro

Gosto muito do meu bairro. Não cresci longe daqui, e também sou desse outro bairro, mas recentemente, numa daquelas coincidências estranhas em que a vida é fértil descobri, a propósito de um comentário casual, que o café, entre os muitos que o bairro tem, que escolhi para os meus lanches de fim de semana foi o mesmo que a minha Mãe, que na altura vivia na porta ao lado, frequentou enquanto aguardava, grávida, pelo momento do meu nascimento. Dito de outra forma, sou do meu bairro praticamente desde que nasci.

Gosto do meu bairro porque tenho tudo o que pede a vida de quem aceita a sociedade de consumo, mas aqui nunca ninguém me tratou como consumidor. Quem vive no bairro e passa a porta de uma loja, restaurante ou café é um cliente, às vezes um amigo, daqueles com quem somos capazes de manter uma relação de uma vida limitando-nos aos cumprimentos de circunstância.

Gosto do meu bairro porque tem história, e até o ar que circula pelo esqueleto vazio que ocupa hoje o lugar do Cinema Europa transporta memórias, no meu caso dos velhos filmes de capa e espada, reposições a que a minha ingenuidade infantil e a desactualização nacional nos anos setenta davam o ar de novidade.

Gosto do meu bairro porque aqui é difícil caminhar sem encontrar alguém que gostemos de ver, seja o velho amigo que vive duas ruas abaixo, a vizinha bonita a quem gostamos de acenar ou alguém que conhecemos de toda a vida e só agora descobrimos ter-se mudado para a porta ao lado.

Gosto do meu bairro porque tem gente de todo o tipo, e porque sejam as pessoas ricas ou pobres, gordas ou magras, famosas ou anónimas, bonitas ou feias são, antes de mais, pessoas do bairro, e quando é necessário unirem-se são do bairro antes de serem qualquer outra coisa.

Poderia discorrer longa e detalhadamente porque gosto tanto do meu bairro, explanar as emoções que me desperta ou a razão que suporta o confortável que me sinto a viver aqui. Podia explicá-lo de variadíssimas formas mas, como muitas vezes sucede, a melhor opção é a mais simples, de me cingir ao essencial, neste caso às duas razões pelas quais gosto do meu bairro: porque é o meu e, acima de tudo, porque aquilo que lhe chamo é o que o descreve fielmente, um verdadeiro bairro.

Monday, May 9, 2011

Os senhores do estrangeiro

Poucas coisas comovem mais o português que a opinião que os outros têm de si, particularmente se os outros forem estrangeiros de países mais ricos,  mais altos ou até simplesmente mais loiros.

Poucas coisas geram maior unanimidade entre portugueses do que dizer mal do próprio País. Trata-se aliás um desporto praticado desde tenra idade, com vários gestos técnicos adoptados pela generalidade da população — de que o melhor exemplo é a frase "isto só em Portugal" — embora seja, numa estranha contradição com o fascínio do indígena pelos senhores lá de fora, completamente vedado a cidadãos de qualquer outro País do Mundo.

Nos dias mais recentes registou-se um par de acontecimentos que fizeram vibrar estas duas sensíveis cordas da guitarra da identidade lusitana. Primeiro foi um video de exaltação patriótica apresentado por um autarca numa conferência, que tinha como destinatário a Finlândia e onde eram enumeradas várias originalidades, proezas e feitos nacionais. Apesar das incorrecções factuais e discutível relevância de parte do video, o que se assistiu foi um colectivo e emocionado embandeirar em arco.

Se parte desta euforia assentava na ignorância, e na genuína surpresa da maioria quando descobriu que as malaguetas do caril foram levadas para o subcontinente indiano pelos navegadores portugueses, o verdadeiro apelo do video foi outro: mostrava aos senhores estrangeiros que este País não devia ser confundido com um sítio periférico, atrasado, sem dinheiro e liderado por incompetentes, mesmo que no fundo também seja tudo isso.

Hoje, um artigo de opinião de um colunista alemão do Financial Times chamou, com todas as letras, mentiroso ao Primeiro Ministro de Portugal, dizendo que o seu anúncio do pacote de ajuda foi "tragico-cómico", procurando criar a ideia de que as medidas não seriam difíceis. A reacção do indígena variou, mais uma vez, entre o apoio às declarações do senhor alemão e a expressão da vergonha pela qual Sócrates nos faz passar "lá fora", ainda por cima nas prestigiadas páginas rosadas do Financial Times.

Não gosto de José Sócrates, porque acho que a sua actuação nos últimos anos se pautou por uma irresponsabilidade praticamente criminosa, mas fiquei com uma opinião ligeiramente diferente da maioria dos meus compatriotas, até porque se é verdade que o pacote de ajuda foi apresentado pela negativa, ou seja referindo-se ao que não ia acontecer e não às medidas, não é verdade que o chefe do Governo tenha passado a ideia de que os próximos três anos iam ser fáceis.

Mais, a referência polémica vem no âmbito mais alargado de um artigo sobre o estado da Europa, que advoga o aprofundamento da união política da UE, e a inevitabilidade do fracasso de uma União Monetária sem este mesmo aprofundamento. No fundo o senhor alemão mais não fez que expressar a sua vontade de que o Norte da Europa, com o seu País à frente, apenas financie os países do Sul — e Sócrates foi apenas mais um exemplo para expressar o desprezo do Norte protestante, calvinista e trabalhador pelo Sul católico, desorganizado e indolente — se estes se comportarem de forma respeitável e respeitadora.

Ou seja, onde muitos portugueses, incluindo alguns dos meus amigos mais esclarecidos, viram uma referência ao primeiro Ministro que envergonha o País eu vi um mero insulto a um País com 868 anos de história, ainda por cima vindo de um povo cuja nobreza comia com as mãos enquanto na côrte portuguesa a norma era a baixela de prata. Possivelmente serei eu a estar errado, mas uma coisa é certa: há muitas ocasiões como esta, em que discordo da voz maioritária dos outros portugueses, mas se calhar é porque, e nisso sou muito pouco português, nunca dei crédito adicional a ninguém por falar inglês ou alemão.

Tuesday, April 12, 2011

A hora de pagar a conta

A recente demissão do Governo de José  Sócrates precipitou a necessidade do Estado português pedir ajuda ao exterior para conseguir cumprir os seus compromissos financeiros, uma decisão sempre adiada mas que a ortodoxia vigente apresentava há muito como inevitável.

A curta memória dos portugueses, e o hábito contemporâneo de discutir o imediatismo e o sound bite em vez dos antecedentes e da substância das coisas, têm ajudado a centrar a discussão da situação na respectiva espuma, no caso a eventual partilha de responsabilidades do pedido de ajuda ao exterior entre os líderes dos dois maiores partidos, numa discussão mais próxima de uma querela entre adolescentes em excesso hormonal do que de um debate entre homens de Estado.

Esta é, no entanto, a discussão errada. A anunciada chegada do FMI deriva seguramente de erros governativos do actual primeiro ministro, e do seu partido, que deteve o poder em treze dos últimos quinze anos. Mas a situação a que chegámos tem causas bem mais profundas, que nos recusámos a debater ao longo das últimas décadas, e que muito provavelmente continuaremos a recusar ver de frente, mesmo nos momentos difíceis que se aproximam.

É isso que o FMI e a senhora Merkel vão agora fazer: apresentar-nos a conta dos erros que vimos acumulando, nalguns casos desde 1975, os erros de uma sociedade que, mais do que qualquer Governo, viveu décadas a fugir às decisões difíceis como se fosse possível também fugir às respectivas consequências.

Como queríamos proteger o direito a todos terem uma casa condigna passámos a viver num País onde não é possível a um senhorio subir as rendas mais antigas, ou despejar de forma expedita quem não as paga. Com isto apenas conseguimos eliminar a possibilidade real de toda uma geração arrendar casa, desertificando as zonas nobres das cidades e transformando Portugal no País com  mais proprietários de imóveis per capita de toda a UE, engordando os balanços da banca e endividando cedo demais e fundo demais toda uma geração de portugueses, isto para não falar da degradação do parque habitacional dos centros urbanos, pela simples razão de termos transformado em muitos casos o arrendamento numa actividade economicamente inviável, não produzindo sequer receitas suficientes para assegurar a mais elementar manutenção.

Como queríamos viver num País em que existisse essa originalidade que se chama direito ao emprego — não confundir com direito ao trabalho — assegurado, estável e duradouro, criámos um quadro legal em que a cessação de um vínculo laboral permanente é pouco menos que impossível, pelo menos sem total acordo das partes, normalmente envolvendo uma choruda indemnização. Como resultado, acentuámos a clivagem social e desigualdade de direitos entre quem atinge o estatuto que lhe assegura o emprego e todos os outros. O País com a Lei que mais restringe o despedimento na UE é também o País com mais trabalhadores com vínculo temporário. Algo me diz que não será por acaso.

Como queríamos um País onde todos pudessem ter o melhor acesso à Saúde estabelecemos que o sistema deveria, na prática, ser gratuito, escapando à verdade inelutável de que não é por um cidadão não pagar um serviço que este não tem custos. Trinta anos e várias parcerias-público privadas depois, o défice crónico e aparentemente irremediável do SNS continua aí, sem que ninguém tenha coragem para discutir a possibilidade de não termos dinheiro para dar Saúde gratuita a todos, mesmo aos que a podem pagar.

Fizémos o mesmo com o Ensino, cobrando, mesmo aos que podiam pagar, propinas que nunca garantiriam a sustentabilidade financeira, já para não falar da qualidade, da Escola pública, da primária à Universidade, e opusémo-nos ferozmente a qualquer tentativa de aproximar o preço destes serviços públicos ao seu efectivo custo. Hoje, temos uma geração que se intitula da "mais qualificada de sempre", quando o mais correcto seria designá-la como o grupo de desempregados mais escolarizado da nossa História.

Fizémos o mesmo com os transportes públicos, cobrando preços deslocados do custo real do serviço e combatendo qualquer esforço para discutir de forma séria a respectiva sustentabilidade financeira, que poderia implicar que a maioria das pessoas pagassem mais por eles, mas acima de tudo implicaria rigor no eventual apoio público, em vez da actual situação em que com o aval do Estado estas empresas acumularam dívidas de milhares de milhões de euros, parte das quais a obter junto da Banca os apoios estatais que chegaram sempre tarde e a más horas, enquanto todos, independentemente do seu rendimento, puderam beneficiar de transportes baratos.

Quisémos ter o País todo ligado por pontes e auto-estradas, qual Alemanha à beira-mar plantada, mas não perdemos uma oportunidade de nos recusarmos a pagar pelo seu uso. Depois de um bloqueio à principal ligação entre o Sul e o Norte do País, centrado na recusa de um aumento de portagens, que precipitou a queda em desgraça de um Governo maioritário, os Governos seguintes tomara nota da nossa vontade, e adoptaram a 'Parceria Público Privada' (PPP) como modus operandi, no fundo aliviando do incómodo financeiro quem beneficia directamente do investimento e distribuindo os custos por todos nós, de uma forma menos transparente e que facilita o prejuízo aos interesses do Estado, permitindo manter a ilusão que todos temos direito a pagar o menos possível pelos investimentos que fazem em nosso nome.

Quisémos ter um desemprego baixo a qualquer custo, mesmo que isso nos impedisse de intervir sobre o que é de longe o maior empregador nacional, o Estado Português, e em vez de questionar se as funções, natureza e recursos do Estado eram os adequados, arriscando pôr em causa o emprego vitalício de centenas de milhares de pessoas, assegurando antes lugar a camadas sucessivas de funcionários, que durante uma década (no consulado de Cavaco) foram sempre aumentados claramente acima de quem trabalhava na iniciativa privada, e crescendo em número sem justificação aparente ou correspondência na qualidade dos serviços públicos.

Qualquer pessoa que assista ao debate político dos EUA, para dar um de vários exemplos possíveis, repara que quando um político propõe uma ideia à sociedade as perguntas mais frequentes são as duas menos ouvidas por cá, pelo menos em simultâneo: "quanto custa?" e "como vamos pagar?".

Em 1985, uma década após o período pós-revolucionário, em que a libertação de tensões acumuladas durante décadas ajuda a explicar alguns erros crassos — as nacionalizações que contribuíram para um retrocesso de vinte anos no desenvolvimento industrial do País e os resquícios de socialismo que ainda hoje persistem tanto na Constituição como na visão do mundo e do Estado que resulta desta — Cavaco Silva herdou um País prestes a aderir à CEE, com as finanças públicas saudáveis e a conjuntura ideal para o progresso.

Este quadro, o resultado da anterior intervenção do FMI, acompanhada em Portugal por um governo de unidade nacional com um nível de qualidade e experiência a anos luz da que têm os actuais políticos, poderia ter marcado um novo início para Portugal, mas foi aqui que começou, em vez disso,  a situação em que hoje vivemos.

Lembro-me como se fosse hoje do primeiro artigo que vi sobre a trajectória de catástrofe em que estavam as contas públicas portuguesas, numa revista de negócios, da autoria de um reputado professor universitário. Na altura pareceu-me estranha a distância entre uma explicação racional e científica do que se previa e o discurso de optimismo oficial. O conteúdo do artigo em si não é hoje o mais relevante, ao contrário da data, neste caso os primeiros meses de 1992. Não é, portanto, de agora que vem este negligência criminosa, de adiar decisões difíceis mas inevitáveis, sobre o que podemos ou não pagar.

Neste momento, com o FMI a impor-nos um regresso à realidade, resta saber se ainda vamos a tempo. E resta saber, acima de tudo, se quando passar a travessia do deserto a que intervenção externa certamente obrigará, nos voltaremos a esquecer da lição, como esquecemos de 1985 em diante, e continuaremos a querer um mundo em que a nossa vida seja acima de tudo fácil no imediato, nem que isso signifique que amanhã não sobre sequer o interruptor onde alguém possa apagar a luz.

Friday, March 11, 2011

Jornalismo Rasca

Vi há pouco uma peça da TVI sobre as reacções dos jovens ao discurso de Cavaco Silva, particularmente nas redes sociais, referindo que "a maioria dos comentários do facebook é desfavorável ao presidente", seguindo-se a transcrição de comentários apanhados na página da Manifestação da Geração à Rasca.

Não vou sequer falar da forma como a peça encadeia e equipara o discurso de posse do Presidente da República, ou pelo menos a parte em que apela à mobilização dos jovens, com uma dúzia de comentários anónimos no tom habitualmente inflamado e trauliteiro que a rapaziada utiliza para o arremesso de postas de pescada no Facebook (um dos destaques foi "não acreditem num homem com dupla personalidade"). Esse não é, apesar de tudo, o maior problema.

O problema é como a notícia se começa por basear numa premissa errada, para não dizer falsa, e depois deriva para a pura e simples distorção dos factos. Começando pela premissa, confesso que mal a introdução começou a peça prendeu toda a minha atenção, porque queria perceber como tinha a TVI apurado a opinião "do facebook", atendendo à forma como esta rede social funciona, que leva a que a maioria das interacções entre utilizadores decorram numa esfera privada.

Depois de um momento a interrogar-me se a jornalista da TVI teria muitos amigos no facebook, e a disposição de lhes violar a privacidade, constatei que, como é óbvio, o que procuraram foi opinião reflectida nas páginas públicas, acessíveis por qualquer um. E aqui começa a distorção: em vez de percorrer várias páginas, com diferentes inclinações e tendências, a reportagem focou-se na página da "Geração à Rasca", o que equivaleria, em termos práticos, e ir para a sede do Bloco de Esquerda em Lisboa fazer perguntas sobre José Sócrates, e depois dizer que "os lisboetas estão fartos do Primeiro Ministro".

Claro que a maioria das pessoas não pensa demasiado nisto, nem questiona as premissas das reportagens que lhe são apresentadas. Alguns não conhecem sequer o suficiente dos factos para distinguir "o facebook", a tal coisa que os árabes andam a usar para se revoltar, de uma página de três jovens que decidiram organizar uma manifestação e têm tido, atendendo ao descontentamento generalizado da população e ao momento que o País vive, uma grande exposição nos media. Em suma, a maior parte vai comer o peixe estragado que a TVI lhes serviu como se fosse um belíssimo cherne grelhado no Mercado do Peixe, e isto é uma violação grave da responsabilidade que assiste aos media.


O que é preocupante em tudo isto é a forma como fica demonstrada a facilidade com que se cria opinião sem correspondência com factos, e a forma inadmissível — e nenhuma das duas explicações possíveis, incompetência ou má fé, é tolerável — como uma chefia de redacção deixa uma peça destas ser feita ou, mais provavelmente, encomenda a sua preparação com uma mensagem, ou preconceito, definida à partida, utilizando uma recolha superficial dos factos para a travestir em notícia.

Nesta altura em que todo o protesto é aparentemente legítimo, é frequente ouvirmos atacar a falta de qualidade do nosso establishment político. Este raciocínio tem uma armadilha evidente, que é impedir-nos de ver que os políticos, como aliás os media, são sempre o espelho da sociedade que temos. Se aceitarmos este tipo de jornalismo rasca como normal, e este tipo de abordagem ignorante, simplista e preconceituosa como aceitável, então não vale a pena queixarmo-nos muito: seremos mesmo um País rasca.

Wednesday, March 9, 2011

E alguém os desenrasca?

O tema do momento em Portugal é o protesto da auto-designada "geração à rasca", marcado para este fim-de-semana. Não vou estar na manifestação, em primeiro lugar porque nesta altura já só um ingénuo acredita nos respectivos, e anunciados, apartidarismo e independência, mas também porque, concordando em absoluto que o País e o regime estão doentes, discordo igualmente em absoluto do que os promotores apontam como sendo a solução.

Para estes jovens, a situação deriva de dois problemas principais: a desigualdade de oportunidades, em que os mais novos são prejudicados face às gerações anteriores, mesmo sendo mais qualificados, e a precariedade e baixa remuneração do emprego disponível, que não dá a contrapartida justa pelo tempo e esforço que os mais jovens investiram na sua educação.

Sendo legítimos e compreensíveis, ambos os objectivos são também completamente falhos de lógica ou sustentação. Em primeiro lugar, o mito de que a vida desta geração é mais difícil que a das anteriores é, isso mesmo, um mito. Para quem, como eu, nasceu na década de 70, e viu a transformação do País provinciano e analfabeto no Portugal de hoje, o conceito de dificuldades desta rapaziada fará qualquer pessoa informada com mais de 35 anos no mínimo sorrir (um bom exemplo do que quero dizer neste texto, que vale a pena ler).

Neste domínio a culpa não é, no entanto, dos jovens que agora protestam: a raiz do mal, da aparente contradição de uma população que apesar dos cada vez maiores níveis de qualificação formal encontra crescente dificuldade em encontrar empregos bem remunerados, remonta aos anos 80, com a democratização do ensino superior que os governos de Cavaco Silva assumiram como prioridade.

A lógica era simples: se as pessoas viam numa licenciatura a via para uma vida melhor, para o bem estar económico e reconhecimento social que queriam para si e para os seus filhos, havia que alargar o restrito número de cursos e vagas disponíveis nas universidades. Se isto foi feito destruindo o ensino profissional e degradando a qualidade média do ensino superior bem além do admissível — na prática levando a que a grande maioria das licenciaturas, mestrados e até doutoramentos tenham reduzido valor ou credibilidade no mercado — gerando um exército de licenciados cujas qualificações não tinham a mínima correspondência com as necessidades reais do País, paciência. 

O que interessava é que poderíamos ser todos doutores, fosse com brilho intelectual ou pagando propinas numa das múltiplas universidades privadas que surgiram para aproveitar a oportunidade de negócio que a estratégia de Cavaco gerou, e o canudo abrir-nos-ia as portas de um emprego bem remunerado e reconhecido pela sociedade. Foi assim que chegámos a uma situação em que todos os anos fecham jornais e revistas por falta de viabilidade económica mas entram no mercado de trabalho centenas de licenciados em Comunicação Social, enquanto a falta de médicos nos obriga a recorrer à mão de obra excedentária da vizinha Espanha.

Na prática, tratou-se de uma fraude que várias gerações de portugueses — a começar pela minha, que cumpri 18 anos em 1990 — pagaram com o seu esforço, sonhos e frustração, porque se no topo da cadeia as coisas não mudaram, e ainda hoje um licenciado numa universidade de primeira linha continua a arranjar trabalho sem dificuldades de maior, é evidente que no meio e na base da pirâmide a explosão de cursos não foi, nem podia ser, acompanhada por um aumento da procura de licenciados pelas empresas, levando à actual situação em que um canalizador é mais bem remunerado que o detentor de um doutoramento, e que os  empregadores que mais se queixam de falta de oferta sejam os empresários de restauração e de outras áreas teoricamente menos exigentes em termos de qualificação.

Explicado o meu ponto de vista quanto à relação entre qualificação e emprego, passemos ao segundo ponto, ou do discurso de "acabar com a precariedade", que pode soar bem e ir de encontro aos legítimos anseios destes jovens (e não será por acaso que o vocábulo faz parte integrante do léxico de alguma esquerda) mas é algo que não se consegue por via administrativa, particularmente no País da União Europeia cuja Lei laboral mais dificulta o despedimento individual. 

Foi precisamente para combater a precariedade e assegurar o "direito ao emprego" (as aspas não são acidentais) que a Lei laboral portuguesa foi desenhada, nos anos 70, quando que toda a bússola política estava encostada ao lado esquerdo do espectro e ainda era permitido alimentar ilusões de que o emprego se protegia com leis que dificultassem o despedimento. Três décadas e meia depois, continuamos a falar de "acabar com a precariedade" como se nada disto se tivesse passado,  e como se os recibos verdes e outros subterfúgios mais não fossem que o resultado prático destas ideias e, numa ilusão tipicamente de esquerda, de que é possível criar emprego restringindo a sua extinção.

O problema de toda esta história, e ao mesmo tempo a coisa mais preocupante para todos nós como sociedade, é a forma como a demagogia explora  o ressentimento e legítima frustração de quem sente não ter perspectivas sérias de futuro, para gerar um discurso negativo, e só aparentemente contestatário do sistema, mas sem uma solução viável que não se baseie em ser contra os aparentes culpados da situação (o governo, os tiranos do patronato que não querem pagar mais ou contratar os jovens que estão a recibos verdes), numa lógica que não estaria desenquadrada do Portugal de 1975. 

O que este discurso consegue mais não é que aliviar-nos da responsabilidade que todos temos como cidadãos, a começar por quem escolheu um curso sem pensar seriamente sobre as respectivas saídas profissionais, ou por quem não perde um festival de Verão ou uma ida ao 'Lux' e se queixa de não ter dinheiro para sair de casa dos pais, seguindo a mui lusitana tendência de atribuir sempre a outrem a maior fatia de culpa de qualquer problema.

O problema, de toda esta história é que o País precisa de uma renovação total das suas leis laborais, precisa de reformar o Estado Social que não tem dinheiro para pagar, e precisa de tomar opções inadiáveis que implicarão, no curto e médio prazo, sacrifícios de todos. No entanto, se virmos o discurso dominante destes movimentos, seremos capazes de acreditar que tudo não passa de uma injustiça na distribuição do rendimento, que os jovens são mal remunerados porque as empresas não querem pagar mais, e não porque não tenham condições de lhe oferecer um contrato melhor e mais estável, e que o emprego é precário porque a Lei não o protege.

O que eles ainda não perceberam, e enquanto a demagogia predominar nunca perceberão, é que se continuarem por esta via, por mais que consigam fazer mossas no sistema, de resto inteiramente merecidas, no final do dia não haverá quem os desenrasque...

Monday, February 28, 2011

While you were sleeping

Na Líbia, o último dos ditadores alucinados afirma-se disposto a destruir o próprio País para não largar o poder, depois de ter visto o embaixador líbio na ONU votar, pela primeira vez na história da organização, uma resolução que repudia a conduta do próprio País que representa.

No Irão, uma manifestação convocada para comemorar o que sucedeu há umas semanas no Cairo redundou em centenas de prisões, blackout mediático total e relatos de repressão violenta de uma oposição que vem já, na sua forma actual, de Junho de 2009, e que conta já com largas centenas de mártires, entre presos e mortos.

Nos EUA, o conflito entre o governador do Wisconsin, republicano da ala mais conservadora do partido, e os sindicatos do sector público do seu estado ameaça marcar o futuro dos EUA, transpondo para o nível estatal o forrobodó federal de privatização e saque ao Estado que foi o consulado de George W. Bush (e a opinião não é só minha, é também a de um prémio Nobel).

Em Portugal a dúvida não é se o Governo vai cair, é quando isso acontecerá, não é se podemos fazer alguma coisa para evitar a entrada do FMI, mas apenas saber a data exacta em que se consuma a passagem do "bom aluno" dos tempos da ilusão cavaquista para o rapaz que não prestava atenção nas aulas e foi remetido para o canto da sala com as orelhas de burro.

Tudo isto está  a acontecer neste momento. Todos estes exemplos são de temas que afectam, em maior ou menor medida, o nosso futuro. No entanto, se hoje consultarmos a imprensa, as redes sociais e toda as outras formas de conversação que a nossa sociedade tem, qual será o tema mais falado? Os vestidos dos Oscars.

Acho que não é coincidência que o tema de conversa seja algo que se passou enquanto a maioria do País dormia. Deve ser a força do hábito. De tanto passarmos a vida a dormir enquanto acontecem as coisas que devíamos discutir, algum dia haveríamos de acabar por fazer o inverso, e falar do que nos aconteceu enquanto dormíamos.

Monday, February 7, 2011

O que eu (não) tenho a dizer sobre o Facebook

Facebook é uma daquelas marcas que já nos habituámos a ouvir dita depois de palavras como "fenómeno", ou "explosão". É para mim no mínimo curioso que numa terra em que toda a gente opina, sobre tudo e sobre nada, não tenha havido ainda um único opinador oficial, dos que escrevem, dos que aparecem ou dos que acumulam as várias funções mediáticas, a falar sobre a rede social que toda a gente parece usar, da mesma forma clara e contundente de que parece falar sobre quase tudo.

Poderá ser porque poucos deles têm facebook, ou pouco o usam, e não querendo transparecer o seu menor à vontade com o fenómeno evitam analisá-lo, embora isto não livre alguns paladinos da presunção de omitirem uma opinião definitiva sobre o tema, de que o melhor exemplo é o artigo de opinião, que no mínimo se pode qualificar de cabotino, de Miguel Sousa Tavares no Expresso, um acumulado de lugares comuns e pensamento convencional digno de figurar no caixote do lixo de qualquer escola de jornalismo.

Face a esta lacuna evidente seria perfeitamente normal que eu mesmo a tentasse preencher. Afinal, qualquer pessoa que me conheça sabe que também tenho a irritante tendência de opinar sobre tudo e sobre nada, e apesar de não ter qualquer inclinação ou vontade de ser opinador oficial, ou auto-designada consciência das pessoas civilizadas (que pelo menos simpatizam com safaris e romances de aeroporto), já passei seguramente mais tempo no Facebook do que a maioria deles.

Não é isso, no entanto, que vou fazer. Podia justificar esta recusa com a mais pura lógica, porque o Facebook é um meio de comunicação como qualquer outro, e por isso opinar de forma reflectida e estruturada sobre o tema faz tanto sentido, e seria tão interessante, como analisar o funcionamento do serviço de correios.

Mas não é essa a razão principal da minha recusa. Escrever uma opinião reflectida e estruturada sobre o fenómeno do Facebook exige — como a forma desnecessariamente pomposa que acabei de usar para designar o tema, sem que ninguém estranhasse, indica —  tempo, esforço, e paciência, e acima de tudo que faça um esforço de atenção, ou melhor de desatenção, procurando o que normalmente não procuro e dando importância a coisas em que normalmente não reparo, até chegar a uma versão online de Voando sobre um ninho de cucos, povoado de personagens pitorescas e episódios picantes.

Não é que não conseguisse fazer a tal análise reflectida e estruturada, mas sinceramente não me apetece. No máximo, e de alguma forma quase contrariado, posso fazer uma resenha instantânea de algumas coisas que me apetece dizer aos meus amigos, com e sem aspas, sobre os seus comportamentos no Facebook, que nalguns casos exemplificam como é possível repetir até à exaustão hábitos sem sentido, sem nunca os questionar verdadeiramente.


  • Aos que acham que tudo tem significado, do comentário espontâneo e sem reflexão prévia ao 'like' que a pessoa que era secretamente a destinatária do vosso post não pôs, esqueçam. Faz tanto sentido como pensar que se aquela miúda gira nos sorriu no trânsito é porque nos escolheu para pai dos seus filhos. Há gente que simplesmente gosta das coisas, como há gente que sorri simplesmente porque é simpática, há gente que gosta e não diz, há quem se lembre de uma música lamechas enquanto está a ler Kafka, e não a cobiçar a vossa namorada. Caso não tenham reparado, existe vida fora do Facebook, e nesse capítulo mesmo quem nos adora não acompanha ou assinala tudo o que fazemos. Aliás, se acham normal que alguém acompanhe cada gesto vosso tenho três palavras para vos dizer: procurem ajuda especializada.
  • Para os demasiado ansiosos para ver o óbvio aqui vai: as pessoas não passam 24 horas por dia atentas à sua conta do facebook, a ver o que escrevemos. Às vezes não reagem porque não viram, porque não foram ao facebook ou estavam a ler um livro. E às vezes não põem 'likes' porque não gostam. Às vezes aquele amigo de há vinte anos não respondeu às vossas palavras porque estava ocupado a trabalhar, e depois já não as viu, não porque tenha ficado chateado por terem discordado dele numa guerra de comentários sobre a novela da noite ou o vosso clube de futebol. Se são daqueles que ficam tristes quando não vos respondem, tenho outras três palavras para vocês: get over it.
  • Para os que me propõem amizade sem nunca terem trocado uma palavra comigo, e depois variam entre segredar ao amigo do lado quando de facto estão à minha frente e abordar-me abertamente com ar chateado dizendo que "tu não me aceitaste" (juro), tenho uma pergunta: de que planeta são vocês?.
  • Aos que põem 'likes' aos seus próprios posts queria dizer que não vale a pena. Acreditem que toda a gente vai assumir que gostam de alguma coisa se fizeram o post, não é preciso reforçar. E se ninguém reparou ou gostou, e por isso não pôs um like, o facto de estar lá o vosso like não torna as coisas melhores. Aliás, até as torna piores
  • Aos que sentem que têm que escrever e dizer coisas, seja lá pelo que fôr, e por isso põem tudo o que fazem, minuto a minuto, na rede, tenho uma coisa simples a dizer: não quero, de todo, saber quando foram vocês à casa de banho. Acho piada ver a fotografia do peixe grelhado que um amigo mais afortunado comeu durante um almoço na praia, mas uma vez por mês chega. Se não me mandavam telegramas antigamente quando o faziam, não me ligavam para casa a avisar, nem sequer um SMS era necessário, por que carga de água tenho eu agora que saber sempre onde vocês andam? 
  • Aos que têm uma compulsão incontrolável para postar e emitir opiniões em comentários, e vão pondo o que lhes parece interessante sem se preocuparem com a ocupação selvagem do feed de todos os amigos que têm, grupo em que o autor destas linhas de resto se inclui, digo duas coisas: em primeiro lugar, por mais que os vossos amigos digam que gostam de vos ler, e por mais relevantes e válidas que sejam as coisas que põem, ou por mais assertiva que seja a vossa opinião e corrosivo o vosso humor, e por mais que isso até possa não ser mesmo só impressão vossa, assumam que há garantidamente quem já esteja completamente fartinho de ver a vossa cara no seu feed, e quem já vos tenha votado ao mesmo 'hide' que o farmville. A segunda é que no dia em que começarem a falar para o vosso "público", ou dito de outra forma no dia em que pensem que tal entidade existe, e que a vossa opinião é algo que as pessoas consideram para tomar decisões relevantes nas suas vidas, e precisam de ler as vossas ideias para serem felizes, esse é o dia em que passaram a viver no Facebook, ou no mínimo na imaginação do Miguel Sousa Tavares.
  • Aos que põem mensagens indirectas para alguém, habitualmente um ex namorado ou namorada com quem se está em plena fúria, que variam entre o ininteligível e o explícito, só tenho uma pergunta a fazer: têm a certeza que querem ter esta conversa à frente de quinhentas pessoas?
  • Aos que fazem do facebook um confessionário queria sugerir que fossem a  uma igreja, qualquer uma serve se é para desabafar, recomendo a Católica para confessar. Vantagem: tal como no Facebook, nada é inconfessável, mas ao menos é garantido que há menos de quinhentas pessoas a ouvir os vossos desabafos. Aos que respondem a esses mesmos desabafos comentando e debatendo o acontecimento, com a sapiência e conhecimento de causa de um Gabriel Alves em dia de relato da selecção nacional de futebol, faço outra pergunta: já repararam que não estão sozinhos na sala?
  • Aos que acham o Facebook perigoso, porque potencia comportamentos questionáveis ou libidinosos, ou a mistura de ambas as coisas, quero contar uma história: quando surgiu o telefone, o grande debate na sociedade americana era como esta revolução nas comunicações punha em causa a instituição familiar, ao fazer perigar a honra das senhoras, que agora eram potencial alvo de assédio por personagens mal intencionados, que podiam aproveitar o facto destas, pobrezinhas, estarem vulneráveis a atender telefonemas de estranhos com uma liberdade que não usariam, por exemplo, a abrir uma porta de suas casas na ausência dos maridos. Se a história vos parece ridícula, pensem nisto: daqui a umas décadas é assim que a vossa opinião de hoje parecerá. O Facebook não é perigoso, tal como o telefone não era, nem a rádio. A coisa mais perigosa do mundo é o ser humano, e o cérebro que o comanda, o resto são meras ferramentas. Ninguém se torna mau ao entrar numa rede social, no máximo passa a ter mais oportunidades de o ser, e nenhuma pessoa adulta se transforma miraculosamente num adolescente desorientado e faz coisas que não queira mesmo fazer.
  • Aos que passam a vida a pôr clips de música do Youtube, normalmente dentro do mesmo género: fazer isso de vez em quando tem piada,  fazer disso noventa e oito por cento da vossa participação, oito músicas de cada vez com mensagens pessoais e dedicatórias a acompanhar, só me dá saudades do tempo em que tinha que ligar o gira-discos para ouvir boa música.
  • Finalmente, e acabando na primeira das grandes manias associadas do facebook, aos que jogam ou jogaram farmville só quero fazer uma pergunta: dominaram o vício, caíram na realidade e largaram a quinta, ou entraram na clandestinidade e deixaram de pedir telhas e ovelhas para não serem instantânea e implacavelmente gozados pelos amigos?