Wednesday, November 2, 2011

That little thing called democracy

Depois da semana passada ter terminado com um suspiro generalizado de alívio pela aprovação do novo programa de ajuda à Grécia, que obrigará os credores a assumirem perdas de 50% nas posições de dívida pública daquele País e concederá aos gregos um empréstimo suplementar de 100 mil milhões de euros, esta semana começou com a forte queda dos mercados financeiros, após o anúncio, pelo Primeiro Ministro helénico, de um referendo para recolher aprovação popular das medidas de austeridade a que o pacote de ajuda obriga.

De Paris e Berlim, em surdina ou de forma sonora, os protestos não se fizeram esperar, e no momento em que escrevo as notícias que circulam na imprensa falam na suspensão da ajuda à Grécia, incluindo os 8.000 milhões de euros que o Estado helénico necessita com urgência para pagar salários e obrigações inadiáveis, pelo menos até ao resultado do referendo ser conhecido, e reforçam que o pacote de ajuda está inteiramente dependente da adopção na íntegra das medidas de austeridade que George Papandreou acordou na semana passada. 

Não é preciso explicar a ninguém o risco do que se segue a um incumprimento descontrolado da Grécia: o alastrar da crise da dívida a países maiores, como Itália, Espanha ou mesmo França, grandes demais para serem alvo de ajuda financeira, a morte prematura do euro, provável prenúncio do desaparecimento da UE, pelo menos como a conhecemos, e uma recessão prolongada em toda a Europa, condenando os seus membros mais frágeis à pobreza durante uma geração.

O observador mais desatento diria que é inadmissível a forma como os líderes dos maiores países europeus reagem ao exercício de democracia por um dos países mais pequenos. A questão tem, no entanto, pouco a ver com países grandes e pequenos: o problema da UE, como da CEE antes dela, é com a democracia em si, e com excepções pontuais e fáceis de apontar, quase todas as medidas da chamada "construção europeia" foram tomadas em gabinetes e salas de reunião, por políticos que foram negociando e decidindo algo que afecta fortemente o quotidiano dos seus cidadãos sem alguma vez se preocuparem em envolvê-los na discussão, e muitas vezes até evitando que esta sequer ocorresse.

A União Europeia, um organismo supra-nacional que institui um espaço de comércio livre e fronteiras comuns, portanto a poucos passos de ser uma federação, entre países que passaram toda a sua História a guerrear-se entre si (o que não deixa de ser um feito tremendo) é o maior espaço democrático do mundo, mas foi construída recorrendo o mínimo possível à democracia propriamente dita. É assim natural o incómodo de Paris, e particularmente de Berlim, que sentem que Papandreou fez uma jogada suja, usando num momento crítico uma carta que nunca fez parte do baralho.

É costume dizer-se que os países não têm amigos, apenas interesses. Serão os interessses dos maiores países, e a capacidade de ter visão para os defender a longo prazo, tomando medidas difíceis no imediato,  que ditarão o desfecho desta crise, e o futuro da UE, se este de facto existir. O problema de base também é a democracia, porque Merkel resiste teimosamente a ajudar os gregos sem contrapartidas draconianas porque é isso que lhe exige o seu eleitorado, mas é nestas alturas que um político eleito tem que saber discordar da vontade dos seus eleitores, ou pensar nos danos colaterais que o seu domínio de facto da UE, que é o que resulta desta crise, pode provocar. 

De uma forma ou de outra, os gregos introduziram uma nova carta em jogo e, sinceramente, se o euro e a União Europeia estão destinados a falhar, ao menos que falhem pelos motivos certos, ou seja porque um povo decidiu democraticamente que não queria alinhar no jogo de sempre. Se for esse o desfecho, os historiadores do futuro não deixarão de reparar na suprema ironia do País que fez tombar o primeiro dominó da queda do maior espaço democrático da história da humanidade ter sido, precisamente, o inventor da democracia.

Wednesday, June 15, 2011

Mudar de vida

Em poucas ocasiões como no Público do último Sábado me lembro de conseguir encontrar em simultâneo, na mesma edição de um mesmo jornal, três peças jornalísticas que, relatando cada uma a sua história, melhor compusessem uma narrativa maior e mais abrangente.

Neste caso, a narrativa mais larga era a crise económica em que Portugal se encontra. Duas das peças estavam incluídas numa reportagem da Pública sobre a forma como os portugueses estão a reagir à crise: uma sobre uma jovem empregada de limpeza, precária, para utilizar um termo em voga nestes últimos meses, mãe solteira com um namorado desempregado a receber o rendimento mínimo, e outra sobre um casal de professores universitários de meia idade, que viram o seu rendimento sofrer a redução de 10% imposta aos escalões mais altos da função pública.

A outra reportagem era sobre o Clube Fluvial do Porto, cuja situação financeira se degradou ao ponto de ver recentemente cortado o fornecimento de gás, e que enfrenta a perspectiva de extinção, apesar do seu património, um novíssimo complexo de piscinas que a reportagem avaliava acima dos 10 milhões de euros, ser substancialmente superior às dívidas, um pouco abaixo do milhão.

O que mais me prendeu a atenção na entrevista à jovem mãe solteira, uma algarvia com menos de 30 anos de idade que tem como principal ocupação a limpeza de casas de férias na Quinta do Lago, não foi a injustiça de limpar casas onde ela própria sabia que um dia de aluguer representa facilmente o dobro ou o triplo dos menos de quinhentos euros que aufere mensalmente, não foi sequer o lamento de não poder partilhar uma casa com o seu companheiro por rendimento insuficiente, mas um outro detalhe: queixava-se de não ter "ao menos" a sua própria casa, a seu ver por não ter um emprego estável "porque se tivesse um rendimento mais fixo podia recorrer ao Banco".

O sonho de ser dono do seu tecto ou pedaço de terra é tão antigo quanto a civilização, pelo que representa de liberdade e segurança face às incertezas do futuro. É no entanto uma falácia, e uma falácia perigosa, pensar que é possível, ou sequer desejável, que todos os membros de uma sociedade desenvolvida sejam proprietários de um imóvel. A pobre rapariga que limpa casas que custam por dia o triplo do seu rendimento mensal é tão livre de sonhar quanto qualquer um de nós, mas devia dar-nos que pensar que uma mulher que recebe um salário mínimo ache convictamente que o que a separa de ter o seu sonho financiado por um banco é um vínculo laboral permanente, ou seja como alguém que mal consegue sobreviver tem como aspiração endividar-se para o resto da sua vida.

A segunda história, o casal de meia idade, demonstra como o nosso País mudou numa geração, como a uma cultura de modéstia e ponderação nos gastos sucedeu o consumismo desenfreado e a posse de bens materiais, da obsessão nacional com a casa própria até à compra do mais recente telemóvel, como objectivo de vida. Apesar de ter um rendimento mensal muitas vezes superior ao da jovem precária algarvia, o casal realizou fácil e pragmaticamente as alterações que se exigiam no seu estilo de vida, substitui jantares fora por pedidos de take away e adquiriu um mealheiro onde acumular as moedas que lhe sobram diariamente nos bolsos, conseguindo assim acumular algum dinheiro extra para gastos imprevistos ou para a ocasional extravagância.

O que mais me impressionou na entrevista foi que estas alterações foram relatadas ao jornalista sem um queixume, um lamento, aceites como factos da vida com que é preciso lidar. Qualquer pessoa dirá que reequacionar os nossos gastos é a atitude prudente perante uma situação como a que vivemos, e a que a maioria das pessoas de bom senso tomariam. Eu diria mais, é a atitude que quase qualquer português tomaria, desde que tenha nascido até à  década de 60 do século passado.

A história do Clube Fluvial do Porto, ou melhor dos problemas financeiros que ameaçam acabar com a sua história centenária, é simples de contar, e mais do que isso é apenas mais uma de muitas histórias semelhantes que ouvimos. Instalado em terrenos com excelente localização no Porto, o Clube alienou parte do seu património para desenvolvimento de um projecto imobiliário, utilizando as receitas para construir um moderníssimo complexo de piscinas. Como sempre sucede nestas alturas, as receitas foram volumosas, mas foram excedidas pelos gastos, e a exploração do complexo desportivo não foi pensada para ser sustentável.

Como sempre sucede nestas coisas, e como está a suceder a um País com o dobro das auto-estradas que parece precisar, a realidade acabou por fazer a sua aparição, como faz sempre mais cedo ou mais tarde. A moral da história? Mesmo perante a catástrofe iminente,  os dirigentes do Fluvial não conseguem esconder o seu orgulho, ainda que mascarado com medo e desânimo, porque o clube tem "o melhor complexo de piscinas da Península Ibérica", recusando-se a entender o óbvio: que a menina dos seus olhos é também o peso que os arrasta ao fundo.

Como os dirigentes do Fluvial, temos uma vez por todas que fazer contas e entender que não há obra que valha a pena fazer se significar a nossa falência, que não basta ter crédito para que algo seja viável, e que termos a casa ou o carro mais vistoso não nos torna nem um pouco mais ricos e desenvolvidos, sendo o contrário mais provável. Como a pobre mulher de limpezas algarvia, temos que perceber que se sabemos que o mundo é injusto e o futuro incerto também devíamos saber que a saída não pode ser comprada a crédito. O que temos que fazer, como fez o casal de meia idade que cresceu noutro Portugal, conservador e avesso deixar os gastos excederem as receitas, é adaptarmo-nos a novas circunstâncias, sem saudosismos nem queixas, com pragmatismo e animados pela expectativa de um futuro melhor.

O que temos todos, como País, que fazer, e que como demonstram os professores universitários temos tudo a ganhar em fazer sem dramas ou lamentos, é mudar de vida.

Saturday, May 21, 2011

A rábula social única

Nos últimos dias o tema principal da campanha tem sido a Taxa Social Única (TSU), o imposto que as empresas têm que pagar sobre o vencimento de cada colaborador, que para quem não saiba acrescenta 23,75% aos 11% que este já desconta sobre o seu salário bruto.

Não sendo complexo o tema não é também linear, e se parte das pessoas não o entende, e parte dos que entendem não têm paciência para o debate, no fundo a tese que o PS tenta fazer vingar é que quanto maior a descida da TSU menos protegido fica o "Estado Social" (assim, com aspas e tudo), ou seja qualquer descida significativa põe em causa as pensões e benefícios sociais dos desempregados.

O PSD correu o risco que a clareza sempre acarreta em eleições, ao definir um patamar (no caso, de 4%) de redução da TSU, e todo o discurso do PS consiste em desmontar esta proposta, e na recusa de adiantar uma proposta alternativa, no fundo criando a ideia que só o PSD quer descer a taxa em causa.

Hoje, no debate com o principal candidato da Oposição, José Sócrates referiu, continuando sem apresentar um número concreto, antecedido do sacramental artifício credibilizador "toda a gente sabe qual a proposta do Governo", que defendia uma "descida moderada" da TSU.

Esta é a narrativa oficial, e no entanto é aqui que o discurso do Primeiro Ministro esbarra com os factos, a começar pelos documentos do acordo assinou há uns dias com a Troika.

O memorando de Políticas Económicas e Financeiras (link aqui), um dos três — o terceiro, o Memorando Técnico de Entendimento, não é público —documentos que expressam o acordo com a Troika refere, e passo a citar directamente do original em inglês "A critical goal of our program is to boost competitiveness. This will involve a major reduction in employer’s social security contributions".

Mesmo descontando as falhas de english technical de José o texto parece-nos claro, nem o mais júnior dos assessores do Primeiro Ministro alimentará dúvidas sobre o que quer dizer "a major reduction".

Ou seja, vistos os factos, ou a forma como a realidade difere da narrativa de Sócrates, a explicação é relativamente simples: começando pela conclusão, parece legítimo depreender que o PS evita expressar-se concretamente sobre a TSU que propõe porque sabe que defender uma redução pouco significativa implicaria ser apanhado facilmente em contradição com o documento que o seu líder assinou há poucas semanas.

Dito de outra forma, a ideia que Sócrates pretende criar, na qual de resto centrou boa parte do seu apelo ao voto nos últimos dias, de que está a defender o Estado Social porque se opõe à descida significativa da TSU que o PSD propõe, é, numa palavra, uma mentira.

Wednesday, May 11, 2011

O meu bairro

Gosto muito do meu bairro. Não cresci longe daqui, e também sou desse outro bairro, mas recentemente, numa daquelas coincidências estranhas em que a vida é fértil descobri, a propósito de um comentário casual, que o café, entre os muitos que o bairro tem, que escolhi para os meus lanches de fim de semana foi o mesmo que a minha Mãe, que na altura vivia na porta ao lado, frequentou enquanto aguardava, grávida, pelo momento do meu nascimento. Dito de outra forma, sou do meu bairro praticamente desde que nasci.

Gosto do meu bairro porque tenho tudo o que pede a vida de quem aceita a sociedade de consumo, mas aqui nunca ninguém me tratou como consumidor. Quem vive no bairro e passa a porta de uma loja, restaurante ou café é um cliente, às vezes um amigo, daqueles com quem somos capazes de manter uma relação de uma vida limitando-nos aos cumprimentos de circunstância.

Gosto do meu bairro porque tem história, e até o ar que circula pelo esqueleto vazio que ocupa hoje o lugar do Cinema Europa transporta memórias, no meu caso dos velhos filmes de capa e espada, reposições a que a minha ingenuidade infantil e a desactualização nacional nos anos setenta davam o ar de novidade.

Gosto do meu bairro porque aqui é difícil caminhar sem encontrar alguém que gostemos de ver, seja o velho amigo que vive duas ruas abaixo, a vizinha bonita a quem gostamos de acenar ou alguém que conhecemos de toda a vida e só agora descobrimos ter-se mudado para a porta ao lado.

Gosto do meu bairro porque tem gente de todo o tipo, e porque sejam as pessoas ricas ou pobres, gordas ou magras, famosas ou anónimas, bonitas ou feias são, antes de mais, pessoas do bairro, e quando é necessário unirem-se são do bairro antes de serem qualquer outra coisa.

Poderia discorrer longa e detalhadamente porque gosto tanto do meu bairro, explanar as emoções que me desperta ou a razão que suporta o confortável que me sinto a viver aqui. Podia explicá-lo de variadíssimas formas mas, como muitas vezes sucede, a melhor opção é a mais simples, de me cingir ao essencial, neste caso às duas razões pelas quais gosto do meu bairro: porque é o meu e, acima de tudo, porque aquilo que lhe chamo é o que o descreve fielmente, um verdadeiro bairro.

Monday, May 9, 2011

Os senhores do estrangeiro

Poucas coisas comovem mais o português que a opinião que os outros têm de si, particularmente se os outros forem estrangeiros de países mais ricos,  mais altos ou até simplesmente mais loiros.

Poucas coisas geram maior unanimidade entre portugueses do que dizer mal do próprio País. Trata-se aliás um desporto praticado desde tenra idade, com vários gestos técnicos adoptados pela generalidade da população — de que o melhor exemplo é a frase "isto só em Portugal" — embora seja, numa estranha contradição com o fascínio do indígena pelos senhores lá de fora, completamente vedado a cidadãos de qualquer outro País do Mundo.

Nos dias mais recentes registou-se um par de acontecimentos que fizeram vibrar estas duas sensíveis cordas da guitarra da identidade lusitana. Primeiro foi um video de exaltação patriótica apresentado por um autarca numa conferência, que tinha como destinatário a Finlândia e onde eram enumeradas várias originalidades, proezas e feitos nacionais. Apesar das incorrecções factuais e discutível relevância de parte do video, o que se assistiu foi um colectivo e emocionado embandeirar em arco.

Se parte desta euforia assentava na ignorância, e na genuína surpresa da maioria quando descobriu que as malaguetas do caril foram levadas para o subcontinente indiano pelos navegadores portugueses, o verdadeiro apelo do video foi outro: mostrava aos senhores estrangeiros que este País não devia ser confundido com um sítio periférico, atrasado, sem dinheiro e liderado por incompetentes, mesmo que no fundo também seja tudo isso.

Hoje, um artigo de opinião de um colunista alemão do Financial Times chamou, com todas as letras, mentiroso ao Primeiro Ministro de Portugal, dizendo que o seu anúncio do pacote de ajuda foi "tragico-cómico", procurando criar a ideia de que as medidas não seriam difíceis. A reacção do indígena variou, mais uma vez, entre o apoio às declarações do senhor alemão e a expressão da vergonha pela qual Sócrates nos faz passar "lá fora", ainda por cima nas prestigiadas páginas rosadas do Financial Times.

Não gosto de José Sócrates, porque acho que a sua actuação nos últimos anos se pautou por uma irresponsabilidade praticamente criminosa, mas fiquei com uma opinião ligeiramente diferente da maioria dos meus compatriotas, até porque se é verdade que o pacote de ajuda foi apresentado pela negativa, ou seja referindo-se ao que não ia acontecer e não às medidas, não é verdade que o chefe do Governo tenha passado a ideia de que os próximos três anos iam ser fáceis.

Mais, a referência polémica vem no âmbito mais alargado de um artigo sobre o estado da Europa, que advoga o aprofundamento da união política da UE, e a inevitabilidade do fracasso de uma União Monetária sem este mesmo aprofundamento. No fundo o senhor alemão mais não fez que expressar a sua vontade de que o Norte da Europa, com o seu País à frente, apenas financie os países do Sul — e Sócrates foi apenas mais um exemplo para expressar o desprezo do Norte protestante, calvinista e trabalhador pelo Sul católico, desorganizado e indolente — se estes se comportarem de forma respeitável e respeitadora.

Ou seja, onde muitos portugueses, incluindo alguns dos meus amigos mais esclarecidos, viram uma referência ao primeiro Ministro que envergonha o País eu vi um mero insulto a um País com 868 anos de história, ainda por cima vindo de um povo cuja nobreza comia com as mãos enquanto na côrte portuguesa a norma era a baixela de prata. Possivelmente serei eu a estar errado, mas uma coisa é certa: há muitas ocasiões como esta, em que discordo da voz maioritária dos outros portugueses, mas se calhar é porque, e nisso sou muito pouco português, nunca dei crédito adicional a ninguém por falar inglês ou alemão.

Tuesday, April 12, 2011

A hora de pagar a conta

A recente demissão do Governo de José  Sócrates precipitou a necessidade do Estado português pedir ajuda ao exterior para conseguir cumprir os seus compromissos financeiros, uma decisão sempre adiada mas que a ortodoxia vigente apresentava há muito como inevitável.

A curta memória dos portugueses, e o hábito contemporâneo de discutir o imediatismo e o sound bite em vez dos antecedentes e da substância das coisas, têm ajudado a centrar a discussão da situação na respectiva espuma, no caso a eventual partilha de responsabilidades do pedido de ajuda ao exterior entre os líderes dos dois maiores partidos, numa discussão mais próxima de uma querela entre adolescentes em excesso hormonal do que de um debate entre homens de Estado.

Esta é, no entanto, a discussão errada. A anunciada chegada do FMI deriva seguramente de erros governativos do actual primeiro ministro, e do seu partido, que deteve o poder em treze dos últimos quinze anos. Mas a situação a que chegámos tem causas bem mais profundas, que nos recusámos a debater ao longo das últimas décadas, e que muito provavelmente continuaremos a recusar ver de frente, mesmo nos momentos difíceis que se aproximam.

É isso que o FMI e a senhora Merkel vão agora fazer: apresentar-nos a conta dos erros que vimos acumulando, nalguns casos desde 1975, os erros de uma sociedade que, mais do que qualquer Governo, viveu décadas a fugir às decisões difíceis como se fosse possível também fugir às respectivas consequências.

Como queríamos proteger o direito a todos terem uma casa condigna passámos a viver num País onde não é possível a um senhorio subir as rendas mais antigas, ou despejar de forma expedita quem não as paga. Com isto apenas conseguimos eliminar a possibilidade real de toda uma geração arrendar casa, desertificando as zonas nobres das cidades e transformando Portugal no País com  mais proprietários de imóveis per capita de toda a UE, engordando os balanços da banca e endividando cedo demais e fundo demais toda uma geração de portugueses, isto para não falar da degradação do parque habitacional dos centros urbanos, pela simples razão de termos transformado em muitos casos o arrendamento numa actividade economicamente inviável, não produzindo sequer receitas suficientes para assegurar a mais elementar manutenção.

Como queríamos viver num País em que existisse essa originalidade que se chama direito ao emprego — não confundir com direito ao trabalho — assegurado, estável e duradouro, criámos um quadro legal em que a cessação de um vínculo laboral permanente é pouco menos que impossível, pelo menos sem total acordo das partes, normalmente envolvendo uma choruda indemnização. Como resultado, acentuámos a clivagem social e desigualdade de direitos entre quem atinge o estatuto que lhe assegura o emprego e todos os outros. O País com a Lei que mais restringe o despedimento na UE é também o País com mais trabalhadores com vínculo temporário. Algo me diz que não será por acaso.

Como queríamos um País onde todos pudessem ter o melhor acesso à Saúde estabelecemos que o sistema deveria, na prática, ser gratuito, escapando à verdade inelutável de que não é por um cidadão não pagar um serviço que este não tem custos. Trinta anos e várias parcerias-público privadas depois, o défice crónico e aparentemente irremediável do SNS continua aí, sem que ninguém tenha coragem para discutir a possibilidade de não termos dinheiro para dar Saúde gratuita a todos, mesmo aos que a podem pagar.

Fizémos o mesmo com o Ensino, cobrando, mesmo aos que podiam pagar, propinas que nunca garantiriam a sustentabilidade financeira, já para não falar da qualidade, da Escola pública, da primária à Universidade, e opusémo-nos ferozmente a qualquer tentativa de aproximar o preço destes serviços públicos ao seu efectivo custo. Hoje, temos uma geração que se intitula da "mais qualificada de sempre", quando o mais correcto seria designá-la como o grupo de desempregados mais escolarizado da nossa História.

Fizémos o mesmo com os transportes públicos, cobrando preços deslocados do custo real do serviço e combatendo qualquer esforço para discutir de forma séria a respectiva sustentabilidade financeira, que poderia implicar que a maioria das pessoas pagassem mais por eles, mas acima de tudo implicaria rigor no eventual apoio público, em vez da actual situação em que com o aval do Estado estas empresas acumularam dívidas de milhares de milhões de euros, parte das quais a obter junto da Banca os apoios estatais que chegaram sempre tarde e a más horas, enquanto todos, independentemente do seu rendimento, puderam beneficiar de transportes baratos.

Quisémos ter o País todo ligado por pontes e auto-estradas, qual Alemanha à beira-mar plantada, mas não perdemos uma oportunidade de nos recusarmos a pagar pelo seu uso. Depois de um bloqueio à principal ligação entre o Sul e o Norte do País, centrado na recusa de um aumento de portagens, que precipitou a queda em desgraça de um Governo maioritário, os Governos seguintes tomara nota da nossa vontade, e adoptaram a 'Parceria Público Privada' (PPP) como modus operandi, no fundo aliviando do incómodo financeiro quem beneficia directamente do investimento e distribuindo os custos por todos nós, de uma forma menos transparente e que facilita o prejuízo aos interesses do Estado, permitindo manter a ilusão que todos temos direito a pagar o menos possível pelos investimentos que fazem em nosso nome.

Quisémos ter um desemprego baixo a qualquer custo, mesmo que isso nos impedisse de intervir sobre o que é de longe o maior empregador nacional, o Estado Português, e em vez de questionar se as funções, natureza e recursos do Estado eram os adequados, arriscando pôr em causa o emprego vitalício de centenas de milhares de pessoas, assegurando antes lugar a camadas sucessivas de funcionários, que durante uma década (no consulado de Cavaco) foram sempre aumentados claramente acima de quem trabalhava na iniciativa privada, e crescendo em número sem justificação aparente ou correspondência na qualidade dos serviços públicos.

Qualquer pessoa que assista ao debate político dos EUA, para dar um de vários exemplos possíveis, repara que quando um político propõe uma ideia à sociedade as perguntas mais frequentes são as duas menos ouvidas por cá, pelo menos em simultâneo: "quanto custa?" e "como vamos pagar?".

Em 1985, uma década após o período pós-revolucionário, em que a libertação de tensões acumuladas durante décadas ajuda a explicar alguns erros crassos — as nacionalizações que contribuíram para um retrocesso de vinte anos no desenvolvimento industrial do País e os resquícios de socialismo que ainda hoje persistem tanto na Constituição como na visão do mundo e do Estado que resulta desta — Cavaco Silva herdou um País prestes a aderir à CEE, com as finanças públicas saudáveis e a conjuntura ideal para o progresso.

Este quadro, o resultado da anterior intervenção do FMI, acompanhada em Portugal por um governo de unidade nacional com um nível de qualidade e experiência a anos luz da que têm os actuais políticos, poderia ter marcado um novo início para Portugal, mas foi aqui que começou, em vez disso,  a situação em que hoje vivemos.

Lembro-me como se fosse hoje do primeiro artigo que vi sobre a trajectória de catástrofe em que estavam as contas públicas portuguesas, numa revista de negócios, da autoria de um reputado professor universitário. Na altura pareceu-me estranha a distância entre uma explicação racional e científica do que se previa e o discurso de optimismo oficial. O conteúdo do artigo em si não é hoje o mais relevante, ao contrário da data, neste caso os primeiros meses de 1992. Não é, portanto, de agora que vem este negligência criminosa, de adiar decisões difíceis mas inevitáveis, sobre o que podemos ou não pagar.

Neste momento, com o FMI a impor-nos um regresso à realidade, resta saber se ainda vamos a tempo. E resta saber, acima de tudo, se quando passar a travessia do deserto a que intervenção externa certamente obrigará, nos voltaremos a esquecer da lição, como esquecemos de 1985 em diante, e continuaremos a querer um mundo em que a nossa vida seja acima de tudo fácil no imediato, nem que isso signifique que amanhã não sobre sequer o interruptor onde alguém possa apagar a luz.

Friday, March 11, 2011

Jornalismo Rasca

Vi há pouco uma peça da TVI sobre as reacções dos jovens ao discurso de Cavaco Silva, particularmente nas redes sociais, referindo que "a maioria dos comentários do facebook é desfavorável ao presidente", seguindo-se a transcrição de comentários apanhados na página da Manifestação da Geração à Rasca.

Não vou sequer falar da forma como a peça encadeia e equipara o discurso de posse do Presidente da República, ou pelo menos a parte em que apela à mobilização dos jovens, com uma dúzia de comentários anónimos no tom habitualmente inflamado e trauliteiro que a rapaziada utiliza para o arremesso de postas de pescada no Facebook (um dos destaques foi "não acreditem num homem com dupla personalidade"). Esse não é, apesar de tudo, o maior problema.

O problema é como a notícia se começa por basear numa premissa errada, para não dizer falsa, e depois deriva para a pura e simples distorção dos factos. Começando pela premissa, confesso que mal a introdução começou a peça prendeu toda a minha atenção, porque queria perceber como tinha a TVI apurado a opinião "do facebook", atendendo à forma como esta rede social funciona, que leva a que a maioria das interacções entre utilizadores decorram numa esfera privada.

Depois de um momento a interrogar-me se a jornalista da TVI teria muitos amigos no facebook, e a disposição de lhes violar a privacidade, constatei que, como é óbvio, o que procuraram foi opinião reflectida nas páginas públicas, acessíveis por qualquer um. E aqui começa a distorção: em vez de percorrer várias páginas, com diferentes inclinações e tendências, a reportagem focou-se na página da "Geração à Rasca", o que equivaleria, em termos práticos, e ir para a sede do Bloco de Esquerda em Lisboa fazer perguntas sobre José Sócrates, e depois dizer que "os lisboetas estão fartos do Primeiro Ministro".

Claro que a maioria das pessoas não pensa demasiado nisto, nem questiona as premissas das reportagens que lhe são apresentadas. Alguns não conhecem sequer o suficiente dos factos para distinguir "o facebook", a tal coisa que os árabes andam a usar para se revoltar, de uma página de três jovens que decidiram organizar uma manifestação e têm tido, atendendo ao descontentamento generalizado da população e ao momento que o País vive, uma grande exposição nos media. Em suma, a maior parte vai comer o peixe estragado que a TVI lhes serviu como se fosse um belíssimo cherne grelhado no Mercado do Peixe, e isto é uma violação grave da responsabilidade que assiste aos media.


O que é preocupante em tudo isto é a forma como fica demonstrada a facilidade com que se cria opinião sem correspondência com factos, e a forma inadmissível — e nenhuma das duas explicações possíveis, incompetência ou má fé, é tolerável — como uma chefia de redacção deixa uma peça destas ser feita ou, mais provavelmente, encomenda a sua preparação com uma mensagem, ou preconceito, definida à partida, utilizando uma recolha superficial dos factos para a travestir em notícia.

Nesta altura em que todo o protesto é aparentemente legítimo, é frequente ouvirmos atacar a falta de qualidade do nosso establishment político. Este raciocínio tem uma armadilha evidente, que é impedir-nos de ver que os políticos, como aliás os media, são sempre o espelho da sociedade que temos. Se aceitarmos este tipo de jornalismo rasca como normal, e este tipo de abordagem ignorante, simplista e preconceituosa como aceitável, então não vale a pena queixarmo-nos muito: seremos mesmo um País rasca.

Wednesday, March 9, 2011

E alguém os desenrasca?

O tema do momento em Portugal é o protesto da auto-designada "geração à rasca", marcado para este fim-de-semana. Não vou estar na manifestação, em primeiro lugar porque nesta altura já só um ingénuo acredita nos respectivos, e anunciados, apartidarismo e independência, mas também porque, concordando em absoluto que o País e o regime estão doentes, discordo igualmente em absoluto do que os promotores apontam como sendo a solução.

Para estes jovens, a situação deriva de dois problemas principais: a desigualdade de oportunidades, em que os mais novos são prejudicados face às gerações anteriores, mesmo sendo mais qualificados, e a precariedade e baixa remuneração do emprego disponível, que não dá a contrapartida justa pelo tempo e esforço que os mais jovens investiram na sua educação.

Sendo legítimos e compreensíveis, ambos os objectivos são também completamente falhos de lógica ou sustentação. Em primeiro lugar, o mito de que a vida desta geração é mais difícil que a das anteriores é, isso mesmo, um mito. Para quem, como eu, nasceu na década de 70, e viu a transformação do País provinciano e analfabeto no Portugal de hoje, o conceito de dificuldades desta rapaziada fará qualquer pessoa informada com mais de 35 anos no mínimo sorrir (um bom exemplo do que quero dizer neste texto, que vale a pena ler).

Neste domínio a culpa não é, no entanto, dos jovens que agora protestam: a raiz do mal, da aparente contradição de uma população que apesar dos cada vez maiores níveis de qualificação formal encontra crescente dificuldade em encontrar empregos bem remunerados, remonta aos anos 80, com a democratização do ensino superior que os governos de Cavaco Silva assumiram como prioridade.

A lógica era simples: se as pessoas viam numa licenciatura a via para uma vida melhor, para o bem estar económico e reconhecimento social que queriam para si e para os seus filhos, havia que alargar o restrito número de cursos e vagas disponíveis nas universidades. Se isto foi feito destruindo o ensino profissional e degradando a qualidade média do ensino superior bem além do admissível — na prática levando a que a grande maioria das licenciaturas, mestrados e até doutoramentos tenham reduzido valor ou credibilidade no mercado — gerando um exército de licenciados cujas qualificações não tinham a mínima correspondência com as necessidades reais do País, paciência. 

O que interessava é que poderíamos ser todos doutores, fosse com brilho intelectual ou pagando propinas numa das múltiplas universidades privadas que surgiram para aproveitar a oportunidade de negócio que a estratégia de Cavaco gerou, e o canudo abrir-nos-ia as portas de um emprego bem remunerado e reconhecido pela sociedade. Foi assim que chegámos a uma situação em que todos os anos fecham jornais e revistas por falta de viabilidade económica mas entram no mercado de trabalho centenas de licenciados em Comunicação Social, enquanto a falta de médicos nos obriga a recorrer à mão de obra excedentária da vizinha Espanha.

Na prática, tratou-se de uma fraude que várias gerações de portugueses — a começar pela minha, que cumpri 18 anos em 1990 — pagaram com o seu esforço, sonhos e frustração, porque se no topo da cadeia as coisas não mudaram, e ainda hoje um licenciado numa universidade de primeira linha continua a arranjar trabalho sem dificuldades de maior, é evidente que no meio e na base da pirâmide a explosão de cursos não foi, nem podia ser, acompanhada por um aumento da procura de licenciados pelas empresas, levando à actual situação em que um canalizador é mais bem remunerado que o detentor de um doutoramento, e que os  empregadores que mais se queixam de falta de oferta sejam os empresários de restauração e de outras áreas teoricamente menos exigentes em termos de qualificação.

Explicado o meu ponto de vista quanto à relação entre qualificação e emprego, passemos ao segundo ponto, ou do discurso de "acabar com a precariedade", que pode soar bem e ir de encontro aos legítimos anseios destes jovens (e não será por acaso que o vocábulo faz parte integrante do léxico de alguma esquerda) mas é algo que não se consegue por via administrativa, particularmente no País da União Europeia cuja Lei laboral mais dificulta o despedimento individual. 

Foi precisamente para combater a precariedade e assegurar o "direito ao emprego" (as aspas não são acidentais) que a Lei laboral portuguesa foi desenhada, nos anos 70, quando que toda a bússola política estava encostada ao lado esquerdo do espectro e ainda era permitido alimentar ilusões de que o emprego se protegia com leis que dificultassem o despedimento. Três décadas e meia depois, continuamos a falar de "acabar com a precariedade" como se nada disto se tivesse passado,  e como se os recibos verdes e outros subterfúgios mais não fossem que o resultado prático destas ideias e, numa ilusão tipicamente de esquerda, de que é possível criar emprego restringindo a sua extinção.

O problema de toda esta história, e ao mesmo tempo a coisa mais preocupante para todos nós como sociedade, é a forma como a demagogia explora  o ressentimento e legítima frustração de quem sente não ter perspectivas sérias de futuro, para gerar um discurso negativo, e só aparentemente contestatário do sistema, mas sem uma solução viável que não se baseie em ser contra os aparentes culpados da situação (o governo, os tiranos do patronato que não querem pagar mais ou contratar os jovens que estão a recibos verdes), numa lógica que não estaria desenquadrada do Portugal de 1975. 

O que este discurso consegue mais não é que aliviar-nos da responsabilidade que todos temos como cidadãos, a começar por quem escolheu um curso sem pensar seriamente sobre as respectivas saídas profissionais, ou por quem não perde um festival de Verão ou uma ida ao 'Lux' e se queixa de não ter dinheiro para sair de casa dos pais, seguindo a mui lusitana tendência de atribuir sempre a outrem a maior fatia de culpa de qualquer problema.

O problema, de toda esta história é que o País precisa de uma renovação total das suas leis laborais, precisa de reformar o Estado Social que não tem dinheiro para pagar, e precisa de tomar opções inadiáveis que implicarão, no curto e médio prazo, sacrifícios de todos. No entanto, se virmos o discurso dominante destes movimentos, seremos capazes de acreditar que tudo não passa de uma injustiça na distribuição do rendimento, que os jovens são mal remunerados porque as empresas não querem pagar mais, e não porque não tenham condições de lhe oferecer um contrato melhor e mais estável, e que o emprego é precário porque a Lei não o protege.

O que eles ainda não perceberam, e enquanto a demagogia predominar nunca perceberão, é que se continuarem por esta via, por mais que consigam fazer mossas no sistema, de resto inteiramente merecidas, no final do dia não haverá quem os desenrasque...

Monday, February 28, 2011

While you were sleeping

Na Líbia, o último dos ditadores alucinados afirma-se disposto a destruir o próprio País para não largar o poder, depois de ter visto o embaixador líbio na ONU votar, pela primeira vez na história da organização, uma resolução que repudia a conduta do próprio País que representa.

No Irão, uma manifestação convocada para comemorar o que sucedeu há umas semanas no Cairo redundou em centenas de prisões, blackout mediático total e relatos de repressão violenta de uma oposição que vem já, na sua forma actual, de Junho de 2009, e que conta já com largas centenas de mártires, entre presos e mortos.

Nos EUA, o conflito entre o governador do Wisconsin, republicano da ala mais conservadora do partido, e os sindicatos do sector público do seu estado ameaça marcar o futuro dos EUA, transpondo para o nível estatal o forrobodó federal de privatização e saque ao Estado que foi o consulado de George W. Bush (e a opinião não é só minha, é também a de um prémio Nobel).

Em Portugal a dúvida não é se o Governo vai cair, é quando isso acontecerá, não é se podemos fazer alguma coisa para evitar a entrada do FMI, mas apenas saber a data exacta em que se consuma a passagem do "bom aluno" dos tempos da ilusão cavaquista para o rapaz que não prestava atenção nas aulas e foi remetido para o canto da sala com as orelhas de burro.

Tudo isto está  a acontecer neste momento. Todos estes exemplos são de temas que afectam, em maior ou menor medida, o nosso futuro. No entanto, se hoje consultarmos a imprensa, as redes sociais e toda as outras formas de conversação que a nossa sociedade tem, qual será o tema mais falado? Os vestidos dos Oscars.

Acho que não é coincidência que o tema de conversa seja algo que se passou enquanto a maioria do País dormia. Deve ser a força do hábito. De tanto passarmos a vida a dormir enquanto acontecem as coisas que devíamos discutir, algum dia haveríamos de acabar por fazer o inverso, e falar do que nos aconteceu enquanto dormíamos.

Monday, February 7, 2011

O que eu (não) tenho a dizer sobre o Facebook

Facebook é uma daquelas marcas que já nos habituámos a ouvir dita depois de palavras como "fenómeno", ou "explosão". É para mim no mínimo curioso que numa terra em que toda a gente opina, sobre tudo e sobre nada, não tenha havido ainda um único opinador oficial, dos que escrevem, dos que aparecem ou dos que acumulam as várias funções mediáticas, a falar sobre a rede social que toda a gente parece usar, da mesma forma clara e contundente de que parece falar sobre quase tudo.

Poderá ser porque poucos deles têm facebook, ou pouco o usam, e não querendo transparecer o seu menor à vontade com o fenómeno evitam analisá-lo, embora isto não livre alguns paladinos da presunção de omitirem uma opinião definitiva sobre o tema, de que o melhor exemplo é o artigo de opinião, que no mínimo se pode qualificar de cabotino, de Miguel Sousa Tavares no Expresso, um acumulado de lugares comuns e pensamento convencional digno de figurar no caixote do lixo de qualquer escola de jornalismo.

Face a esta lacuna evidente seria perfeitamente normal que eu mesmo a tentasse preencher. Afinal, qualquer pessoa que me conheça sabe que também tenho a irritante tendência de opinar sobre tudo e sobre nada, e apesar de não ter qualquer inclinação ou vontade de ser opinador oficial, ou auto-designada consciência das pessoas civilizadas (que pelo menos simpatizam com safaris e romances de aeroporto), já passei seguramente mais tempo no Facebook do que a maioria deles.

Não é isso, no entanto, que vou fazer. Podia justificar esta recusa com a mais pura lógica, porque o Facebook é um meio de comunicação como qualquer outro, e por isso opinar de forma reflectida e estruturada sobre o tema faz tanto sentido, e seria tão interessante, como analisar o funcionamento do serviço de correios.

Mas não é essa a razão principal da minha recusa. Escrever uma opinião reflectida e estruturada sobre o fenómeno do Facebook exige — como a forma desnecessariamente pomposa que acabei de usar para designar o tema, sem que ninguém estranhasse, indica —  tempo, esforço, e paciência, e acima de tudo que faça um esforço de atenção, ou melhor de desatenção, procurando o que normalmente não procuro e dando importância a coisas em que normalmente não reparo, até chegar a uma versão online de Voando sobre um ninho de cucos, povoado de personagens pitorescas e episódios picantes.

Não é que não conseguisse fazer a tal análise reflectida e estruturada, mas sinceramente não me apetece. No máximo, e de alguma forma quase contrariado, posso fazer uma resenha instantânea de algumas coisas que me apetece dizer aos meus amigos, com e sem aspas, sobre os seus comportamentos no Facebook, que nalguns casos exemplificam como é possível repetir até à exaustão hábitos sem sentido, sem nunca os questionar verdadeiramente.


  • Aos que acham que tudo tem significado, do comentário espontâneo e sem reflexão prévia ao 'like' que a pessoa que era secretamente a destinatária do vosso post não pôs, esqueçam. Faz tanto sentido como pensar que se aquela miúda gira nos sorriu no trânsito é porque nos escolheu para pai dos seus filhos. Há gente que simplesmente gosta das coisas, como há gente que sorri simplesmente porque é simpática, há gente que gosta e não diz, há quem se lembre de uma música lamechas enquanto está a ler Kafka, e não a cobiçar a vossa namorada. Caso não tenham reparado, existe vida fora do Facebook, e nesse capítulo mesmo quem nos adora não acompanha ou assinala tudo o que fazemos. Aliás, se acham normal que alguém acompanhe cada gesto vosso tenho três palavras para vos dizer: procurem ajuda especializada.
  • Para os demasiado ansiosos para ver o óbvio aqui vai: as pessoas não passam 24 horas por dia atentas à sua conta do facebook, a ver o que escrevemos. Às vezes não reagem porque não viram, porque não foram ao facebook ou estavam a ler um livro. E às vezes não põem 'likes' porque não gostam. Às vezes aquele amigo de há vinte anos não respondeu às vossas palavras porque estava ocupado a trabalhar, e depois já não as viu, não porque tenha ficado chateado por terem discordado dele numa guerra de comentários sobre a novela da noite ou o vosso clube de futebol. Se são daqueles que ficam tristes quando não vos respondem, tenho outras três palavras para vocês: get over it.
  • Para os que me propõem amizade sem nunca terem trocado uma palavra comigo, e depois variam entre segredar ao amigo do lado quando de facto estão à minha frente e abordar-me abertamente com ar chateado dizendo que "tu não me aceitaste" (juro), tenho uma pergunta: de que planeta são vocês?.
  • Aos que põem 'likes' aos seus próprios posts queria dizer que não vale a pena. Acreditem que toda a gente vai assumir que gostam de alguma coisa se fizeram o post, não é preciso reforçar. E se ninguém reparou ou gostou, e por isso não pôs um like, o facto de estar lá o vosso like não torna as coisas melhores. Aliás, até as torna piores
  • Aos que sentem que têm que escrever e dizer coisas, seja lá pelo que fôr, e por isso põem tudo o que fazem, minuto a minuto, na rede, tenho uma coisa simples a dizer: não quero, de todo, saber quando foram vocês à casa de banho. Acho piada ver a fotografia do peixe grelhado que um amigo mais afortunado comeu durante um almoço na praia, mas uma vez por mês chega. Se não me mandavam telegramas antigamente quando o faziam, não me ligavam para casa a avisar, nem sequer um SMS era necessário, por que carga de água tenho eu agora que saber sempre onde vocês andam? 
  • Aos que têm uma compulsão incontrolável para postar e emitir opiniões em comentários, e vão pondo o que lhes parece interessante sem se preocuparem com a ocupação selvagem do feed de todos os amigos que têm, grupo em que o autor destas linhas de resto se inclui, digo duas coisas: em primeiro lugar, por mais que os vossos amigos digam que gostam de vos ler, e por mais relevantes e válidas que sejam as coisas que põem, ou por mais assertiva que seja a vossa opinião e corrosivo o vosso humor, e por mais que isso até possa não ser mesmo só impressão vossa, assumam que há garantidamente quem já esteja completamente fartinho de ver a vossa cara no seu feed, e quem já vos tenha votado ao mesmo 'hide' que o farmville. A segunda é que no dia em que começarem a falar para o vosso "público", ou dito de outra forma no dia em que pensem que tal entidade existe, e que a vossa opinião é algo que as pessoas consideram para tomar decisões relevantes nas suas vidas, e precisam de ler as vossas ideias para serem felizes, esse é o dia em que passaram a viver no Facebook, ou no mínimo na imaginação do Miguel Sousa Tavares.
  • Aos que põem mensagens indirectas para alguém, habitualmente um ex namorado ou namorada com quem se está em plena fúria, que variam entre o ininteligível e o explícito, só tenho uma pergunta a fazer: têm a certeza que querem ter esta conversa à frente de quinhentas pessoas?
  • Aos que fazem do facebook um confessionário queria sugerir que fossem a  uma igreja, qualquer uma serve se é para desabafar, recomendo a Católica para confessar. Vantagem: tal como no Facebook, nada é inconfessável, mas ao menos é garantido que há menos de quinhentas pessoas a ouvir os vossos desabafos. Aos que respondem a esses mesmos desabafos comentando e debatendo o acontecimento, com a sapiência e conhecimento de causa de um Gabriel Alves em dia de relato da selecção nacional de futebol, faço outra pergunta: já repararam que não estão sozinhos na sala?
  • Aos que acham o Facebook perigoso, porque potencia comportamentos questionáveis ou libidinosos, ou a mistura de ambas as coisas, quero contar uma história: quando surgiu o telefone, o grande debate na sociedade americana era como esta revolução nas comunicações punha em causa a instituição familiar, ao fazer perigar a honra das senhoras, que agora eram potencial alvo de assédio por personagens mal intencionados, que podiam aproveitar o facto destas, pobrezinhas, estarem vulneráveis a atender telefonemas de estranhos com uma liberdade que não usariam, por exemplo, a abrir uma porta de suas casas na ausência dos maridos. Se a história vos parece ridícula, pensem nisto: daqui a umas décadas é assim que a vossa opinião de hoje parecerá. O Facebook não é perigoso, tal como o telefone não era, nem a rádio. A coisa mais perigosa do mundo é o ser humano, e o cérebro que o comanda, o resto são meras ferramentas. Ninguém se torna mau ao entrar numa rede social, no máximo passa a ter mais oportunidades de o ser, e nenhuma pessoa adulta se transforma miraculosamente num adolescente desorientado e faz coisas que não queira mesmo fazer.
  • Aos que passam a vida a pôr clips de música do Youtube, normalmente dentro do mesmo género: fazer isso de vez em quando tem piada,  fazer disso noventa e oito por cento da vossa participação, oito músicas de cada vez com mensagens pessoais e dedicatórias a acompanhar, só me dá saudades do tempo em que tinha que ligar o gira-discos para ouvir boa música.
  • Finalmente, e acabando na primeira das grandes manias associadas do facebook, aos que jogam ou jogaram farmville só quero fazer uma pergunta: dominaram o vício, caíram na realidade e largaram a quinta, ou entraram na clandestinidade e deixaram de pedir telhas e ovelhas para não serem instantânea e implacavelmente gozados pelos amigos?

Monday, January 17, 2011

Baby Doc is also our problem

Reparei ontem no relato da imprensa do tão imprevisto quanto extraordinário regresso ao Haiti de Jean Claude Duvalier, ou Baby Doc, o ditador que aterrorizou de forma impiedosa o país de 1971, quando herdou o poder do seu pai, François Papa Doc Duvalier, até 1986, quando foi obrigado a exilar-se perante a revolta de uma população farta de sangue e pobreza.

Pai e filho carregaram durante décadas o duvidoso mérito de terem referência assegurada quando se falava dos dirigentes mais sanguinários do planeta, mantendo um regime autoritário e fortemente repressivo que juntava ao habitual culto de personalidade do líder a originalidade de explorar o misticismo, através do voodoo, aumentando exponencialmente as possibilidades de infligir medo a uma população pobre e supersticiosa, que mantinha dominada com a sua temível polícia secreta, os Tonton Macoute, num percurso de vergonha que naquela altura da história provavelmente só Pol Pot e os seus Khmers conseguiram exceder.

Duas décadas e meia depois de ter sido obrigado a abandonar o Haiti, Baby Doc regressa, sem grandes explicações e dizendo apenas que quer "ajudar" um país em pleno turbilhão político, enquanto aguarda uma polémica segunda volta das presidenciais, e um ano após o terramoto que devastou o território e do qual este está muito longe de ter recuperado. Claro que a relevância de tudo isto, para quem vive em qualquer outro lugar do mundo, é reduzida, e sempre foi, porque afinal o cenário deste filme não passa de um pedaço de ilha nas Caraíbas, sem particular peso económico ou estratégico, nem o número suficiente de empresas e residentes estrangeiros necessário para chamar a atenção do mundo ou comovê-lo quando os fumos da tragédia se desvanecem.

O que torna o regresso de Baby Doc relevante não é, no entanto, o futuro dos haitianos, por mais simpatia que estes nos mereçam. O que torna esta notícia digna de menção é ser um bom exemplo de como, em tempos de dificuldade extrema, a memória pode ser curta, e facilmente aceitamos o que até aí parecia inaceitável, pensando no impensável, como sermos salvos por quem já nos levou ao inferno ou libertados pelo nosso anterior carcereiro.

Se pensarmos que a palavra de longe mais dita e escrita nos dias de hoje, dos jornais aos posts do facebook, da publicidade às conversas de café, é "crise", então se calhar pode também não ser má ideia percebermos como o regresso de Baby Doc é, só pelo facto de ser possível, um problema de todos nós.

Wednesday, January 12, 2011

A China que (se) ajuda

As recentes notícias sobre a compra de dívida pública europeia pela China têm levantado alguma celeuma deste lado do Mundo, celeuma essa que não é amenizada pela decisão dos responsáveis chineses de proibirem os europeus de divulgarem os termos exactos dos negócios realizados.

É linear para qualquer pessoa que um negócio destes dificilmente se fará sem contrapartidas, e o recente apoio de 5 mil milhões de euros dado pela China aos armadores gregos para modernizarem as suas frotas, com a contrapartida das compras serem feitas em estaleiros chineses, é um exemplo do que previsivelmente se seguirá noutros países, mas também é perfeitamente admissível que o Governo chinês prefira limitar a informação que é pública, porque sabe que quaisquer que sejam os termos estes causariam inevitavelmente reacções adversas, sendo irrelevante se estas se baseariam na realidade ou em preconceitos e medos que os EUA e União Europeia têm crescente dificuldade em esconder, e que não têm deixado de ser explorados pelo establishment político, nomeadamente do lado de lá do Atlântico.

O tom geral das reacções de europeus, e até de americanos, que vêem com desconforto a entrada do gigante asiático no que é tradicionalmente o seu quintal, tem sido pautado pela desconfiança, nomeadamente sobre que contrapartidas escondidas impuseram os chineses aos países europeus com dificuldades de financiamento, e para não variar sobre quais as reais intenções dos habitualmente enigmáticos dirigentes do Reino do Meio.

Apesar da abundância de teorias de conspiração, e da polémica levantada com as contrapartidas do negócio naval grego, nada disto é novo: as potências ocidentais fizeram-no décadas a fio, enquanto engordaram para além do limite do razoável a dívida do terceiro mundo para que este lhes comprasse bens e equipamentos, normalmente rentabilizando tecnologias que estavam já desactualizadas nos países de origem, e com um descaramento muito superior aos chineses na forma como denominando este esquema de "ajudas ao desenvolvimento" ainda conseguiram a proeza de ficar bem vistos junto de uma opinião pública geralmente ignorante ou desatenta.

Se, como em tudo na vida, há efectivamente dois lados nesta moeda, neste caso prefiro o positivo. Se é certo que não há almoços grátis, e o apoio chinês não deverá ter sido dado sem contrapartidas, a razão de fundo é sintomática de como o nosso mundo está a mudar, e como a globalização comprova cada vez mais a ideia, ou se quisermos o ideal, de que o comércio livre, e a interdependência económica que este acarreta, são a melhor via para um mundo próspero e livre de guerra.

Neste caso a China apoia a Europa porque, ao contrário do que acontecia há umas décadas atrás com a "ajuda" (assim, com aspas e tudo) dada aos países em vias de desenvolvimento, a desgraça da economia europeia arrastaria consigo a própria China, hoje feita fábrica do mundo, que se veria privada de um dos seus principais mercados.

É assim, mais do que uma questão de altruísmo, uma necessidade de auto-preservação para este governo autoritário e pragmático que ainda se intitula comunista. Os senhores de Pequim sabem que o regime poderia não resistir aos problemas sociais que seriam causados pelo desemprego, nomeadamente entre os milhões de chineses que abandonam todos os anos o campo para trabalhar nas cidades, inevitável caso o seu explosivo crescimento actual abrandasse para valores mais normais, como certamente sucederia se a Europa entrasse em recessão prolongada.

Poucos o saberão, mas há várias vozes credíveis, entre quem acompanha a China moderna, que defendem que uma das razões de fundo para ter ocorrido a revolta que se viu em Tiananmen não foi a simples ânsia por liberdade e democracia, provocada pela uma demissão mal aceite de um dirigente estimado pela população, mas um motivo bem mais prosaico: a subida da inflação nos meses anteriores, que fez disparar o preço de muitos bens essenciais, e espalhou o descontentamento generalizado entre a população. Se há coisa que os dirigentes de Pequim aprenderam aí é que o seu futuro depende, ironicamente para um País que ainda se intitula comunista, única e exclusivamente da sua capacidade de dar emprego, comida e meios de enriquecer a um povo cada vez mais exigente.

Friday, January 7, 2011

Que tristeza de Alegre

Manuel Alegre disse ontem em entrevista televisiva que houve "favorecimento" nas mais valias que Cavaco Silva recolheu na venda das suas acções da SLN, e que este configura "gestão danosa", tendo que haver um "julgamento político" no próximo dia 23 quando os portugueses acorrerem às urnas. Um cheiro a crime, em suma. No meio da argumentação não se coibiu de afirmar, com um ar de quem sabe muito bem o que está a dizer e um olhar cúmplice atirado à entrevistadora, que "aquele preço não é o preço de mercado" e que "resta saber" se o mesmo tratamento foi estendido a outros accionistas. Fez-me lembrar Octávio Machado, ou melhor a caricatura do Palmelão, e o seu já famoso "vocês sabem do que eu estou a falar".

Tudo isto poderia fazer vagamente sentido se não fosse um detalhe: é que ao contrário do que sucedia com o BPN, as acções da SLN não eram cotadas em bolsa, e por isso o "preço de mercado" de que fala Alegre era simplesmente o preço que alguém estaria disposto a dar por elas, numa transacção privada com o qual ninguém tem a ver senão os envolvidos, desde que se cumpra a Lei, como foi claramente o caso. Ainda por cima, e para não falar do facto de Alegre não ser capaz sequer de reconciliar o seu próprio livro de cheques, quanto mais entender algo que vá além de noções básicas de economia, pelas notícias que têm surgido a posição de Cavaco nem foi alienada a um preço particularmente favorável.

O argumento de Alegre, de sugerir que a venda foi feita acima do valor pelo qual a empresa estava avaliada, deixando implícito que esta valorização era objectivamente conhecida, e que foi feito um preço "para amigos" no caso de Cavaco, revela maldade ou ignorância. Se é ignorância, é preocupante não só que não entenda o que se passa como que não seja capaz de ouvir alguém, ou pior ainda que não exista alguém, que lhe explique que não pode falar em "preço de mercado" quando claramente não entende o conceito, e a forma como este não se aplica igualmente a uma empresa que esteja ou não cotada, a um negócio público e regulado ou a um negócio privado.

Se é maldade, é pena que um homem que, tal como o seu adversário, embora num registo inteiramente diferente, sempre se quis distinguir do comum dos políticos, usando regularmente termos pomposos para elogiar a sua própria verticalidade e idealismo, acabe a última campanha eleitoral da sua vida a fazer jogo sujo.

O Cavaco que não dá Cavaco

O ar grave e claramente irritado de Cavaco Silva que os noticiários da noite de ontem repetiram incessantemente não dava lugar a dúvidas, quase dispensando o som para se perceber o teor das declarações do professor de Boliqueime: tinha decidido que não ia alimentar mais a novela do BPN, e de agora em diante não ia falar mais sobre o assunto, porque todos os esclarecimentos que havia para dar já tinham sido dados. Do lado de Alegre, no entanto, a gritaria continua, e a imagem que fica, para parafrasear o comentário de um amigo meu, é que "Cavaco não está a dar cavaco de tudo" o que há para dizer sobre as acções que comprou.

Sucede no entanto que, por mais que eu não goste da personagem que nos desgovernou durante uma década, ele tem razão, porque já deu cavaco das acções há muito tempo, e declarou quantas comprou, quantas vendeu, e os valores envolvidos, e estes dados, longe de serem segredo, são públicos há muito tempo, e a imprensa não deixou de os noticiar quando os acontecimentos se precipitaram após a crise financeira de Setembro de 2008, e os rabos de palha do BPN começaram a cheirar mal demais para se poder continuar a ignorar o assunto.

Cavaco de facto já tinha admitido abertamente, e sem que ninguém se escandalizasse, que tinha feito um investimento financeiro de cerca de 100.00 euros em 2001 (portanto quando estava fora da política) e que em 2003 pediu à SLN para vender as acções e encaixou a correspondente mais valia. Investiu o seu dinheiro, ganho com o seu trabalho, e realizou um excelente investimento, e em si nada disto é imoral ou errado. Quando Cavaco vendeu as suas acções faltavam cinco anos para o BPN entrar em rotura, e não há nada que nos permita afirmar que nesse momento o actual Presidente da República tivesse alguma informação menos positiva sobre a empresa ou sobre a conduta dos seus responsáveis.

Ao ser colocado perante a questão no debate com Alegre, Cavaco tentou colocar a bola no outro lado do campo, e questionou a responsabilidade da actual administração (uma forma pouco subtil de apontar o dedo ao Governo e ao PS que apoia Alegre) no beco sem saída a que, mais de dois anos depois da queda do BPN, o Governo de facto conduziu o banco, isto depois de ter recusado um plano de viabilização por privados, liderado por Miguel Cadilhe, que mesmo no pior cenário sairia mais barato ao contribuinte do que o pesadelo a que agora nos arriscamos.

O argumento tem lógica, como aliás a recente entrevista de Fernando Ulrich desmonta com precisão cirúrgica, mas Alegre foi esperto e soube explorar a repulsa da populaça pelo verdadeiro caso de polícia que foi o percurso do BPN, o expoente máximo da corrupção e promiscuidade entre o poder financeiro, político e económico, e sem factos que de facto o suportassem conseguiu aqui uma forma de associar Cavaco ao pior que o cavaquismo gerou, obrigando a descer à terra o homem que normalmente fala "dos políticos" como se ele próprio não fosse um deles, tocado pelos mesmos vícios e soberba que encontramos em qualquer homem de poder. Cavaco sobrestimou a sua própria credibilidade, ou por outro lado subestimou a força da indignação geral com a aventura dos seus ex-ajudantes, e deu o flanco de uma forma que vai acabar por marcar uma campanha que foi desde o início completamente soporífera, e em última análise se arrisca a marcar a presidência.

Tudo valeu até aqui, e parece-me que tudo continuará a valer, para prolongar o mais possível a agonia do candidato da direita. Primeiro o argumento idiota, mais um, de Alegre, de que era importante saber-se "a quem vendeu ele as acções", tentando lançar um isco que ninguém nos media foi suficientemente burro para agarrar (as acções foram vendidas a uma empresa da própria SLN, mas quem determinou o destinatário foi a empresa, e não Cavaco, e mesmo não sendo especialista na matéria acho razoável assumir que não é incomum uma empresa comprar acções próprias que um pequeno accionista deseje vender) de imediato, mas que acabou por colar na agenda dos jornalistas.

Antes deste argumento Alegre tinha recorrido a um outro , ainda mais idiota, mas que sendo um bom 'sound bite' teve melhor acolhimento nos media, de que Cavaco era responsável pelo que aconteceu no BPN, "porque quem tinha acções da SLN era de facto dono do BPN". Não falando sequer do raciocínio primário que não se admite a um candidato ao mais alto cargo político da Nação, o argumento não resiste à análise mais elementar, de como será possível responsabilizar alguém que, para além de saír da holding cinco anos antes da queda do Banco, fez um investimento de 100.000 euros num grupo com largas dezenas de empresas, milhares de colaboradores e activos avaliados em milhares de milhões de euros.


O que neste momento parece claro é que a imagem de Cavaco sairá sempre beliscada desta aventura, porque a sua aura de seriedade inatacável sofre pela associação ao BPN, mas mesmo que a espuma de desvaneça e a verdade dos factos faça desaparecer a actual impressão, de que o professor de Finanças Públicas não está a contar a história na íntegra, há outra conclusão a retirar do episódio, que é tudo menos positiva.

O outra conclusão é que desde que passe tempo suficiente para a memória se desvanecer, e falo do tipo de memória que nos diz o que comemos hoje ao almoço, é possível requentar notícias velhas para criar histórias novas, pelo que qualquer político minimamente hábil consegue manipular estes media e estes jornalistas, mal preparados e pouco rigorosos, que se preocupam mais em correr com o megafone de político em político, e de histeria em histeria, do que em destrinçar o discurso dos factos, tratando das coisas a partir da sua substância e marcando a agenda noticiosa em função do que é relevante para o público, e não da declaração bombástica do momento.