Thursday, October 14, 2010

A culpa é nossa

Nos últimos tempos o tom predominante do discurso público tem sido a revolta, pelo estado a que o País chegou e pela forma como a política nacional mais parece uma peça de teatro de mau gosto, em que final feliz algum salvará o desempenho dos protagonistas de uma avaliação vergonhosa.

Queixamo-nos do estado em que o Governo, este e os anteriores, deixaram o nosso querido jardim à beira-mar plantado. Queixamo-nos da forma sistemática como os militantes proeminentes do partido do Governo, deste e dos anteriores, ocuparam sem modéstia ou decoro todos os bem remunerados lugares da esfera do Estado, tanto a que sabemos existir como o nebuloso e incontrolável mundo-sombra dos institutos que duplicam competências do Governo sem o incómodo do controlo público e das empresas que dependem, por voto ou favor, dos vários ministérios, ocupando e alternando entre si as sinecuras mais cobiçadas, conquistando estatuto social e desafogo financeiro com base num mérito que apenas eles próprios e os seus próximos vêem.

Nesta voragem de culpabilização culpamos todos os que estão bem, sem distinguir se o sucesso chegou por mérito ou favor, se a via do conforto e até da riqueza vieram do que se sabe e se criou ou de quem se conhece e favoreceu. A raiva contra quem vence é própria dos invejosos, e sendo um dos traços negros do carácter nacional é também uma armadilha, uma das piores em que podemos caír, porque nos prende nas malhas da nossa própria impotência, alimentando o ressentimento de quem vê o sucesso sentado no lugar dos resignados, dos que decidiram morrer com a sua própria incapacidade de lá chegar, vivendo numa prisão que para alguns apenas existe no espírito, e para outros que é consequência lógica da nossa atávica pobreza, da inexistência de recursos e de capacidade ou tradição de educar convenientemente as massas, no fundo do nosso destino inevitavelmente medíocre.

Deixámos que a noção de que a porcaria é a regra minasse, de forma aparentemente irreversível, a nossa moral, destruindo a confiança mínima que uma sociedade civilizada tem que ter nas instituições que a separam da barbárie. Por todo o lado se ouvem gritos e palavras de ordem, agora amplificados com o novo megafone de babel da internet, da blogosfera às redes sociais, contra a corja que nos domina e parece ocupar todos os bons empregos, receber todas as benesses, e continuar a habitar um mundo imune a crises ou variações da inflação, numa existência desprovida da incerteza financeira quanto ao dia seguinte que acompanha o quotidiano a grande maioria dos portugueses.

Tudo isto parece certo e, no entanto, tudo isto está errado.

Está errado porque esta corja que suga, a diferente ritmo e intensidade, mas com igual tenacidade, do administrador indicado pelo Governo ao funcionário sem rosto, função ou utilidade prática, o sangue vital da nossa economia, o capital gerado pela proporção exagerada que o Estado captura dos nossos já magros proventos e pelo crónico endividamento público, esta corja de que nos queixamos e que diariamente atacamos sem quartel, esta corja que consegue reunir o ódio unânime dos portugueses como poucas coisas, esta corja de que se fala, somos todos nós.

Está errado porque sempre somos moralistas em causa alheia e raramente em causa própria. Os mesmos portugueses que são capazes de apanhar dois autocarros para participar numa manifestação não recusariam, no dia seguinte ou uns anos depois, um lugar bem remunerado na farta teta do erário público que um primo ou amigo bem colocado lhes fizesse aterrar no colo.

Está errado porque adiamos as decisões difíceis esperando adiar as consequências, começamos por pedir crédito para ter dinheiro para as férias ou comprar outro carro, acabamos a pedir outro crédito para pagar os excessos do anterior, encomendamos um trabalho que não sabemos como vamos pagar, e depois de tudo isto esperamos que quem elegemos para nos governar actue de forma diferente, e surpreendemo-nos quando não o faz, e quando o País sofre as consequências de se ter endividado consistente e irremediavalmente durante quase quatro décadas.

Está errado porque culpamos os políticos por não terem coragem ou tomarem medidas difíceis, por não fazerem as reformas que têm que fazer, mas seríamos incapazes de dar o leme a alguém que dissesse que cem mil pessoas terão que passar de um emprego pago pelo Estado para um futuro incerto para que o País funcione eficazmente, e não desperdice o dinheiro de todos.

Está errado porque somos capazes de protestar relativamente aos exagero de impostos que pagamos mas não de questionar a saúde e educação praticamente gratuitas, as auto-estradas às quais não queremos que regressem portagens ou qualquer coisa que não sejam os privilégios e mordomias da classe dominante, ou dito de outra forma todos os privilégios a que nós próprios não temos acesso.

Podemos continuar a viver como até aqui, e qualquer pessoa inteligente dirá mesmo que esse é o desfecho mais provável, senão mesmo o único possível, e aí, com maior ou menor intensidade consoante a altura da vaga que fustigue o País a cada momento, a culpa será sempre dos outros, "deles", da corja.

Ou podemos mudar, e assumir que a corja somos nós, que ao apontar um dedo a quem nos governa temos três dedos apontados para nós mesmos, que o sucesso não existe sem passar por sacrifícios, que o emprego ideal é aquele em que trabalhamos mais e somos compensados por isso, e não o que atrapalha o menos possível a nossa vida e apesar disso nos remunera bem, que aqueles que elegermos serão sempre o nosso reflexo, pelo que é a cada um de nós que cabe praticar o exemplo que gostava de ver dado pelos que nos deveriam liderar.

Um céptico, ou alguém que simplesmente conheça a nossa história, dirá que nunca perceberemos isto, e que as coisas nunca mudarão, porque não existe vontade ou expectativa de que efectivamente mudem, porque não existem recursos ou capital intelectual para produzir a riqueza necessária para progredirmos, porque preferimos uma existência pobre e previsível ao risco implícito na ambição.

Normalmente sou céptico, mas neste tema também me lembro sempre de uma frase, a de na vida termos que optar entre tentar mudar, por pouco que seja, o nosso País, ou mudarmo-nos para outro. Por isso, resistindo ao cepticismo só me apetece dizer: se isto é assim, e se os culpados somos todos, se temos que nos questionar se recusaríamos um salário de duzentos mil euros para um lugar para o qual não somos qualificados antes de poder criticar quem o faz, se percebermos que a corja somos nós é o primeiro passo para acabarmos com ela, então, nesse caso, quanto mais cedo nos apercebermos disso melhor.

3 comments:

  1. Já se está a tornar um hábito estar de acordo contigo. Ainda fundamos um movimento nacional ou até mesmo internacional ;)
    Parabéns, és grande.

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  2. Obrigado pelas tuas palavras, meu caro. A cabeça fez-se para pensar, e já agora para ajudar a pensar quem a usa mais para o chapéu... ;-)

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  3. Infelizmente tens razão mais uma vez. Abraço.

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