Friday, June 18, 2010

Lisboa, ou a beleza escondida

Hoje de manhã ao sair de casa deparei-me com uma cena habitual na minha rua — e aqui abro um parêntesis para referir o deliciosa que acho a expressão “minha rua” — quando me cruzei com o senhor da drogaria, um sexagenário calvo de ar bem disposto, que costuma aproveitar uma pausa do compasso lento da entrada e saída de clientes da sua loja para, encostado a um carro em frente ou circulando devagar pelo passeio, exercitar a voz para cantar uma qualquer música, normalmente sem letra mas com um ritmo e melodia agradáveis, ostentando o à-vontade de quem sabe ser dono de uma bela voz, sempre com o mesmo sorriso aberto e matreiro nos lábios, sem nunca escapar ao contacto dos olhos de quem passa.

Por volta da hora do almoço, passando de carro pelo Cais das Colunas no regresso de uma reunião, reparei no que pareciam ser algumas dezenas de pessoas, que me chamaram a atenção pela forma como, com uma tranquilidade que contrastava com o habitual ritmo apressado dos peões que circulam em Lisboa, se entregavam à mais pura inactividade, conversando, fotografando, percorrendo os degraus do Cais ou simplesmente contemplando o Tejo que se espraiava perante si.

Quando às primeiras horas do dia me cruzei com o lojista-cantor, cujo estabelecimento, a drogaria-retrosaria, é por si só um sinal indesmentível de que nos encontramos num bairro tradicional lisboeta, a minha primeira reacção instintiva foi a do animal urbano cosmopolita, sempre demasiado apressado para trocar olhares com desconhecidos. No instante seguinte, apercebendo-me da pura estupidez da minha reacção inicial, não pude deixar de o fitar nos olhos, devolvendo-lhe o mesmo sorriso sincero que recebi enquanto ele entoava a sua melodia com a habitual convicção e á-vontade. Apercebi-me, nesse momento, de como, mesmo seguros no conforto da nossa rua e bairro, a vida que levamos torna tão fácil escondermo-nos das emoções, ignorando os outros e o correspondente incómodo quando as despertam.

Estes dois episódios de um dia igual a tantos outros serviram para me recordar duas coisas, que acabo frequentemente por ter o privilégio de relacionar entre si. A primeira é a forma como um olhar mais demorado sobre o que nos rodeia no quotidiano facilmente revela surpresas, detalhes belos ou reveladores que apenas a rotina e o correspondente vício do olhar evita que vejamos convenientemente. É algo de que normalmente nos sucede quando viajamos, e nos apercebemos da minúcia e atenção com que registamos os detalhes que habitualmente passariam em claro.

A segunda é a forma como quando passo muito tempo sem fazer aquilo que mais gosto na vida — abandonar o conforto do meu País para percorrer novos locais onde não tenha estado, alimentando a alma com a intensidade e atenção com que consigo registar e apreciar o que me rodeia, como só fazemos ao descobrir um sítio novo — a cidade onde nasci e vivi a maior parte dos últimos trinta e oito anos se encarrega de me recordar, seja no olhar malandro de um marialva de bairro ou na paisagem arrebatadora de um mais bonitos estuários do mundo, da facilidade com que nos esquecemos que a beleza normalmente se esconde à simples distância de um olhar atento. Nessas alturas apetece-me sempre dizer 'obrigado, Lisboa'.

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