Wednesday, June 16, 2010

As vuvuzelas no País real

Vi há pouco em noticia num jornal da minha área profissional que a Galp distribuiu já 500 mil vuvuzelas, aquele objecto que por esta altura todos suspeitamos não ser um instrumento musical mas uma vingança dos deuses pela colonização, e foi assumido por alguma luminária como o símbolo de apoio à selecção nacional de futebol, um dos poucos assuntos que escapa à tendência dos portugueses para nunca serem unanimemente favoráveis a nada, embora facilmente se alinhem se for para estar contra o que quer que seja.

É por isso no mínimo irónico que à volta de uma das únicas referências unânimes da Nação a mesma empresa que conseguiu a originalidade de ter um País inteiro a cantar um hino de uma gasolineira como forma de apoiar a selecção tenha agora conseguido gerar algo tão unanimemente detestado como a vuvuzela, que qualquer profissional da minha área qualifica, em vários cambiantes, formas e graus de gentileza, como um enorme tiro no próprio pé para a marca.

Se o que até agora escrevi parece fazer todo o sentido, para qualquer pessoa que leia, sem margem para dúvidas, talvez seja um bom momento para questionar se corresponde à verdade, até porque a vida já me ensinou que as ideias em que uma maioria acredita sem questionar são na maior parte dos casos erradas, só que de tão repetidas ninguém deu por isso.

O problema não está nas minhas ideias mas na pessoa que as está a ler, que é demasiado parecida comigo para as questionar. Sucede que há uma incoerência entre a opinião unânime de todas as pessoas que conhecemos e o facto de terem sido vendidas quinhentas mil vuvuzelas. Há uma incoerência entre não haver um único apoiante conhecido desta corneta do demo no meu feed do facebook, que tem mais gente que algumas amostras de sondagem eleitoral, e haver múltiplos relatos de pessoas a acordar com a vuvuzela do vizinho a horas impróprias (ao fim-de-semana de manhã, portanto), porque todo o bairro lisboeta parece ter alguém que gosta de soprar a vuvuzela como se o mundo fosse acabar amanhã.

A incoerência explica-se com uma expressão a que costumo recorrer de vez em quando, e da qual me costumo recordar quando analiso o porquê de certas coisas, que "nós não vivemos no País real", essa figura misteriosa que o primeiro 'Big Brother' revelou em todo o seu esplendor, e que salta à vista de qualquer observador atento que olhe para as capas das revistas, e se dê ao trabalho de imaginar como serão as pessoas que seguem e admiram os incríveis personagens que nelas figuram.

O caso das vuvuzelas é mais um exemplo do admirável mundo que existe fora dos nossos radares, porque tirando as crianças, que têm a tendência natural para produzir barulho, independente de classe ou proveniência, a vuvuzela parece ter sido adoptada sem renitência pela grande massa do povo, o mesmo povo que enche o comboio da linha de Sintra em hora de ponta ou se especializa no assassinato sistemático e reiterado da bela língua portuguesa.

Convém deixar claro que não quero com isto fazer, de forma alguma, qualquer tipo juízo de valor ao que chamei de "povo", até porque a formular uma crítica seria a inversa, tendo como alvo a forma como facilmente esquecemos que vivemos numa redoma, mais rica, animada, confortável e cosmopolita do que a da grande maioria dos nossos compatriotas. Pauline Kael, uma intelectual nova-iorquina que assinou durante mais de vinte anos a crítica de cinema da 'New Yorker', democrata como qualquer bom intelectual americano, disse uma vez que não percebia como Richard Nixon tinha sido reeleito presidente dos EUA, "porque entre todas as pessoas que conheço só uma deve ter votado nele". Nixon, para quem não saiba, ganhou essa eleição em quarenta e nove dos cinquenta e um estados que compõem os EUA.




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