Monday, June 14, 2010

Irão, um ano depois

Faz por estes dias um ano que o Irão foi a eleições, um escrutínio cujo resultado foi clara e despudoradamente falseado para dar a vitória Ahmadinejad, mantendo no poder toda a clique que cresceu à volta da força e influência da Guarda Revolucionária, criada nos tempos do Ayatollah Khomeini para evitar que o exército iraniano, que se absteve de reagir com força à revolução islâmica, tivesse alguma vez poder para desfazer sozinho o regime teocrático dos mullahs.

É um conflito muitíssimo complexo numa sociedade que também ela está longe de ser simples, até porque é muito mais evoluída e cosmopolita do que a ignorância das massas ocidentais, comungada e amplificada pelo típico jornalismo televisivo de 'sound bite', poderia levar a supor. Não é preciso ser historiador para saber que os persas tinham um império que estava no seu auge quando Roma celebrava os primeiros dias da sua República, e é preciso ser de facto ignorante para os colocar no mesmo saco que os descendentes de beduínos que se espalharam do deserto da Arábia até à Península Ibérica, ou das tribos nómadas das montanhas do Afeganistão, simplesmente porque partilham o mesmo profeta.

Ignorantes à parte, aquilo a que assistimos há um ano foi um conflito entre uma faixa de população, maioritariamente jovem — metade dos iranianos tem menos de 25 anos, graças a um surto de natalidade durante a guerra com o Iraque nos anos 80 — moderna, instruída e esclarecida, e uma outra, agarrada ao poder, influência ou riqueza que o aparelho da República Islâmica lhes conferiu, um poder assente nos quase dois milhões de milicianos que o dinheiro do petróleo ajudou a alimentar, em mais um dos episódios de arregimentação dos excluídos da sociedade em que a história é pródiga.

Mais do que discutir a concepção do Estado ou o papel da religião — porque nenhum dos lados contestou, pelo menos como base de discussão, a República Islâmica — e para além de um conflito entre conservadores e reformistas, o que se passou em Teerão teve contornos próximos da luta de classes, entre o Norte e o Sul da cidade, entre a sua zona mais rica, culta e ansiosa por liberdade e a mais pobre e adepta do populismo nacionalista do actual presidente.

A verdade é que o que aconteceu em Junho do ano passado tirou à República Islâmica algo que uma vez perdido dificilmente se recupera: a legitimidade. Ao sobrepor-se ao resultado das eleições, o regime colocou em causa o delicado edifício institucional pensado por Khomeini para assegurar legitimidade popular sem que os líderes religiosos perdessem o controlo da situação. Com a fraude de há um ano, que recebeu reacções contrárias do próprio 'establishment' religioso, o actual supremo líder, Ali Khamenei, transformou o Irão numa ditadura de facto, e terá muito provavelmente iniciado o fim da República Islâmica, com consequências imprevisíveis para todos nós.

Sempre me interessei por história, e graças a Gore Vidal e ao seu romance 'Criação', uma fábula que tem como protagonista um cortesão do Rei da Pérsia e um dos livros da minha vida, sempre me interessei particularmente por este pedaço do mapa, mas a verdade é que é graças ao que sucedeu há um ano, e às incontáveis horas que passei entre a leitura das mais variadas fontes e o acompanhamento em directo dos feeds de Twitter e dos videos que conseguiam saír de Teerão, sei hoje muitíssimo mais do que sabia antes do 'Movimento Verde' ter tomado conta das ruas do Irão.

Aprendi que não deve ter sido por acaso que este povo inventou o xadrês, porque a revolução que levou o Ayatollah Khomeini ao poder não se fez num dia, mas em dois anos conduzidos num crescendo estrategicamente irrepreensível pelos contestatários ao regime do Xá. Aprendi que são preserverantes e corajosos como poucos, e provaram-no pela forma como só os pedidos dos dirigentes que os inspiraram, e nunca o medo de represálias, os impediam de saír à rua no dia seguinte a mais uma manifestação assinalada por mortos e feridos. Aprendi, em suma, a admirá-los como povo, admiração que só cresce por perceber que quem os dirige não os representa.

Em Teerão, as peças continuam com toda a certeza a movimentar-se no tabuleiro, longe do nosso olhar mas nem por isso paradas. Para a maioria de nós, ocidentais focados no sabor do dia do ciclo noticioso, a quase revolução verde de há um ano já se desvaneceu na memória. Para mim, que não deixei de seguir atentamente as notícias ou simples sinais que regularmente chegam do Irão, lembrar-me dos acontecimentos de Junho de 2009 recorda-me também que quando se tem três mil anos de história, um ano são dois dias na vida de um povo.

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