Tuesday, June 15, 2010

Afinal não somos só dez milhões

Gosto imenso de futebol mas, como costumo dizer, é só algo que me emociona e comove durante a hora e meia de duração de um jogo, e por mais que goste de uma boa discussão sempre resisti relativamente bem à histeria típica que transforma homens educados e civilizados, que não perdem a calma ou levantam a voz numa discussão independentemente do tema, em trogloditas de argumentação primária e berro fácil.

Lembro-me aliás com frequência de como a ‘Tribo do Futebol’ de Desmond Morris, que retirei ainda miúdo da extensa biblioteca do meu Pai, desmontava de forma brilhante este desporto como a maior manifestação tribal dos tempos modernos, a continuação por outros meios do confronto entre os clãs e tribos que compõem qualquer sociedade, com códigos e valores próprios como qualquer confronto, um pouco como a guerra é a continuação da diplomacia por outros meios.

Há pouco alguém me recordava do apoio dos emigrantes e luso-descendentes da África do Sul à selecção, pelo que isto vem a propósito não do jogo de hoje (com a Costa do Marfim, dentro de cerca de duas horas), que marca a nossa estreia no Campeonato do Mundo de futebol, mas da experiência que passei um dia no ‘De Kuip’, a banheira de Roterdão, onde há dez anos, mais dia menos dia, vi um Portugal-Alemanha a contar para o campeonato da Europa.

Era o último de três jogos da primeira fase, tínhamos já o primeiro lugar e a qualificação garantidos, e o seleccionador decidiu jogar com dez suplentes e manter apenas um jogador (Fernando Couto, na altura o capitão) dos onze titulares. Ganhámos por três a zero, e a Alemanha foi afastada do Europeu e, como os festejos noite dentro viriam a mostrar, ganhámos um amigo em cada um dos habitantes de Roterdão, que não perderam ainda a memória do arrasador bombardeamento, e posterior ocupação, a que os alemães os submeteram na II Guerra Mundial.

Do que me lembro, mais do que tudo o resto, foi da forma como oito mil portugueses apoiaram a equipa em uníssono, como nunca tinha visto acontecer em território nacional, cantando o hino nacional durante o jogo, a meio da segunda parte, em plenos pulmões, num transe colectivo que até os onze futebolistas da ‘Mannschaft’ afectou.

Nunca mais me vou esquecer, no momento em que o jogo acabou, da expressão de felicidade incontida na cara de um emigrante, que se preparava com os seus amigos para regressar nesse mesmo dia à Alemanha, onde trabalhava, pelo que percebi numa unidade fabril da Volkswagen, quando dizia aos amigos “só imagino a cara deles amanhã quando eu chegar à fábrica. Epá!”.

Aí , em mais uma associação estranha daquelas em que a minha memória é fértil, lembrei-me de quando, no início da década de 90, a agência de comunicação em que eu trabalhava ia iniciar uma relação com a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Tendo sido incumbido de preparar o plano de comunicação, e logo obrigado a estudar o tema, deparei-me com uma lista de mais de 100 países, com o número de portugueses registados nos consulados ou embaixadas de cada um deles. De livro numa mão e folha de cálculo na outra, somei-os, e cheguei a um número muito próximo dos quatro milhões.

Estava sentado na secretária do meu então chefe, que apesar de eu ter o meu próprio gabinete sempre me deixou à vontade para usar o dele quando queria estar sozinho, quando ele entrou regressado de uma reunião. Fitei-o e disse-lhe, brilho nos olhos de quem sempre teve orgulho em ser português: “Pedro, sabia que afinal não somos só dez milhões?”.

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