Wednesday, June 15, 2011

Mudar de vida

Em poucas ocasiões como no Público do último Sábado me lembro de conseguir encontrar em simultâneo, na mesma edição de um mesmo jornal, três peças jornalísticas que, relatando cada uma a sua história, melhor compusessem uma narrativa maior e mais abrangente.

Neste caso, a narrativa mais larga era a crise económica em que Portugal se encontra. Duas das peças estavam incluídas numa reportagem da Pública sobre a forma como os portugueses estão a reagir à crise: uma sobre uma jovem empregada de limpeza, precária, para utilizar um termo em voga nestes últimos meses, mãe solteira com um namorado desempregado a receber o rendimento mínimo, e outra sobre um casal de professores universitários de meia idade, que viram o seu rendimento sofrer a redução de 10% imposta aos escalões mais altos da função pública.

A outra reportagem era sobre o Clube Fluvial do Porto, cuja situação financeira se degradou ao ponto de ver recentemente cortado o fornecimento de gás, e que enfrenta a perspectiva de extinção, apesar do seu património, um novíssimo complexo de piscinas que a reportagem avaliava acima dos 10 milhões de euros, ser substancialmente superior às dívidas, um pouco abaixo do milhão.

O que mais me prendeu a atenção na entrevista à jovem mãe solteira, uma algarvia com menos de 30 anos de idade que tem como principal ocupação a limpeza de casas de férias na Quinta do Lago, não foi a injustiça de limpar casas onde ela própria sabia que um dia de aluguer representa facilmente o dobro ou o triplo dos menos de quinhentos euros que aufere mensalmente, não foi sequer o lamento de não poder partilhar uma casa com o seu companheiro por rendimento insuficiente, mas um outro detalhe: queixava-se de não ter "ao menos" a sua própria casa, a seu ver por não ter um emprego estável "porque se tivesse um rendimento mais fixo podia recorrer ao Banco".

O sonho de ser dono do seu tecto ou pedaço de terra é tão antigo quanto a civilização, pelo que representa de liberdade e segurança face às incertezas do futuro. É no entanto uma falácia, e uma falácia perigosa, pensar que é possível, ou sequer desejável, que todos os membros de uma sociedade desenvolvida sejam proprietários de um imóvel. A pobre rapariga que limpa casas que custam por dia o triplo do seu rendimento mensal é tão livre de sonhar quanto qualquer um de nós, mas devia dar-nos que pensar que uma mulher que recebe um salário mínimo ache convictamente que o que a separa de ter o seu sonho financiado por um banco é um vínculo laboral permanente, ou seja como alguém que mal consegue sobreviver tem como aspiração endividar-se para o resto da sua vida.

A segunda história, o casal de meia idade, demonstra como o nosso País mudou numa geração, como a uma cultura de modéstia e ponderação nos gastos sucedeu o consumismo desenfreado e a posse de bens materiais, da obsessão nacional com a casa própria até à compra do mais recente telemóvel, como objectivo de vida. Apesar de ter um rendimento mensal muitas vezes superior ao da jovem precária algarvia, o casal realizou fácil e pragmaticamente as alterações que se exigiam no seu estilo de vida, substitui jantares fora por pedidos de take away e adquiriu um mealheiro onde acumular as moedas que lhe sobram diariamente nos bolsos, conseguindo assim acumular algum dinheiro extra para gastos imprevistos ou para a ocasional extravagância.

O que mais me impressionou na entrevista foi que estas alterações foram relatadas ao jornalista sem um queixume, um lamento, aceites como factos da vida com que é preciso lidar. Qualquer pessoa dirá que reequacionar os nossos gastos é a atitude prudente perante uma situação como a que vivemos, e a que a maioria das pessoas de bom senso tomariam. Eu diria mais, é a atitude que quase qualquer português tomaria, desde que tenha nascido até à  década de 60 do século passado.

A história do Clube Fluvial do Porto, ou melhor dos problemas financeiros que ameaçam acabar com a sua história centenária, é simples de contar, e mais do que isso é apenas mais uma de muitas histórias semelhantes que ouvimos. Instalado em terrenos com excelente localização no Porto, o Clube alienou parte do seu património para desenvolvimento de um projecto imobiliário, utilizando as receitas para construir um moderníssimo complexo de piscinas. Como sempre sucede nestas alturas, as receitas foram volumosas, mas foram excedidas pelos gastos, e a exploração do complexo desportivo não foi pensada para ser sustentável.

Como sempre sucede nestas coisas, e como está a suceder a um País com o dobro das auto-estradas que parece precisar, a realidade acabou por fazer a sua aparição, como faz sempre mais cedo ou mais tarde. A moral da história? Mesmo perante a catástrofe iminente,  os dirigentes do Fluvial não conseguem esconder o seu orgulho, ainda que mascarado com medo e desânimo, porque o clube tem "o melhor complexo de piscinas da Península Ibérica", recusando-se a entender o óbvio: que a menina dos seus olhos é também o peso que os arrasta ao fundo.

Como os dirigentes do Fluvial, temos uma vez por todas que fazer contas e entender que não há obra que valha a pena fazer se significar a nossa falência, que não basta ter crédito para que algo seja viável, e que termos a casa ou o carro mais vistoso não nos torna nem um pouco mais ricos e desenvolvidos, sendo o contrário mais provável. Como a pobre mulher de limpezas algarvia, temos que perceber que se sabemos que o mundo é injusto e o futuro incerto também devíamos saber que a saída não pode ser comprada a crédito. O que temos que fazer, como fez o casal de meia idade que cresceu noutro Portugal, conservador e avesso deixar os gastos excederem as receitas, é adaptarmo-nos a novas circunstâncias, sem saudosismos nem queixas, com pragmatismo e animados pela expectativa de um futuro melhor.

O que temos todos, como País, que fazer, e que como demonstram os professores universitários temos tudo a ganhar em fazer sem dramas ou lamentos, é mudar de vida.

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