Reparei ontem no relato da imprensa do tão imprevisto quanto extraordinário regresso ao Haiti de Jean Claude Duvalier, ou Baby Doc, o ditador que aterrorizou de forma impiedosa o país de 1971, quando herdou o poder do seu pai, François Papa Doc Duvalier, até 1986, quando foi obrigado a exilar-se perante a revolta de uma população farta de sangue e pobreza.
Pai e filho carregaram durante décadas o duvidoso mérito de terem referência assegurada quando se falava dos dirigentes mais sanguinários do planeta, mantendo um regime autoritário e fortemente repressivo que juntava ao habitual culto de personalidade do líder a originalidade de explorar o misticismo, através do voodoo, aumentando exponencialmente as possibilidades de infligir medo a uma população pobre e supersticiosa, que mantinha dominada com a sua temível polícia secreta, os Tonton Macoute, num percurso de vergonha que naquela altura da história provavelmente só Pol Pot e os seus Khmers conseguiram exceder.
Duas décadas e meia depois de ter sido obrigado a abandonar o Haiti, Baby Doc regressa, sem grandes explicações e dizendo apenas que quer "ajudar" um país em pleno turbilhão político, enquanto aguarda uma polémica segunda volta das presidenciais, e um ano após o terramoto que devastou o território e do qual este está muito longe de ter recuperado. Claro que a relevância de tudo isto, para quem vive em qualquer outro lugar do mundo, é reduzida, e sempre foi, porque afinal o cenário deste filme não passa de um pedaço de ilha nas Caraíbas, sem particular peso económico ou estratégico, nem o número suficiente de empresas e residentes estrangeiros necessário para chamar a atenção do mundo ou comovê-lo quando os fumos da tragédia se desvanecem.
O que torna o regresso de Baby Doc relevante não é, no entanto, o futuro dos haitianos, por mais simpatia que estes nos mereçam. O que torna esta notícia digna de menção é ser um bom exemplo de como, em tempos de dificuldade extrema, a memória pode ser curta, e facilmente aceitamos o que até aí parecia inaceitável, pensando no impensável, como sermos salvos por quem já nos levou ao inferno ou libertados pelo nosso anterior carcereiro.
Se pensarmos que a palavra de longe mais dita e escrita nos dias de hoje, dos jornais aos posts do facebook, da publicidade às conversas de café, é "crise", então se calhar pode também não ser má ideia percebermos como o regresso de Baby Doc é, só pelo facto de ser possível, um problema de todos nós.
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