Há um fio condutor comum de todos os ataques que se lêem e ouvem ao estado de coisas, e à forma nebulosa como muitas de pessoas na esfera pública parecem ter rendimentos muitíssimo acima dos outros portugueses e, este sim o verdadeiro problema, muito acima das suas aparentes capacidades ou qualificações. Em bom português, no aparelho de Estado, já para não falar desse mundo nebuloso das empresas públicas ou na esfera de influência governamental, há gente a mais, a ganhar dinheiro a mais.
A outra parte do problema, de que se fala menos mas que é patente tanto nos pequenos detalhes como nos grandes momentos — de que o melhor exemplo é o Orçamento de Estado que o próprio responsável político definiu como "o mais importante dos últimos 25 anos", entregue incompleto a minutos do prazo legal, depois de no ano passado, em mais um dos arreliadores problema informáticos que parecem perseguir este regime, ter sido entregue numa pen vazia — que é o da mais pura e simples incompetência grassar pelo escalão mais alto do Estado, começando no aparelho dos ministérios, que deveria representar a elite das pessoas que servem a causa pública, e acabando no próprio Governo. No fundo, o problema do regime é o da qualidade, do nível de qualificação de quem ocupa postos de responsabilidade.
Falarmos de falta de qualidade de alguns dirigentes e dos salários exagerados de outros leva-nos muitas vezes a confundir as coisas, e a aceitar a ideia que os políticos são demasiado bem pagos. Isso está errado, e é parte do problema. O presidente da República tem um salário bruto ligeiramente abaixo dos 7.500 euros, e o de um ministro representa 65% desse valor, ou perto de 4.900 euros antes de impostos, o que antes de ajudas de custo ou outros factores (já lá vamos) representará à volta de três mil euros limpos por mês.
Assumindo que o ministro deva ser a referência salarial daqueles que com ele trabalham directamente é razoável assumir também que, começando pelo chefe de gabinete, ninguém leve para casa ao final do mês mais de três mil euros de salário base. Quem tenha a mais pequena ideia de como funciona o governo sabe que em alguns gabinetes ministeriais trabalha-se muito, por vezes doze, catorze ou mesmo dezasseis horas por dia, portanto independentemente de outras considerações temos que assumir que se trata em muitos casos de um trabalho difícil e desgastante.
A questão, de que todos temos consciência, mas que evitamos sempre discutir é simples: não podemos pedir que os políticos sejam pessoas de qualidade pagando-lhes menos do que muitos administradores de médias empresas recebem por mês. É muito fácil comparar a remuneração do Presidente da República à do empregado de escritório, que recebe pouco mais que o salário mínimo, mas é perigoso e irrealista fazê-lo, porque o presidente ou chefe do Governo estão longe de ser dos salários mais desproporcionados relativamente à média dos portugueses, e há no País quem ganhe mais que o mais alto representante do Estado e mereça cada euro que recebe.
Pagar pouco aos políticos é triplamente perverso:
É perverso porque afasta pessoas capazes que não sejam economicamente independentes antes de ocuparem um cargo político, porque mesmo aceitando uma redução de rendimento por uma questão de serviço público os dois mil e muitos euros de salário de um secretário de Estado não pagam uma vida de classe média-alta num centro urbano, nomeadamente para quem tenha filhos, ou seja os compromissos que as pessoas potencialmente capazes de dar um contributo têm antes de ir para o Governo.
É perverso porque convida à artimanha para complementar um rendimento que é de senso comum ser inferior ao razoável, e aí entram as ajudas de custo, os cartões de crédito e outros mecanismos que apenas dependem da seriedade do utilizador para não serem usados abusivamente, convida à criatividade para remunerar irregularmente (recorrendo a institutos ou empresas externas em vez do próprio ministério) alguns assessores cujo salário foi nivelado pela anterior remuneração privada e leva ao efectivo desperdício de dinheiros públicos quando os ministérios têm que recorrer a assessorias externas, realizadas por empresas, para terem acessos às competências que não têm forma de contratar individualmente pelo seu custo real, para além de aumentar a permeabilidade do Governo face a influências do exterior, porque os mesmos consultores que apoiam o Estado não deixam naturalmente de aproveitar as oportunidades que surgem para conseguir tratamento privilegiado para os seus clientes privados.
E é, acima de tudo, perverso porque torna aceitável a ideia de que a verdadeira compensação financeira, que numa sociedade desenvolvida acompanha o sucesso em todas as áreas da vida profissional, é recebida após a política pelos contactos e experiência que se obteve, o que por um lado é um convite a que esta agenda e contactos se vão estabelecendo ainda enquanto o cargo é exercido, e por outro lado mina as fundações do que deve ser a independência do poder político face aos interesses económicos predominantes, agravando uma promiscuidade que nunca é totalmente evitável entre o dinheiro e a condução dos negócios do Estado.
É assim claro que se queremos qualidade na política temos, como sucede em qualquer outro domínio da vida moderna, de a remunerar de forma correspondente.
No entanto, e como vivendo em democracia limitarmo-nos a aumentar os políticos sem repensarmos a forma como a sua organização gasta o dinheiro é impraticável, e mais do que isso acarretaria o risco de não resolver o problema da qualidade, temos que pensar no que teria que mudar para que esta alteração produzisse uma mudança efectiva.
Há por isso cinco coisas que têm que ser salvaguardadas para que esta ideia possa ser viável:
Em primeiro lugar que as remunerações sejam fixadas de forma independente, porque qualquer salário fixado pelo próprio beneficiário tem sempre a sua credibilidade ferida na origem, e que haja uma entidade ou forma de fixação que não permita que os responsáveis políticos sejam, como são agora obrigados a ser, juízes em causa própria.
Em segundo lugar, que sejam adequadas à responsabilidade da função, ou seja comparáveis a remunerações equivalentes no sector privado, idealmente calculadas com base nestas, sem deixar de ter em conta que a possibilidade de prestar um serviço à comunidade e, porque não dizê-lo, e a oportunidade de influenciar o rumo político do País e alargar conhecimentos e contactos, levem sempre a que a remuneração pública não exceda o seu equivalente privado.
Em terceiro lugar, a estrutura que apoia o trabalho dos políticos, dos gabinetes ministeriais ao apoio aos deputados e grupos parlamentares, tem que ser reavaliada do ponto de vista organizacional, como se faria em qualquer empresa privada, definindo uma orgânica que resolva as efectivas necessidades de cada ministério e da Assembleia da República, evitado a contratação selvagem de assessores remunerados directa e indirectamente, diminuindo ao mínimo indispensável o recurso a prestadores de serviços externos para assegurar necessidades que a própria máquina estatal deveria suprir por si, e limitando a capacidade dos políticos reorganizarem à sua medida, a cada mudança de Governo ou até de cargo, o funcionamento do que são efectivamente estruturas públicas, diminuindo as perdas de eficiência que estes processos de mudança sempre acarretam, diminuindo o período de adaptação da máquina do Estado a cada novo responsável político e reduzindo a margem de desorganização que possa ser induzida pelas reestruturações feitas por políticos menos competentes.
Em quarto lugar, é necessária total e absoluta transparência, e todos os gastos dos gabinetes devem ser publicados online, no caso dos salários anualmente, e no caso dos gastos extraordinários mensalmente, evitando não apenas a suspeição e falta de crédito que sempre advém da opacidade como alguns excessos conhecidos à posteriori, como a conta de flores do gabinete do Primeiro Ministro, ou pelo menos que estes sejam feitos sem uma justificação clara.
Finalmente, porque o sistema precisa, mais do que nunca, de sangue e ideias novas, devia ser mudada a forma de contratação dos cargos de dependência directa de políticos, como sejam os gabinetes ministeriais e principais institutos públicos, aproveitando terem por norma uma duração finita, equivalente ao do mandato do político ou administração em causa, para criar a possibilidade de uma comissão temporária de serviço público, capaz de atrair pessoas de qualidade que não desejem fazer carreira permanente no Estado mas estejam disponíveis para prestar um serviço útil ao País durante um período definido, aproveitando a remuneração mais elevada para melhorar, como sucede com qualquer empresa, o nível qualitativo dos recursos humanos, recrutando pessoas no mercado de trabalho em geral e nas melhores universidades, como faz qualquer empresa de primeira linha, e não fechando a porta ao recrutamento interno, ou seja aos melhores funcionários públicos de carreira, deixando-os concorrer em igualdade de circunstâncias aos mesmos lugares, aproveitando as pessoas com genuína qualidade e empenho que (também) existem no Estado, e sua inestimável experiência do funcionamento da coisa pública.
É verdade que pela natureza sensível da actividade política, nas posições mais próximas dos decisores a confiança pessoal é essencial, pelo que teria que ser preservada a capacidade de escolha directa de parte dos colaboradores, mas a abertura do recrutamento atrairia muita gente capaz para os vários níveis do aparelho de suporte do Governo e Parlamento, e o próprio nível das pessoas que os responsáveis políticos, incluindo o Primeiro Ministro, poderiam convidar com sucesso subiria garantidamente.
O organigrama do Parlamento, Governo e Presidência e as formas de remuneração deveriam ser fixadas por um comité de sábios, um grupo de pessoas reconhecidamente capazes e independentes, de diferentes áreas políticas, com credibilidade técnica e experiência tanto na área pública ou governamental como na privada, comissão esta que seria nomeada com o acordo de pelo menos dois terços de apoio dos partidos com assento de parlamentar, sob compromisso dos dois maiores partidos de implementarem as respectivas recomendações.
Definir um quadro técnico claro para permitir uma decisão política transparente e aceite por todos não é um processo novo no nosso País, apesar de poucas vezes nos lembrarmos disso, e já produziu resultados no passado com outros temas, e em momentos menos graves que o actual, pelo que não há razões para não acreditar que uma iniciativa deste tipo não pudesse ser bem sucedida.
Tenho a certeza que se devida e aprofundadamente estudado este tema é resolúvel, no sentido em que é simultaneamente possível aumentar a qualidade dos políticos e reduzir desperdícios e ineficácias, ao mesmo tempo remunerando melhor quem preste serviço público e reduzindo o custo da estrutura necessária para legislar e governar o País. Enquanto a organização que é necessária para dirigir os assuntos do Estado mantiver as suas limitações actuais, e a salarial é claramente uma delas, a tendência para criar estruturas paralelas que possam realizar o trabalho que os ministérios não conseguem com a rapidez ou eficácia necessárias, continuará, e com esta o descontrolo na despesa e a proliferação de zonas cinzentas, com camadas de organismos que duplicam competências de ministérios a acumularem-se ao sabor das sucessivas conveniências políticas.
Tenho também a certeza de que uma medida destas contribuiria para moralizar a remuneração dos gestores e responsáveis de institutos públicos, porque os mecanismos de indexação que existiam para moderar os salários destes dirigentes associando-os ao salário do Presidente da República ou responsável do governo (existem 1.100 funcionários que ganham mais que o primeiro ministro) poderiam voltar a ser aplicados, uma vez que a respectiva remuneração fosse mais realista e condizente com a importância real dos principais cargos do Estado, em vez da actual situação, em que é admissível que o presidente do Conselho de Administração de um hospital público ganhe duas vezes mais que o Presidente da República, não porque o princípio em si faça sentido mas porque se assume que este último tem um salário irrealisticamente baixo.
Para resolver este problema é apenas preciso coragem para enfrentá-lo e explicá-lo à população, que é tudo o que tem faltado aos nossos políticos — veja-se a opacidade do acordo a que PS e PSD chegaram em Maio para as medidas do primeiro PEC, para ter um exemplo recente — nos caso de alguns políticos a coragem para deixar de lado a retórica que compara ordenados fabris a salários de governantes, e confiança na inteligência das pessoas para perceber o que está em causa. E é acima de tudo preciso noção de uma coisa: que ou aumentamos a qualidade dos nossos políticos ou a qualidade do sistema em si não melhorará, e muito dificilmente saíremos da actual situação com gente da qualidade da que actualmente ocupa os escalões mais altos do aparelho de Estado.