A recente demissão do Governo de José Sócrates precipitou a necessidade do Estado português pedir ajuda ao exterior para conseguir cumprir os seus compromissos financeiros, uma decisão sempre adiada mas que a ortodoxia vigente apresentava há muito como inevitável.
A curta memória dos portugueses, e o hábito contemporâneo de discutir o imediatismo e o
sound bite em vez dos antecedentes e da substância das coisas, têm ajudado a centrar a discussão da situação na respectiva espuma, no caso a eventual partilha de responsabilidades do pedido de ajuda ao exterior entre os líderes dos dois maiores partidos, numa discussão mais próxima de uma querela entre adolescentes em excesso hormonal do que de um debate entre homens de Estado.
Esta é, no entanto, a discussão errada. A anunciada chegada do FMI deriva seguramente de erros governativos do actual primeiro ministro, e do seu partido, que deteve o poder em treze dos últimos quinze anos. Mas a situação a que chegámos tem causas bem mais profundas, que nos recusámos a debater ao longo das últimas décadas, e que muito provavelmente continuaremos a recusar ver de frente, mesmo nos momentos difíceis que se aproximam.
É isso que o FMI e a senhora Merkel vão agora fazer: apresentar-nos a conta dos erros que vimos acumulando, nalguns casos desde 1975, os erros de uma sociedade que, mais do que qualquer Governo, viveu décadas a fugir às decisões difíceis como se fosse possível também fugir às respectivas consequências.
Como queríamos proteger o direito a todos terem uma casa condigna passámos a viver num País onde não é possível a um senhorio subir as rendas mais antigas, ou despejar de forma expedita quem não as paga. Com isto apenas conseguimos eliminar a possibilidade real de toda uma geração arrendar casa, desertificando as zonas nobres das cidades e transformando Portugal no País com mais proprietários de imóveis
per capita de toda a UE, engordando os balanços da banca e endividando cedo demais e fundo demais toda uma geração de portugueses, isto para não falar da degradação do parque habitacional dos centros urbanos, pela simples razão de termos transformado em muitos casos o arrendamento numa actividade economicamente inviável, não produzindo sequer receitas suficientes para assegurar a mais elementar manutenção.
Como queríamos viver num País em que existisse essa originalidade que se chama direito ao emprego — não confundir com direito ao trabalho — assegurado, estável e duradouro, criámos um quadro legal em que a cessação de um vínculo laboral permanente é pouco menos que impossível, pelo menos sem total acordo das partes, normalmente envolvendo uma choruda indemnização. Como resultado, acentuámos a clivagem social e desigualdade de direitos entre quem atinge o estatuto que lhe assegura o emprego e todos os outros. O País com a Lei que mais restringe o despedimento na UE é também o País com mais trabalhadores com vínculo temporário. Algo me diz que não será por acaso.
Como queríamos um País onde todos pudessem ter o melhor acesso à Saúde estabelecemos que o sistema deveria, na prática, ser gratuito, escapando à verdade inelutável de que não é por um cidadão não pagar um serviço que este não tem custos. Trinta anos e várias parcerias-público privadas depois, o défice crónico e aparentemente irremediável do SNS continua aí, sem que ninguém tenha coragem para discutir a possibilidade de não termos dinheiro para dar Saúde gratuita a todos, mesmo aos que a podem pagar.
Fizémos o mesmo com o Ensino, cobrando, mesmo aos que podiam pagar, propinas que nunca garantiriam a sustentabilidade financeira, já para não falar da qualidade, da Escola pública, da primária à Universidade, e opusémo-nos ferozmente a qualquer tentativa de aproximar o preço destes serviços públicos ao seu efectivo custo. Hoje, temos uma geração que se intitula da "mais qualificada de sempre", quando o mais correcto seria designá-la como o grupo de desempregados mais escolarizado da nossa História.
Fizémos o mesmo com os transportes públicos, cobrando preços deslocados do custo real do serviço e combatendo qualquer esforço para discutir de forma séria a respectiva sustentabilidade financeira, que poderia implicar que a maioria das pessoas pagassem mais por eles, mas acima de tudo implicaria rigor no eventual apoio público, em vez da actual situação em que com o aval do Estado estas empresas acumularam dívidas de milhares de milhões de euros, parte das quais a obter junto da Banca os apoios estatais que chegaram sempre tarde e a más horas, enquanto todos, independentemente do seu rendimento, puderam beneficiar de transportes baratos.
Quisémos ter o País todo ligado por pontes e auto-estradas, qual Alemanha à beira-mar plantada, mas não perdemos uma oportunidade de nos recusarmos a pagar pelo seu uso. Depois de um bloqueio à principal ligação entre o Sul e o Norte do País, centrado na recusa de um aumento de portagens, que precipitou a queda em desgraça de um Governo maioritário, os Governos seguintes tomara nota da nossa vontade, e adoptaram a 'Parceria Público Privada' (PPP) como
modus operandi, no fundo aliviando do incómodo financeiro quem beneficia directamente do investimento e distribuindo os custos por todos nós, de uma forma menos transparente e que facilita o prejuízo aos interesses do Estado, permitindo manter a ilusão que todos temos direito a pagar o menos possível pelos investimentos que fazem em nosso nome.
Quisémos ter um desemprego baixo a qualquer custo, mesmo que isso nos impedisse de intervir sobre o que é de longe o maior empregador nacional, o Estado Português, e em vez de questionar se as funções, natureza e recursos do Estado eram os adequados, arriscando pôr em causa o emprego vitalício de centenas de milhares de pessoas, assegurando antes lugar a camadas sucessivas de funcionários, que durante uma década (no consulado de Cavaco) foram sempre aumentados claramente acima de quem trabalhava na iniciativa privada, e crescendo em número sem justificação aparente ou correspondência na qualidade dos serviços públicos.
Qualquer pessoa que assista ao debate político dos EUA, para dar um de vários exemplos possíveis, repara que quando um político propõe uma ideia à sociedade as perguntas mais frequentes são as duas menos ouvidas por cá, pelo menos em simultâneo: "quanto custa?" e "como vamos pagar?".
Em 1985, uma década após o período pós-revolucionário, em que a libertação de tensões acumuladas durante décadas ajuda a explicar alguns erros crassos — as nacionalizações que contribuíram para um retrocesso de vinte anos no desenvolvimento industrial do País e os resquícios de socialismo que ainda hoje persistem tanto na Constituição como na visão do mundo e do Estado que resulta desta — Cavaco Silva herdou um País prestes a aderir à CEE, com as finanças públicas saudáveis e a conjuntura ideal para o progresso.
Este quadro, o resultado da anterior intervenção do FMI, acompanhada em Portugal por um governo de unidade nacional com um nível de qualidade e experiência a anos luz da que têm os actuais políticos, poderia ter marcado um novo início para Portugal, mas foi aqui que começou, em vez disso, a situação em que hoje vivemos.
Lembro-me como se fosse hoje do primeiro artigo que vi sobre a trajectória de catástrofe em que estavam as contas públicas portuguesas, numa revista de negócios, da autoria de um reputado professor universitário. Na altura pareceu-me estranha a distância entre uma explicação racional e científica do que se previa e o discurso de optimismo oficial. O conteúdo do artigo em si não é hoje o mais relevante, ao contrário da data, neste caso os primeiros meses de 1992. Não é, portanto, de agora que vem este negligência criminosa, de adiar decisões difíceis mas inevitáveis, sobre o que podemos ou não pagar.
Neste momento, com o FMI a impor-nos um regresso à realidade, resta saber se ainda vamos a tempo. E resta saber, acima de tudo, se quando passar a travessia do deserto a que intervenção externa certamente obrigará, nos voltaremos a esquecer da lição, como esquecemos de 1985 em diante, e continuaremos a querer um mundo em que a nossa vida seja acima de tudo fácil no imediato, nem que isso signifique que amanhã não sobre sequer o interruptor onde alguém possa apagar a luz.