Os últimos dias têm-nos recordado do distante que está já a silly season, e como à ausência de notícias relevantes se sucedem agora acontecimentos nos quais é difícil não reparar. O último tema a ocupar a arena tem sido a discussão do Orçamento de Estado, ou mais propriamente a forma como o Governo ameaça demitir-se caso não chegue a acordo, com o principal partido da oposição, para garantir a respectiva aprovação na Assembleia da República.
Já estamos habituados a alguma dramatização na discussão de um Orçamento sem um governo maioritário, mas desta vez algo parece diferente. As posições duras dos principais responsáveis políticos do Governo, Primeiro Ministro incluído, a aparente quebra de confiança pessoal entre Sócrates e Passos Coelho a propósito do que escapou para a imprensa sobre a respectiva negociação a dois (a ponto de PPC afirmar que não se encontrará novamente a sós com o líder do PS) e a forma como o PSD se parece demarcar das tentativas de conciliação de Cavaco Silva indiciam que desta vez, ao contrário do habitual, existe a possibilidade real do Governo se demitir num momento de enorme fragilidade da nossa Economia e finanças públicas.
Não sei, e neste caso apenas duas pessoas no País sabem, e uma delas disse que não voltava a encontrar-se sem testemunhas perante a outra, qual a real vontade do PS e PSD de chegar a acordo sobre o Orçamento, mas tenho uma explicação possível, uma tese que resulta, em termos simples, nos dirigentes socialistas estarem a brincar connosco, com o nosso trabalho, com os nossos impostos, e em suma com o nosso País.
Como todos sabemos esta crise orçamental foi desencadeada porque o PSD não quer aprovar o orçamento sem obter garantias de redução da despesa necessária para cumprir o PEC, nomeadamente porque é claro que o Governo se prepara para resolver parte do problema pelo lado da receita agravando a carga fiscal, como o próprio PS acabou por confirmar. Aqui não há novidade, a própria Comissão Europeia manifestou dúvidas sobre a eficácia das medidas que Portugal anunciou para reduzir a despesa, ao que o Governo já disse que iria anunciar futuramente as medidas adicionais exigidas pelas metas de redução da despesa.
Passos Coelho defende os interesses do País mas, como qualquer político, defende-os intransigentemente porque coincidem com os seus próprios interesses, já que se a besta sorvedoura de recursos que é o Estado português, e a sua despesa corrente incontrolável, não for devidamente açaimada neste momento, o líder do PSD dificilmente terá, quando se sentar na cadeira do poder nas próximas eleições, condições mínimas para fazer algo de substantivo, porque para além de cortar a direito na despesa terá que aumentar ainda mais, ou pelo menos não reduzir, os impostos. Este caderno de encargos obriga-lo-á a adiar a concretização das suas interessantes (embora dificilmente aplicáveis num País em que o Estado paga 700.000 salários) ideias liberais, que assentam na redução do peso do Estado e da carga fiscal que asfixia o País, como obrigou Durão Barroso a adiar o seu choque fiscal, porque só reduzindo o desperdício do Estado é viável diminuir a forma como a coisa pública suga o sangue da economia, libertando meios e recursos que serão melhor empregues pelas pessoas e empresas.
Sócrates, por seu lado, é reconhecidamente um sobrevivente, e bastou ver há umas semanas Francisco Assis, com aquele seu ar de burguês alimentado a croissants, a perorar sobre o "ataque ao estado social" perpetrado pelo PSD, o que para corresponde a acusar de homicídio de um cadáver alguém que ainda não chegou ao local do crime, para perceber que o Primeiro Ministro escolheu a luz que o poderá guiar até ao fim do túnel.
O que suspeito é que Sócrates está a procurar esta crise porque sabe que este é o momento ideal para assar Passos Coelho em lume brando, porque o seu tema de campanha, de colocar a opção entre os dois partidos como uma de escolher entre a defesa e a destruição do "Estado Social", está já bem definido, com a infeliz contribuição do próprio líder do PSD, com um processo de revisão constitucional que é tão feliz nas ideias válidas e na necessidade de discussão de temas importantes, como a capacidade do Estado de pagar serviços gratuitos para todos, como infeliz no timing e forma como foi lançado.
Sabendo que Passos Coelho não pode arriscar-se a aprovar qualquer Orçamento do Governo, sob pena de não poder dissociar-se dos respectivos resultados em futuras eleições, o líder do PS reserva para "mais tarde" as medidas que irá tomar para reduzir a despesa, precisamente o ponto onde os sociais democratas exigem clarificação. O cálculo é que, pressionado por Cavaco, pela conjuntura internacional e pelo cada vez maior prémio de risco que o Estado paga para se financiar, Passos Coelho acabará por aceitar, e assim parecerá alguém que tomou uma posição de força e no fim acabou por ceder, e pactuar com o Governo e com a situação, certamente deplorável, em que o País se encontrará dentro de um ano, quando passadas as presidenciais se devem realizar novas legislativas.
Se, por outro lado, não aceitar, e o Governo acabar por se demitir, fazendo adensar o fantasma da intervenção do FMI e aumentando ainda mais o já de si estratosférico custo do dinheiro para Portugal, que num país de proprietários hipotecados se prolonga rapidamente do financiamento do Estado para as prestações bancárias dos cidadãos, Sócrates pode colocar-se na posição onde qualquer político gosta de estar, a vítima injustiçada a quem não deixaram fazer o seu trabalho, e conseguirá o feito de etiquetar simultaneamente Passos Coelho como irresponsável e defensor da extinção da função social do Estado, uma ideia que, num país de funcionários e reformados como o nosso, tornará a eleição do líder do PSD impossível se uma fatia razoável do eleitorado a achar credível.
Encurralado entre duas más escolhas sem proveito, empurrado para uma solução por um Cavaco Silva que soma o seu reconhecido horror a qualquer tipo de trapalhada com a necessidade de salvaguardar uma vitória eleitoral que está neste momento assegurada, Passos Coelho arrisca-se a saír desta história com uma imagem de fraqueza, por ter cedido depois de uma posição de princípio, ou de irresponsabilidade, por ter sido o maior culpado da queda do Governo, e de tudo o que se lhe seguir.
Sócrates sabe que a sua melhor hipótese de sobrevivência política é agora, e quase se pode dizer que será agora ou nunca, pelo que é o principal interessado em provocar esta crise. Dentro de um ano, face à manutenção do problema que agora vivemos, passada a histeria do "ataque ao Estado Social" e quando a expressão "tendencialmente gratuito" tiver regressado ao seu lugar obscuro no dicionário, o Primeiro Ministro sabe que não apenas o País como o seu próprio partido já estarão a pensar na sua inevitável substituição.
Num País a sério o primeiro ministro e o líder da oposição discutiriam a reforma da função social do Estado, e explicariam aos portugueses que quem em três décadas passou de duas ou três centenas de milhar para dois milhões de pensionistas não pode manter um sistema de reformas viável se não o repensar. Num país a sério, e perante o risco real do Estado deixar de se conseguir financiar, os cortes difíceis mas indispensáveis, que exigem consenso alargado, seriam decididos antes, ou no mínimo em simultâneo, com o Orçamento de Estado, e seriam anunciados de forma clara e transparente perante agentes económicos e eleitores.
Sucede que este nem sempre é um País a sério, pelo que aquilo que acabamos por discutir não é a via de resolução da crise, ou que forma deverá tomar a indispensável reforma do Estado, mas antes de forma como Sócrates montou, com a inteligência política e instinto de sobrevivência que lhe é característico, uma brilhante ratoeira para apanhar Passos Coelho e explorar a única via possivel para se manter no poder. O problema, nesta história, é que os ratos não são os dirigentes do PSD, mas todos nós, que continuamos a pagar esta loucura com o nosso trabalho e impostos.