Acredito que qualquer pessoa suficientemente atenta e curiosa pode perceber a maioria das grandes mudanças interpretando os pequenos sinais. Uma das coisas que mudou entre o mundo em que os meus pais se conheceram e aquele em que vivemos é a quase omnipresença da comunicação comercial, o total envolvimento das marcas no diálogo quotidiano na nossa sociedade, que as novas formas e meios de comunicação conseguiram tornar quase asfixiante, num ciclo vicioso em que a nossa atenção diminui e o esforço e imaginação de quem nos quer vender alguma coisa aumenta.
Lembrei-me disso hoje ao ver um desses sinais, no caso ao reparar na segunda vez consecutiva em algo que tinha visto no homem da bicicleta. O homem da bicicleta é — como o senhor do adeus, o simpático cavalheiro de meia idade que a maioria dos lisboetas viu, pelo menos uma vez, junto ao Saldanha ou próximo de Belém, a acenar aos carros que passavam como se todos os respectivos condutores fossem velhos amigos — um daqueles deliciosos personagens dão vida e rosto a uma cidade, suficientemente excêntricos para que a sua passagem nunca se faça sem nos marcar a memória.
Trata-se de um homem a rondar os cinquenta, de estatura média, seco de carnes e de rosto curtido pelo Sol, cabelo ralo aparado pelo primeiro pente da máquina, envergando calções ou calças de fato de treino e uma t-shirt leve, aproveitando as paragens para ajeitar as mangas da t-shirt, sempre arregaçadas até ao cimo, como se se preparasse para ir até Coimbra no velocípede e antecipasse o incómodo do percurso.
Passeia pelo meu bairro na sua bicicleta, com um rádio de pilhas no cesto frontal que toca quase invariavelmente com a intensidade suficiente para anunciar a sua chegada antes que a nossa visão periférica o faça, e se não surge com frequência também não posso dizer que passe muito tempo sem o ver. Hoje, ao encontrá-lo à porta de minha casa ao final do dia, comprovei a suspeita que alimentei da primeira vez que reparei num detalhe, no caso a forma como, bem visível nas costas do nosso personagem, numa t-shirt de côr diferente da que vestia na ocasião anterior, estava a frase certeira do patrocinador: "Celso, os melhores caracóis de campo de Ourique".
Nota: já após a publicação deste post fui informado pela minha irmã de que existe um grupo no Facebook para o homem da bicicleta. Delicioso.
Caramba, excelente «fresco», uma belíssima história quase tirada do nada que se torna numa bela crónica urbana. Perfeito. Até a Côr com acento tem mais cor :)
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ReplyDeleteeu acho que o bike man ia a passar pela casa do Celso que estava entretido na apanha dos caracóis e levou emprestada a t-shirt do estendal. é que o celso mora do R/C. e baidauai, publicidade, o que é isso...?
ReplyDeletebem visto, o post, como não seria de esperar outra coisa, embora que pudesse já contra-por a questão se esta publicidade, ao custo de um bocado de algodão provável mente já usado, terá o resultado pretendido, que podem ser dois: vestir um homem semi-despido, ou dar a conhecer os caracóis do celso? porque se for a ultima das duas, depois de veres a via, diz-me lá tu se ias comer um Celso que pelos vistos equivale a uns quantos caracóis...hum?
(escrever às duas da manhã, quase 3, depois de sardinhas ao passo de tintos verdes, tens que me perdoar a ortografia...)
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