O poeta e Nobel da literatura T.S. Elliot dizia que 'o humor é também uma forma de dizer coisas sérias', e foi disso que me lembrei há uns dias, quando um grande amigo me relatou uma história algo rocambolesca, a todos os títulos divertida mas que, confesso, não me dispensou uma pequena reflexão.
Acredito que a nossa sociedade é um pouco com a vegetação rasteira da floresta, onde atrás da aparente calma e imobilidade do quotidiano por vezes se movimentam forças de um poder insuspeito, onde um incêndio devastador pode estar prestes a nascer sem que antes vejamos um único vestígio de fumo.
A história do meu amigo, claramente um 'gajo com onda', um conceito que necessitaria de outro post para ser convenientemente explicado, deu-se no regresso de uma reunião de trabalho, onde tinha ido com uma pouco comum (no meu amigo) indumentária formal de trabalho, com fato escuro e gravata incluída.
Nesse dia, para além de o ter feito vestir uma roupa mais formal, o acaso colocou ao seu dispôr, no momento de chamar um táxi para regressar ao escritório, um carro de turismo — um daqueles Mercedes topo de gama, normalmente pintados de côr escura, sem a pintura dos táxis tradicionais, que habitualmente se encontram à porta de hotéis de cinco estrelas — que conjugado com a indumentária lhe deu um inédito ar de respeitabilidade, embora eu mantenha para mim que um observador atento facilmente concluiria que naquele quadro alguma peça estava fora do seu sitio.
Ao parar num semáforo de uma conhecida avenida Lisboeta, e tendo aberto a janela para deixar circular o ar, o meu amigo foi imediatamente abordado por dois adolescentes que, parados numa mota ao seu lado enquanto aguardavam também a luz verde para arrancar, se dirigiram a ele num tom indignado, e tomando-o por um boy colocado em cargo bem remunerado num qualquer ministério ou empresa pública, começaram a insultá-lo de forma veemente, num chorrilho de ataques que tinham como mensagem central a forma como o meu amigo representava a concretização da opinião vigente do povo, do proxenetismo ser a ocupação da grande maioria dos incompetentes engravatados que nos governam ou desempenham, só graças a quem conhecem, cargos nas empresas que também só existem graças ao preciso dinheiro dos nossos impostos, que estes senhores se esmeram a desbaratar.
Recuperado do momento inicial de espanto, o meu amigo, que foi abençoado à nascença com uma resposta mais rápida que a própria sombra, manteve-se no seu papel o tempo suficiente para convidar à investida dos jovens, apoiado pela cumplicidade do chauffeur, que com os reflexos de um profissional adaptou o seu papel àquele que o cliente tinha passado espontaneamente a desempenhar, e convertendo-se instantaneamente em fiel motorista governamental.
Como referiu o meu amigo, o que permitiu levar a brincadeira até ao fim foi que o condutor tinha o mesmo estilo de gargalhada do passageiro, neste caso marcado pela capacidade de rir até à exaustão sem emitir um som que seja, o que lhe permitia permanecer aparentemente impassível e sério desde que evitasse rodar a cabeça, impedindo assim os jovens de verem os seus olhos, que vertiam água como os de uma autêntica Madalena, neste caso uma Madalena em perfecto êxtase hilariante.
Acesa a luz verde do semáforo, e perante o fim iminente do delicioso episódio, o meu amigo fez o que naturalmente se esperaria de um 'gajo com onda', aproveitando o momento do arranque para, com requintes de malvadez, colocar a cereja no topo do bolo, gritando a alto e bom som, os dois braços abertos em 'v' e um sorriso que escondia um turbilhão de gargalhadas, a sentença final para arrumar qualquer dúvida que pudesse ter subsistido sobre o assunto: "votem em mim, pá!".
O episódio diz bastante sobre o sentimento geral das pessoas, nestes tempos difíceis em que nem os habitualmente optimistas políticos têm coragem de anunciar amanhãs que cantam. Para mim, que sou racional e procuro sempre pensar sobre o sentido das coisas, traz-me uma preocupação adicional.
Se o nível de atenção do cidadão comum a quem nos governa é já de tal forma baixo que até o meu amigo passa por governante, é sinal que qualquer pessoa pode ser eleita, desde que tenha a imagem superficial que se cole facilmente à função.
E aqui chego à minha reflexão: é que vendo a forma como a democracia moderna funciona, e o desfecho mais habitual quando as pessoas são obrigadas a escolher entre uma boa e uma má opção, o mais provável é que da próxima vez que votarem num ocupante de um mercedes topo-de-gama, formando uma opinião sem reparar na barba de três dias que o homem ostenta ou em qualquer outro detalhe revelador, ele seja, ao contrário do meu amigo, um gajo sem a mínima onda.