Friday, March 11, 2011

Jornalismo Rasca

Vi há pouco uma peça da TVI sobre as reacções dos jovens ao discurso de Cavaco Silva, particularmente nas redes sociais, referindo que "a maioria dos comentários do facebook é desfavorável ao presidente", seguindo-se a transcrição de comentários apanhados na página da Manifestação da Geração à Rasca.

Não vou sequer falar da forma como a peça encadeia e equipara o discurso de posse do Presidente da República, ou pelo menos a parte em que apela à mobilização dos jovens, com uma dúzia de comentários anónimos no tom habitualmente inflamado e trauliteiro que a rapaziada utiliza para o arremesso de postas de pescada no Facebook (um dos destaques foi "não acreditem num homem com dupla personalidade"). Esse não é, apesar de tudo, o maior problema.

O problema é como a notícia se começa por basear numa premissa errada, para não dizer falsa, e depois deriva para a pura e simples distorção dos factos. Começando pela premissa, confesso que mal a introdução começou a peça prendeu toda a minha atenção, porque queria perceber como tinha a TVI apurado a opinião "do facebook", atendendo à forma como esta rede social funciona, que leva a que a maioria das interacções entre utilizadores decorram numa esfera privada.

Depois de um momento a interrogar-me se a jornalista da TVI teria muitos amigos no facebook, e a disposição de lhes violar a privacidade, constatei que, como é óbvio, o que procuraram foi opinião reflectida nas páginas públicas, acessíveis por qualquer um. E aqui começa a distorção: em vez de percorrer várias páginas, com diferentes inclinações e tendências, a reportagem focou-se na página da "Geração à Rasca", o que equivaleria, em termos práticos, e ir para a sede do Bloco de Esquerda em Lisboa fazer perguntas sobre José Sócrates, e depois dizer que "os lisboetas estão fartos do Primeiro Ministro".

Claro que a maioria das pessoas não pensa demasiado nisto, nem questiona as premissas das reportagens que lhe são apresentadas. Alguns não conhecem sequer o suficiente dos factos para distinguir "o facebook", a tal coisa que os árabes andam a usar para se revoltar, de uma página de três jovens que decidiram organizar uma manifestação e têm tido, atendendo ao descontentamento generalizado da população e ao momento que o País vive, uma grande exposição nos media. Em suma, a maior parte vai comer o peixe estragado que a TVI lhes serviu como se fosse um belíssimo cherne grelhado no Mercado do Peixe, e isto é uma violação grave da responsabilidade que assiste aos media.


O que é preocupante em tudo isto é a forma como fica demonstrada a facilidade com que se cria opinião sem correspondência com factos, e a forma inadmissível — e nenhuma das duas explicações possíveis, incompetência ou má fé, é tolerável — como uma chefia de redacção deixa uma peça destas ser feita ou, mais provavelmente, encomenda a sua preparação com uma mensagem, ou preconceito, definida à partida, utilizando uma recolha superficial dos factos para a travestir em notícia.

Nesta altura em que todo o protesto é aparentemente legítimo, é frequente ouvirmos atacar a falta de qualidade do nosso establishment político. Este raciocínio tem uma armadilha evidente, que é impedir-nos de ver que os políticos, como aliás os media, são sempre o espelho da sociedade que temos. Se aceitarmos este tipo de jornalismo rasca como normal, e este tipo de abordagem ignorante, simplista e preconceituosa como aceitável, então não vale a pena queixarmo-nos muito: seremos mesmo um País rasca.

Wednesday, March 9, 2011

E alguém os desenrasca?

O tema do momento em Portugal é o protesto da auto-designada "geração à rasca", marcado para este fim-de-semana. Não vou estar na manifestação, em primeiro lugar porque nesta altura já só um ingénuo acredita nos respectivos, e anunciados, apartidarismo e independência, mas também porque, concordando em absoluto que o País e o regime estão doentes, discordo igualmente em absoluto do que os promotores apontam como sendo a solução.

Para estes jovens, a situação deriva de dois problemas principais: a desigualdade de oportunidades, em que os mais novos são prejudicados face às gerações anteriores, mesmo sendo mais qualificados, e a precariedade e baixa remuneração do emprego disponível, que não dá a contrapartida justa pelo tempo e esforço que os mais jovens investiram na sua educação.

Sendo legítimos e compreensíveis, ambos os objectivos são também completamente falhos de lógica ou sustentação. Em primeiro lugar, o mito de que a vida desta geração é mais difícil que a das anteriores é, isso mesmo, um mito. Para quem, como eu, nasceu na década de 70, e viu a transformação do País provinciano e analfabeto no Portugal de hoje, o conceito de dificuldades desta rapaziada fará qualquer pessoa informada com mais de 35 anos no mínimo sorrir (um bom exemplo do que quero dizer neste texto, que vale a pena ler).

Neste domínio a culpa não é, no entanto, dos jovens que agora protestam: a raiz do mal, da aparente contradição de uma população que apesar dos cada vez maiores níveis de qualificação formal encontra crescente dificuldade em encontrar empregos bem remunerados, remonta aos anos 80, com a democratização do ensino superior que os governos de Cavaco Silva assumiram como prioridade.

A lógica era simples: se as pessoas viam numa licenciatura a via para uma vida melhor, para o bem estar económico e reconhecimento social que queriam para si e para os seus filhos, havia que alargar o restrito número de cursos e vagas disponíveis nas universidades. Se isto foi feito destruindo o ensino profissional e degradando a qualidade média do ensino superior bem além do admissível — na prática levando a que a grande maioria das licenciaturas, mestrados e até doutoramentos tenham reduzido valor ou credibilidade no mercado — gerando um exército de licenciados cujas qualificações não tinham a mínima correspondência com as necessidades reais do País, paciência. 

O que interessava é que poderíamos ser todos doutores, fosse com brilho intelectual ou pagando propinas numa das múltiplas universidades privadas que surgiram para aproveitar a oportunidade de negócio que a estratégia de Cavaco gerou, e o canudo abrir-nos-ia as portas de um emprego bem remunerado e reconhecido pela sociedade. Foi assim que chegámos a uma situação em que todos os anos fecham jornais e revistas por falta de viabilidade económica mas entram no mercado de trabalho centenas de licenciados em Comunicação Social, enquanto a falta de médicos nos obriga a recorrer à mão de obra excedentária da vizinha Espanha.

Na prática, tratou-se de uma fraude que várias gerações de portugueses — a começar pela minha, que cumpri 18 anos em 1990 — pagaram com o seu esforço, sonhos e frustração, porque se no topo da cadeia as coisas não mudaram, e ainda hoje um licenciado numa universidade de primeira linha continua a arranjar trabalho sem dificuldades de maior, é evidente que no meio e na base da pirâmide a explosão de cursos não foi, nem podia ser, acompanhada por um aumento da procura de licenciados pelas empresas, levando à actual situação em que um canalizador é mais bem remunerado que o detentor de um doutoramento, e que os  empregadores que mais se queixam de falta de oferta sejam os empresários de restauração e de outras áreas teoricamente menos exigentes em termos de qualificação.

Explicado o meu ponto de vista quanto à relação entre qualificação e emprego, passemos ao segundo ponto, ou do discurso de "acabar com a precariedade", que pode soar bem e ir de encontro aos legítimos anseios destes jovens (e não será por acaso que o vocábulo faz parte integrante do léxico de alguma esquerda) mas é algo que não se consegue por via administrativa, particularmente no País da União Europeia cuja Lei laboral mais dificulta o despedimento individual. 

Foi precisamente para combater a precariedade e assegurar o "direito ao emprego" (as aspas não são acidentais) que a Lei laboral portuguesa foi desenhada, nos anos 70, quando que toda a bússola política estava encostada ao lado esquerdo do espectro e ainda era permitido alimentar ilusões de que o emprego se protegia com leis que dificultassem o despedimento. Três décadas e meia depois, continuamos a falar de "acabar com a precariedade" como se nada disto se tivesse passado,  e como se os recibos verdes e outros subterfúgios mais não fossem que o resultado prático destas ideias e, numa ilusão tipicamente de esquerda, de que é possível criar emprego restringindo a sua extinção.

O problema de toda esta história, e ao mesmo tempo a coisa mais preocupante para todos nós como sociedade, é a forma como a demagogia explora  o ressentimento e legítima frustração de quem sente não ter perspectivas sérias de futuro, para gerar um discurso negativo, e só aparentemente contestatário do sistema, mas sem uma solução viável que não se baseie em ser contra os aparentes culpados da situação (o governo, os tiranos do patronato que não querem pagar mais ou contratar os jovens que estão a recibos verdes), numa lógica que não estaria desenquadrada do Portugal de 1975. 

O que este discurso consegue mais não é que aliviar-nos da responsabilidade que todos temos como cidadãos, a começar por quem escolheu um curso sem pensar seriamente sobre as respectivas saídas profissionais, ou por quem não perde um festival de Verão ou uma ida ao 'Lux' e se queixa de não ter dinheiro para sair de casa dos pais, seguindo a mui lusitana tendência de atribuir sempre a outrem a maior fatia de culpa de qualquer problema.

O problema, de toda esta história é que o País precisa de uma renovação total das suas leis laborais, precisa de reformar o Estado Social que não tem dinheiro para pagar, e precisa de tomar opções inadiáveis que implicarão, no curto e médio prazo, sacrifícios de todos. No entanto, se virmos o discurso dominante destes movimentos, seremos capazes de acreditar que tudo não passa de uma injustiça na distribuição do rendimento, que os jovens são mal remunerados porque as empresas não querem pagar mais, e não porque não tenham condições de lhe oferecer um contrato melhor e mais estável, e que o emprego é precário porque a Lei não o protege.

O que eles ainda não perceberam, e enquanto a demagogia predominar nunca perceberão, é que se continuarem por esta via, por mais que consigam fazer mossas no sistema, de resto inteiramente merecidas, no final do dia não haverá quem os desenrasque...