O ar grave e claramente irritado de Cavaco Silva que os noticiários da noite de ontem repetiram incessantemente não dava lugar a dúvidas, quase dispensando o som para se perceber o teor das declarações do professor de Boliqueime: tinha decidido que não ia alimentar mais a novela do BPN, e de agora em diante não ia falar mais sobre o assunto, porque todos os esclarecimentos que havia para dar já tinham sido dados. Do lado de Alegre, no entanto, a gritaria continua, e a imagem que fica, para parafrasear o comentário de um amigo meu, é que "Cavaco não está a dar cavaco de tudo" o que há para dizer sobre as acções que comprou.
Sucede no entanto que, por mais que eu não goste da personagem que nos desgovernou durante uma década, ele tem razão, porque já deu cavaco das acções há muito tempo, e declarou quantas comprou, quantas vendeu, e os valores envolvidos, e estes dados, longe de serem segredo, são públicos há muito tempo, e a imprensa
não deixou de os noticiar quando os acontecimentos se precipitaram após a crise financeira de Setembro de 2008, e os rabos de palha do BPN começaram a cheirar mal demais para se poder continuar a ignorar o assunto.
Cavaco de facto já tinha admitido abertamente, e sem que ninguém se escandalizasse, que tinha feito um investimento financeiro de cerca de 100.00 euros em 2001 (portanto quando estava fora da política) e que em 2003 pediu à SLN para vender as acções e encaixou a correspondente mais valia. Investiu o seu dinheiro, ganho com o seu trabalho, e realizou um excelente investimento, e em si nada disto é imoral ou errado. Quando Cavaco vendeu as suas acções faltavam cinco anos para o BPN entrar em rotura, e não há nada que nos permita afirmar que nesse momento o actual Presidente da República tivesse alguma informação menos positiva sobre a empresa ou sobre a conduta dos seus responsáveis.
Ao ser colocado perante a questão no debate com Alegre, Cavaco tentou colocar a bola no outro lado do campo, e questionou a responsabilidade da actual administração (uma forma pouco subtil de apontar o dedo ao Governo e ao PS que apoia Alegre) no beco sem saída a que, mais de dois anos depois da queda do BPN, o Governo de facto conduziu o banco, isto depois de ter recusado um plano de viabilização por privados, liderado por Miguel Cadilhe, que mesmo no pior cenário sairia mais barato ao contribuinte do que o pesadelo a que agora nos arriscamos.
O argumento tem lógica, como aliás a recente
entrevista de Fernando Ulrich desmonta com precisão cirúrgica, mas Alegre foi esperto e soube explorar a repulsa da populaça pelo verdadeiro caso de polícia que foi o percurso do BPN, o expoente máximo da corrupção e promiscuidade entre o poder financeiro, político e económico, e sem factos que de facto o suportassem conseguiu aqui uma forma de associar Cavaco ao pior que o cavaquismo gerou, obrigando a descer à terra o homem que normalmente fala "dos políticos" como se ele próprio não fosse um deles, tocado pelos mesmos vícios e soberba que encontramos em qualquer homem de poder. Cavaco sobrestimou a sua própria credibilidade, ou por outro lado subestimou a força da indignação geral com a aventura dos seus ex-ajudantes, e deu o flanco de uma forma que vai acabar por marcar uma campanha que foi desde o início completamente soporífera, e em última análise se arrisca a marcar a presidência.
Tudo valeu até aqui, e parece-me que tudo continuará a valer, para prolongar o mais possível a agonia do candidato da direita. Primeiro o argumento idiota, mais um, de Alegre, de que era importante saber-se "a quem vendeu ele as acções", tentando lançar um isco que ninguém nos media foi suficientemente burro para agarrar (as acções foram vendidas a uma empresa da própria SLN, mas quem determinou o destinatário foi a empresa, e não Cavaco, e mesmo não sendo especialista na matéria acho razoável assumir que não é incomum uma empresa comprar acções próprias que um pequeno accionista deseje vender) de imediato, mas que acabou por colar na agenda dos jornalistas.
Antes deste argumento Alegre tinha recorrido a um outro , ainda mais idiota, mas que sendo um bom 'sound bite' teve melhor acolhimento nos media, de que Cavaco era responsável pelo que aconteceu no BPN, "porque quem tinha acções da SLN era de facto dono do BPN". Não falando sequer do raciocínio primário que não se admite a um candidato ao mais alto cargo político da Nação, o argumento não resiste à análise mais elementar, de como será possível responsabilizar alguém que, para além de saír da holding cinco anos antes da queda do Banco, fez um investimento de 100.000 euros num grupo com largas dezenas de empresas, milhares de colaboradores e activos avaliados em milhares de milhões de euros.
O que neste momento parece claro é que a imagem de Cavaco sairá sempre beliscada desta aventura, porque a sua aura de seriedade inatacável sofre pela associação ao BPN, mas mesmo que a espuma de desvaneça e a verdade dos factos faça desaparecer a actual impressão, de que o professor de Finanças Públicas não está a contar a história na íntegra, há outra conclusão a retirar do episódio, que é tudo menos positiva.
O outra conclusão é que desde que passe tempo suficiente para a memória se desvanecer, e falo do tipo de memória que nos diz o que comemos hoje ao almoço, é possível requentar notícias velhas para criar histórias novas, pelo que qualquer político minimamente hábil consegue manipular estes media e estes jornalistas, mal preparados e pouco rigorosos, que se preocupam mais em correr com o megafone de político em político, e de histeria em histeria, do que em destrinçar o discurso dos factos, tratando das coisas a partir da sua substância e marcando a agenda noticiosa em função do que é relevante para o público, e não da declaração bombástica do momento.