Há pouco deparei com algo que me deu que pensar. Com o carro na oficina há já algum tempo tenho voltado a usar no quotidiano formas de transporte que já tinham abandonado os meus hábitos, como o táxi, o metro ou até o velho eléctrico lisboeta, e foi isso que levou à estranha coincidência de me terem calhado condutores originários do Leste europeu nos últimos três ou quatro táxis que apanhei.
Se ao apanhar o primeiro estranhei, porque era pouco comum ainda há meia dúzia de anos, quando a minha utilização do táxi era muito mais frequente, com este último fiquei seguro que não se tratava de uma coincidência.
Se isto me parece relevante é porque acho que poucas coisas dizem mais sobre uma sociedade do que os seus táxis, esse misto de consultório de psicanálise e amostra da vox populi. A estrita divisão entre táxis pretos e small taxis de Londres, estratificando diferentes níveis de exigência e qualificação para veículos e condutores — os condutores dos londrinos táxis tradicionais passam por um longo processo de formação, com testes que os obrigam a estabelecer de memória, rua a rua, o percurso entre quaisquer dos milhares de ruas e pontos de interesse da capital inglesa, ao ponto de existirem estudos científicos que comprovam que há zonas do seu cérebro, responsáveis pela memória espacial, que se desenvolvem de uma forma acima do normal — como seria de esperar num país onde a separação de classes e a correspondente diferença de rituais é tão clara, o predomínio de determinadas nacionalidades ou etnias entre os condutores de táxi de cidades do centro da Europa, com diferenças de país para país, o táxi da aldeia que divide o espaço entre os interessados em cada percurso, porque não faria sentido deixar alguém em terra para garantir a privacidade de um só cliente, a diferença entre o uso generoso do palavrão pelo taxista lisboeta e a forma delicada como o de Cascais nunca deixa de parar numa passadeira, todas estas coisas são em maior ou menor medida reflexo das características do meio onde, literalmente, se movimentam.
Foi por isso que registei como russos, ucranianos ou moldavos se juntaram à inigualável galeria de cromos que já ocuparam o nosso imaginário ao volante de um táxi lisboeta. Os condutores da Lisboa pacata e por vezes quase rural do Estado Novo, que ainda hoje nos fazem associar à profissão o fogareiro com que aqueciam a sua marmita durante a hora de almoço, os condutores de fartos bigodes, orgulhosos apêndices capilares que resistiram incólumes à travessia entre os anos 7o e 90, os orgulhosos detentores de pendões futebolísticos que invariavelmente ocupavam o retrovisor, esse espelho de truques e ângulos espertos para vislumbrar as pernas das meninas do banco traseiro, e até os homens de fé, os verdadeiros e os que tinham mantido a santinha no tablier para não ofender as convicções do patrão, tudo isto foram coisas que sempre se integraram imperceptivelmente na nossa vida, às vezes como um espelho fiel do mundo que nos esperava no exterior quando abríamos a porta do táxi.
Ao ver um condutor originário do Leste da Europa não é também difícil chegar a algumas conclusões. Ao contrário de um trabalho na construção civil, por exemplo, a condução de um táxi exige o mínimo domínio tanto da língua como da geografia da cidade, pelo que é um tipo de trabalho que pressupõe um nível de integração que não se pode esperar de um imigrante temporário, mas apenas de alguém que já fez de Portugal, ou mesmo de Lisboa, sua casa.
Por outro lado, e se há características nos taxistas que são comuns e têm a ver com a cultura e hábitos da cidade, mais até do que do País (e Lisboa e Cascais são um bom exemplo), há outras que têm a ver com a origem e história de cada um. Os homens acima dos cinquenta anos, normalmente de bairros tradicionais de Lisboa, taxistas toda a vida, foram sendo progressivamente substituídos por quem vinha de todo o País e encontrava no táxi uma forma dura mas relativamente estável de ganhar algum dinheiro, a que se juntaram mais tarde brasileiros de vários tipos e proveniências, e essas mudanças acompanharam a forma como Portugal e a sua capital mudaram nos últimos trinta anos.
No caso dos homens de Leste, ao volante de definem-se pela escassez do verbo, normalmente apenas se dirigindo ao cliente quando não entendem o caminho e, e ao contrário dos seus congéneres autóctones sugerem imediatamente que o cliente indique a rota da sua preferência, não parecendo, no entanto, atrapalhar-se quando não lhes é indicada a forma de chegar ao destino, seguindo o caminho mais lógico assim que iniciam a marcha. São eficientes e silenciosos, uma boa inovação no universo variado de possibilidades que nos espera no lugar do condutor, literalmente da testemunha de jeová até ao esquizofrénico que adora o diabo e conduz sob a influência de substâncias proibidas, embora já tenha tido pelo menos um exemplo de como puxar conversa com um moldavo pode redundar numa crítica social cujo tom que não seria estranho um cinquentão da Madragoa ou da Mouraria.
De uma forma ou de outra, se este novo grupo de taxistas é um sintoma da forma como a minha cidade está a mudar, não é de todo um sintoma que me incomode. Como em todas as profissões é praticada por gente boa e por gente má, e não acredito que mudar a côr ou origem, dos condutores de táxi ou de qualquer outra profissão, altere a proporção de anjos e demónios entre cada um deles.
Disse que a ideia de fazer este post me surgiu a partir da minha última viagem de táxi, o que é verdade, mas há outra razão: há pouco uma amiga minha, que me tem dado o prazer de acompanhar atentamente o que escrevo aqui, e celebra hoje o seu aniversário, pedia-me que escrevesse alguma coisa para assinalar o dia. Se à primeira vista não parece haver relação entre as duas coisas, o facto é que ela regressou hoje mesmo do Cairo, seguramente um dos sítios do mundo onde eu já gostava de ter apanhado um táxi.